quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

Catequeses sobre os Salmos (6): Laudes da quinta-feira da I semana

Dando continuidade à nossa série com as Catequeses do Papa João Paulo II sobre os salmos e cânticos da Liturgia das Horas, propomos hoje as reflexões do Papa sobre as Laudes da quinta-feira da I semana do Saltério nos dias 19 de setembro (Sl 56), 10 de outubro (Jr 31,10-14) e 17 de outubro de 2001 (Sl 47).

15. Oração da manhã numa aflição: Sl 56(57),2-12
19 de setembro de 2001

1. É uma noite tenebrosa, em que se sente a presença de feras vorazes nos arredores. O orante está à espera do despontar da aurora, para que a luz vença a obscuridade e os temores. Este é o contexto do Salmo 56, hoje proposto à nossa reflexão: um cântico noturno que prepara o orante para a luz da aurora, esperada com ansiedade, para poder louvar ao Senhor na alegria (cf. vv. 9-11). Com efeito, o Salmo passa da lamentação dramática dirigida a Deus, à esperança serena e ao agradecimento jubiloso, expresso com as palavras que em seguida voltarão a ressoar, num outro salmo (cf. Sl 107,2-6).
Em síntese, assiste-se à passagem do medo à alegria, da noite ao dia, do pesadelo à serenidade e da súplica ao louvor. Trata-se de uma experiência frequentemente descrita nos salmos: “Convertestes o meu luto em júbilo, despistes-me do meu saco e cingistes-me de alegria. Por isso, o meu coração há de cantar-vos sem cessar” (Sl 29,12-13).

2. Dois são, portanto, os momentos do Salmo que estamos meditando. O primeiro diz respeito à experiência do medo pelo assalto do mal, que procura atingir o justo (vv. 2-7). No centro desta cena há leões em posição de ataque. Esta imagem transforma-se depressa num símbolo bélico, delineado com lanças, flechas e espadas. O orante sente-se atacado por uma espécie de esquadrão da morte. À sua volta, há um grupo de caçadores, que arma ciladas e escava fossas para capturar a presa. Mas esta atmosfera de tensão dissolve-se imediatamente. Com efeito, já no início (v. 2) aparece o símbolo protetor das asas divinas, que concretamente fazem pensar na arca da aliança com os querubins alados, ou seja, na presença de Deus ao lado dos fiéis no templo santo de Sião.

3. O orante pede instantemente que Deus mande do céu os seus mensageiros, a quem atribui os nomes emblemáticos de “Graça” e “Verdade” (v. 4), qualidades próprias do amor salvífico de Deus. Por isso, embora sinta arrepios pelo rugido terrível das feras e pela perfídia dos perseguidores, no seu íntimo o fiel permanece sereno e confiante, como Daniel na cova dos leões (cf. Dn 6,17-25).
A presença do Senhor não demora a mostrar a sua eficácia, mediante a autopunição dos adversários: eles caem na fossa que tinham cavado para o justo (v. 7). Esta confiança na justiça divina, sempre viva nos salmos, impede o desencorajamento e a rendição à prepotência do mal. Deus, que confunde as manobras dos ímpios, fazendo-os cair dos seus próprios projetos de maldade, mais cedo ou mais tarde põe-se ao lado do fiel.

4. Assim, chegamos ao segundo momento do Salmo, o da ação de graças (vv. 8-11). Há um trecho que brilha de intensidade e beleza: “Meu coração está pronto, meu Deus, está pronto o meu coração! Vou cantar e tocar para vós: desperta, minha alma, desperta! Despertem a harpa e a lira, eu irei acordar a aurora!” (vv. 8-9). As trevas já se dissiparam: o alvorecer da salvação aproxima-se com o cântico do orante.
Aplicando a si esta imagem, o salmista talvez traduza nos termos da religiosidade bíblica, rigorosamente monoteísta, o uso dos sacerdotes egípcios ou fenícios que eram encarregados de “despertar a aurora”, ou seja, de fazer voltar a nascer o sol, considerado como uma divindade benéfica. Ele alude também ao costume de suspender e de velar os instrumentos musicais no tempo do luto e da provação (cf. Sl 136,2) e de os “despertar” ao som festivo no tempo da libertação e da alegria. Portanto, a Liturgia faz nascer a esperança: dirige-se a Deus, convidando-o a aproximar-se de novo do seu povo e a escutar a sua súplica. Nos salmos, a aurora é com frequência o momento da concessão divina, depois de uma noite de oração.

