No último dia 25 de julho, durante o 45º Encontro Nacional de Pastoral Litúrgica, com o tema "Liturgia e Missão", o Patriarca de Lisboa, Cardeal Manuel Clemente, proferiu uma palestra sobre "A dimensão litúrgica da missão". Segue o texto da Conferência:
A dimensão litúrgica da missão
A conclusão da Oração Eucarística resume e projeta a
realidade inteira do que havemos de ser, missionariamente ser: «Por Cristo, com
Cristo e em Cristo, a Vós Deus Pai Todo Poderoso, na unidade do Espírito Santo,
toda a honra e toda a glória, agora e para sempre! Amém!»
Dizemo-lo muitas vezes e outras tantas nos devemos converter
ao que dizemos. Parecendo fácil, é realmente difícil e demora. Quando for
inteiramente verdade, ficará esclarecida e ativada a “dimensão missão da Liturgia”.
Perceberemos que, por Cristo, com Cristo e em Cristo, o missionário do Pai,
somos impelidos pelo Espírito para nos remetermos filialmente a Deus Pai,
assinalando a todos o mesmo destino. É essa, precisamente, a essência da
missão. O “Amém!” que responde à doxologia, compromete-nos na sua efetivação
universal. É belo como desígnio. É mais difícil a concretização.
Lendo a esta luz os Evangelhos, podemos tomar liturgicamente a vida de Cristo.
Unindo em si mesmo o sacerdócio e a oferta, sumamente no altar da Cruz, assim
realizou a sua vida. Com doze anos, já no templo, identificava aí o seu lugar,
na “casa do Pai”. Nos anos que viveu em Nazaré, não faltava à sinagoga em cada
sábado, assimilando a espera da promessa e dizendo-a finalmente em si cumprida.
Demonstrou-o depois na vida pública, recuperando as vidas à sua volta, para que
também se retribuíssem ao Pai. Só assim as garantindo, na medida em que se
oferecessem.
Este último passo foi custoso. A certa altura curou dez duma
vez. Só um regressou para agradecer e só esse, além de curado, ficou salvo.
Passou da cura à salvação, naquele movimento já litúrgico. Não aconteceu assim
com a maioria, que se contentou com as curas, prolongando um pouco mais as
breves vidas e anestesiando um tanto os velhos medos. Os que entenderam a cura
como graça, tornaram-se eles próprios missionários. Foi o caso de Maria de
Magdala, que Jesus curou de muitos males e o seguiu até ao altar da Cruz, sendo
depois missionária da Ressurreição.
Somos espontaneamente religiosos e dificilmente seríamos
outra coisa. Cedo ou tarde, já não há lugar para a distração. Fragilidades
próprias e alheias impõem-se e forçam-nos a ligações mais fortes, a garantias
mais seguras. Como criaturas apelamos ao Criador, por nós e pelos nossos. Não é
isto um mal, antes a realidade da nossa condição. Condição humana, que faz da
chamada religiosidade natural a base primeiríssima e comum de todos os povos,
diversamente tratada depois nos diversos ritos e culturas.
Assim nos projetamos em súplica e assim entrevemos algo mais, ou Alguém mais.
Na base é realmente muito igual e subjacente aos tempos e aos espaços. Mas não
se desprende de si mesma, enredada na terra, no sangue e nos mortos de cada um
- ou de cada grupo, sempre reduzido e bairrista. É localizada e consanguínea
demais, para se tornar missão. Benze indivíduos, coisas e lugares, mas procura
antes garantir-se a si própria do que agradecer a Deus.
Não se incluindo no movimento litúrgico de Cristo, nem
atinge a Páscoa nem anuncia o que desconhece. A religiosidade natural agarra-se
a ritmos do mundo ou da vida, aos ciclos do tempo e aos chamados ritos de
passagem e dá algum colorido às comunidades. Mas não se desamarra de tempos e
de espaços, descai facilmente para a magia e dificilmente se torna missionária.
Quer garantir o que tem e não vai além de si.