5. Assim, o Salmo termina com um cântico de louvor dirigido ao Senhor, que age com as suas grandes qualidades salvíficas, que já se manifestaram com termos diferentes na primeira parte da súplica (v. 4). Agora entram em cena, de modo quase personificado, o Amor e a Verdade. Eles inundam os céus com a sua presença e são como a luz que brilha na obscuridade das provas e das perseguições (v. 11). É por este motivo que, na tradição cristã, o Salmo 56 se transformou em cântico do despertar para a luz e a alegria pascal, que se irradia no fiel, cancelando o medo da morte e alargando o horizonte da glória celeste.

6. Gregório de Nissa descobre nas palavras deste Salmo uma espécie de descrição típica daquilo que se verifica em cada experiência humana, aberta ao reconhecimento da sabedoria de Deus. “Efetivamente, salvou-me - exclama - fazendo-me sombra com a nuvem do Espírito, e aqueles que me espezinharam foram humilhados” (Sobre os títulos dos Salmos, Roma, 1994, p. 183).
Depois, referindo-se às expressões que concluem este Salmo, onde se diz: “Elevai-vos, ó Deus, sobre os céus, vossa glória refulja na terra!”, ele conclui: “Na medida em que a glória de Deus se estende sobre a terra, enriquecida pela fé daqueles que são salvos, os poderes celestes entoam hinos de louvor a Deus, exultando pela nossa salvação” (ibid., p. 184).


"Quem dispersou Israel vai congregá-lo..." (Jr 31,10)
(O retorno dos exilados - William Brassey Hole)

16. A felicidade do povo libertado: Jr 31,10-14
10 de outubro de 2001

1. “Ouvi, nações, a palavra do Senhor! Anunciai-a nas ilhas mais distantes” (Jr 31,10). Qual é a notícia que está para ser anunciada com estas solenes palavras de Jeremias, que ouvimos no cântico que há pouco proclamamos? Trata-se de uma notícia confortadora, e não é ocasional que os capítulos que a contêm (Jr 30–31), sejam qualificados como “Livro da Consolação”. O anúncio refere-se diretamente ao antigo Israel, mas já deixa de alguma forma entrever a mensagem evangélica.
Eis o centro deste anúncio: “Pois, na verdade, o Senhor remiu Jacó e o libertou do poder do prepotente”  (v. 11). O quadro histórico destas palavras é constituído por um momento de esperança experimentado pelo Povo de Deus, cerca de um século depois que o reino do Norte, em 722, fora ocupado pelo poder assírio. Agora, no tempo do profeta, a reforma religiosa do rei Josias exprime a volta do povo à aliança com Deus e faz surgir a esperança de que o tempo do castigo tenha terminado. Começa a delinear-se a perspectiva de que o Norte possa voltar à liberdade e Israel e Judá se recomponham na unidade. Todos, também as “ilhas mais distantes”, deverão ser testemunhas deste acontecimento religioso: Deus, pastor de Israel, está para intervir. Ele, que permitiu a dispersão do seu povo, agora vem reuni-lo.

2. O convite à alegria é desenvolvido com imagens que empenham profundamente. É um oráculo que faz sonhar! Delineia um futuro em que os exilados “voltarão e cantarão”, e encontrarão não só o templo do Senhor, mas também todos os bens: o trigo, o vinho, o azeite, o pequeno rebanho e o gado. A Bíblia não conhece um espiritualismo abstrato. A alegria prometida não se refere apenas ao íntimo do homem, porque o Senhor cuida da vida humana em todas as suas dimensões. O próprio Jesus não deixará de realçar este aspecto, convidando os seus discípulos a terem confiança na Providência também para as necessidades materiais (cf. Mt 6,25-34). O nosso cântico insiste sobre esta perspectiva: Deus quer fazer com que todos os homens sejam felizes. A condição que ele prepara para os seus filhos é expressa pelo símbolo do “jardim bem irrigado” (v. 12), imagem de vigor e fecundidade. O luto converte-se em festa, ficamos saciados de delícias (v. 14) e repletos de bens, a ponto que é espontâneo cantar e dançar. Será uma alegria irreprimível, uma alegria do povo.

3. Os acontecimentos históricos dizem-nos que este sonho não se realizou naquela época. Mas não certamente por Deus não ter cumprido a sua promessa: desta desilusão foi responsável mais uma vez o povo, com a sua infidelidade. O mesmo Livro de Jeremias encarrega-se de demonstrá-lo com o desenvolvimento de uma profecia que se torna difícil e dura, e leva progressivamente a algumas das fases mais tristes da história de Israel. Não só os exilados do Norte não voltarão, mas a própria Judeia será ocupada por Nabucodonosor em 587 a. C.. Então começarão dias amargos, quando, junto dos rios da Babilônia, se deverão suspender as harpas (cf. Sl 136,2). Não poderá haver no coração qualquer disposição para cantar para satisfazer os algozes; não se pode rejubilar, se somos arrancados à força da pátria, a terra onde Deus estabeleceu a sua habitação.

4. Mas, todavia, a alegria que caracteriza este oráculo não perde o seu significado. De fato, permanece firme a motivação última sobre a qual se baseia, e que é expressa sobretudo por alguns versículos significativos, que precedem os que são propostos pela Liturgia das Horas. É necessário tê-los bem presentes, quando se leem as expressões de alegria do nosso cântico. Descrevem em termos vibrantes o amor de Deus pelo seu Povo. Indicando um pacto irrevogável: “Amei-te com um amor eterno” (Jr 31,3). Cantam a alegria paterna de um Deus que chama a Efraim seu primogênito e o cobre de ternura: “Partiram em lágrimas, irei conduzi-los em grande consolação, por caminhos direitos em que não tropeçarão; porque sou como um pai para Israel” (Jr 31,9). Mesmo se a promessa não pôde ser então realizada por falta de empenho da parte dos filhos, o amor do Pai permanece na sua total e comovedora ternura.

5. Este amor constitui o fio de ouro que relaciona as fases da história de Israel, com as suas alegrias e tristezas, com os seus êxitos e fracassos. Deus não deixa de ser amoroso, e o próprio castigo é a sua expressão, assumindo um significado pedagógico e salvífico.
Na rocha firme deste amor, o convite à alegria do nosso cântico evoca um futuro de Deus que, mesmo se é adiado, virá mais cedo ou mais tarde, apesar de todas as fraquezas do homem. Este futuro realizou-se na Nova Aliança com a Morte e Ressurreição de Cristo e com o dom do Espírito. Contudo, ele terá a sua realização plena na volta escatológica do Senhor. À luz destas certezas, o “sonho” de Jeremias permanece uma oportunidade histórica real, condicionada pela fidelidade dos homens, e sobretudo uma meta final, garantida pela fidelidade de Deus e já inaugurada pelo seu amor em Cristo.
Por conseguinte, ao ler este oráculo de Jeremias, devemos deixar ressoar em nós o Evangelho, a bonita notícia promulgada por Cristo na sinagoga de Nazaré (cf. Lc 4,16-21). A vida cristã é chamada a ser uma verdadeira “alegria”, que só pode ser ameaçada pelos nossos pecados. Ao fazer-nos recitar estas palavras de Jeremias, a Liturgia das Horas convida-nos a apoiar a nossa vida em Cristo, o nosso Redentor (cf. Jr 31,11) e a procurar nele o segredo da verdadeira alegria na nossa vida pessoal e comunitária.

17. Ação de graças pela salvação do povo: Sl 47(48),2-15
17 de outubro de 2001

1. O Salmo que foi proclamado é um cântico em honra de Sião, “a mansão do grande Rei” (v. 3), que nessa época era sede do templo do Senhor e lugar da sua presença entre a humanidade.  A fé cristã já o aplica à “Jerusalém, lá do alto”, que é “nossa mãe” (Gl 4,26).
A tonalidade litúrgica deste hino, a evocação de uma procissão de festa (vv. 13-14), e a visão pacífica de Jerusalém que reflete a salvação divina, fazem do Salmo 47 uma oração para iniciar o dia, um cântico de louvor, mesmo se no horizonte se condensam algumas nuvens.
Para compreender o sentido do Salmo, servem-nos de ajuda três aclamações colocadas no início, no centro e no final, que nos oferecem como que a chave espiritual da composição e nos introduzem no seu clima interior. Eis as três invocações: “Grande é o Senhor e muito digno de louvores na cidade onde Ele mora” (v. 2); “Recordamos, Senhor Deus, vossa bondade em meio ao vosso templo” (v. 10); “O nosso Deus é desde sempre e para sempre: Será ele o nosso guia!” (v. 15).

2. Estas três aclamações, que exaltam o Senhor, mas também “a cidade onde Ele mora” (v. 2), enquadram duas partes grandes do Salmo. A primeira é uma jubilosa celebração da cidade santa, a vitoriosa Sião, contra os assaltos dos inimigos, serena sob o manto da proteção divina (vv. 3-8). Tem-se quase uma litania de definição desta cidade: é uma altura admirável que se ergue como um farol de luz, uma fonte de alegria para todos os povos da terra, o único verdadeiro “Olimpo” onde o céu e a terra se encontram. É, para usar uma expressão do profeta Ezequiel, a cidade-Emanuel, porque “Deus está ali” presente nela (cf. Ez 48,35). Mas em redor de Jerusalém agrupam-se as tropas em cerco, como um símbolo do mal que atenta contra o esplendor da cidade de Deus. O confronto tem um êxito previsto e quase imediato.