Digo isto da religiosidade natural, que se fica por si mesma. Outra coisa é a
“piedade popular”, que é religiosidade evangelicamente convertida e expansiva,
traduzida na cultura de cada povo. Desta diz o Papa Francisco: «Na piedade
popular, por ser fruto do Evangelho inculturado, subjaz uma força ativamente
evangelizadora que não podemos subestimar: seria ignorar a obra do Espírito
Santo. Ao contrário, somos chamados a encorajá-la e fortalecê-la para
aprofundar o processo de inculturação, que é uma realidade nunca acabada. As
expressões da piedade popular têm muito que nos ensinar e, para quem as sabe
ler, são um lugar teológico a que devemos prestar atenção
particularmente na hora de pensar a nova evangelização» (Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, nº 126).
Temos em Fátima a melhor demonstração do que isto seja.
Nossa Senhora transmitiu a sua mensagem com palavras e gestos que os
Pastorinhos basicamente entendiam, por corresponderem à sua linguagem e
cultura, evangelizadas já. Mais viriam a perceber depois, sendo desde logo
missionários da mensagem recebida. A cultura local em que foi acolhida não lhe
tirou a universalidade que sabemos. Bem pelo contrário, reforçou-lhe a
credibilidade e a consistência. As liturgias e paraliturgias de Fátima estão aí
a demonstrar-lhe a força conversora e missionária.
Insistamos na projeção missionária da Liturgia. Trata-se,
afinal, de viver e expandir a oração que Cristo nos ensinou – o Pai Nosso,
perpassado todo ele de impulso missionário. É rezado no plural e endereça-se ao
Pai, abrindo a todos.
Enaltece o Pai, que o é de nós todos; pede-lhe que a sua vontade se faça e o
seu Reino aconteça; pede-lhe o pão, pede-lhe o perdão; pede-lhe a vitória sobre
as tentações e que nos livre do maligno, que não nos quer filhos de Deus nem
irmãos uns dos outros. Diz tudo isto e nisto mesmo pede tudo o que realmente
importa. Pede o Reino de Deus e a sua justiça, que depois virá com o acréscimo.
Vejamos se é assim conosco, se louvamos a Deus como convém, pessoal e
liturgicamente assim.
Do Pai para o Pai, unidos à retribuição filial que Cristo
fez por nós e para nós, no mesmo movimento do Espírito, assim celebraremos a
nossa vida e seremos missionários do Pai Nosso. Porque, com Cristo,
partilharemos a misericórdia de Deus em relação a todos. Correspondendo à sua
vontade salvadora que, já cumprida no céu, tarda demais em cumprir-se na terra.
Todo o Pai Nosso se reza no plural, ainda aqui verdadeira
regra da oração. Com a certeza que Cristo nos deu: «Digo-vos ainda: Se dois de
entre vós se unirem, na Terra, para pedir qualquer coisa, hão de obtê-la de meu
Pai que está no Céu. Pois, onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome, Eu
estou no meio deles» (Mt 18,19-20).
É a presença do Ressuscitado, especialmente sentida quando nos reunimos em seu
nome, que nos impulsiona à missão. Aconteceu com a Madalena, aconteceu com os
primeiros discípulos e acontece conosco, ou nem estaríamos aqui.
Lemos nos Atos dos Apóstolos esta passagem esclarecedora:
«Havia na igreja, estabelecida em Antioquia, profetas e doutores […]. Estando
eles a celebrar o culto em honra do Senhor e a jejuar, disse-lhes o Espírito
Santo: “Separai Barnabé e Saulo para o trabalho a que Eu os chamei.” Então,
depois de terem jejuado e orado, impuseram-lhes as mãos e deixaram-nos partir»
(At 13,1-3).
Nunca foi nem será doutro modo, para ser realmente cristão:
A comunidade orante é a base da missão. Num passo evangélico Cristo diz-nos
para pedirmos ao Senhor da messe que envie muitos trabalhadores para sua messe.
Sendo tão clara a indicação por parte de Cristo, o facto de os trabalhadores
serem poucos só pode dever-se à nossa falta de correspondência…