3. De fato, os poderosos da terra, ao assaltar a cidade santa, provocaram também o seu Rei, o Senhor. O salmista mostra como o orgulho de um exército poderoso se dissolve com a imagem sugestiva das dores de parto: “Como as dores da mulher sofrendo parto, uma angústia os invadiu” (v. 7). A arrogância transforma-se em fragilidade e fraqueza, o poder em queda e derrota.
O mesmo conceito é expresso com outra imagem: o exército em marcha é comparado a uma frota naval invencível, sobre a qual cai um furacão causado por um terrível vento do Oriente (v. 8).
Por conseguinte, permanece uma certeza incontestável para os que estão sob a proteção divina: a última palavra não é confiada ao mal, mas ao bem; Deus triunfa sobre as potências adversas, mesmo quando parecem ser grandiosas e invencíveis.

4. Então o fiel celebra precisamente no templo o seu agradecimento ao Deus libertador. O seu é um hino ao amor misericordioso do Senhor, expresso com a palavra hebraica hésed, típica da teologia da aliança. Chegamos assim à segunda parte do salmo (vv. 10-14). Depois do grande cântico de louvor a Deus fiel, justo e salvador (vv. 10-12), realiza-se uma espécie de procissão à volta do templo e da cidade santa (vv. 13-14). Contam-se as torres, sinal da proteção certa de Deus, observam-se as fortalezas, expressão da estabilidade oferecida a Sião pelo seu Fundador. Os muros de Jerusalém falam e as suas pedras recordam os fatos que devem ser transmitidos “às gerações futuras” (v. 14) através da narração que os pais farão aos seus filhos (cfSl 77,7). Sião é o espaço de uma cadeia ininterrupta de ações salvíficas do Senhor, que são anunciadas na catequese e celebradas na Liturgia, para que os crentes continuem a ter esperança na intervenção libertadora de Deus.

5. É maravilhosa na antífona conclusiva uma das mais nobres definições do Senhor como pastor do seu povo: “Será Ele o nosso guia!” (v. 15). O Deus de Sião é o Deus do êxodo, da liberdade, da proximidade ao seu povo escravo no Egito e peregrino no deserto. Agora que Israel se estabeleceu na terra prometida, sabe que o Senhor não o abandona: Jerusalém é o sinal da sua proximidade, e o templo é o lugar da sua esperança.
Voltando a ler estas expressões, o cristão eleva-se à contemplação de Cristo, o templo de Deus novo e vivo (cfJo 2,21), e dirige-se para a Jerusalém celeste, que já não precisa de um templo e de uma luz exterior, porque “o Senhor, Deus Todo-Poderoso, é o seu Templo, assim como o Cordeiro... porque é iluminada pela glória de Deus e a sua luz é o Cordeiro” (Ap 21,22-23).
Santo Agostinho convida-nos a fazer de novo esta leitura “espiritual”, convencido de que nos livros da Bíblia “não se encontra nada que se refira apenas à cidade terrena, mas tudo o que dela se refere, ou para ela se realiza, simboliza algo que por alegoria se pode também referir à Jerusalém celeste” (Cidade de Deus, XVII, 3, 2). Faz-lhe eco São Paulino de Nola, que precisamente ao comentar as palavras do nosso Salmo, exorta a rezar a fim de que “possamos ser como pedras vivas nas muralhas da Jerusalém celeste e livre” (Carta 28, II a Severo). E ao contemplar a robustez e solidez desta cidade, o mesmo Padre da Igreja prossegue: “De fato, todo aquele que habita nesta cidade revela-se como o Uno em três pessoas... Dela Cristo foi constituído não só fundamento, mas também torre e porta... Funda-se portanto sobre Ele a casa da nossa alma e sobre ele se eleva uma construção digna de uma base assim  tão  grande,  e  a  porta de entrada para a sua cidade será para nós precisamente Aquele que nos orientará nos séculos e nos levará ao lugar das suas pastagens” (ibid.).

"Recordamos, Senhor Deus, vossa bondade em meio ao vosso templo" (Sl 47,10)
(João Paulo II visita as ruínas do templo de Jerusalém no ano 2000)

Fonte: Santa Sé (19 de setembro, 10 de outubro, 17 de outubro de 2001)

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