Publicamos aqui as homilias de Natal (Missa da Noite e Missa do Dia) do Patriarca de Lisboa, Cardeal Manuel José Macário do Nascimento Clemente:
Homilia na Noite de Natal
Sé de Lisboa, 24 de dezembro de 2017
"É a sua luz que unicamente nos deslumbra"
Irmãos caríssimos: Nesta noite de grande contraste entre o
negrume exterior e a intensa luz do presépio os trechos bíblicos são de tal
densidade que o passar dos anos e dos séculos nunca lhes tira a surpresa. Bem
pelo contrário, no rodar dos tempos litúrgicos, o Natal guarda sempre uma especial
fecundidade meditativa.
Impressionou-me particularmente agora a grande desproporção
que o texto assinala. Vistas bem as coisas, torna-se numa ainda maior
advertência. São duas frases quase seguidas, com enorme contraste. Assim:
«Naqueles dias, saiu um decreto de César Augusto, para ser recenseada toda a
terra». E, mais à frente: «[Maria] envolveu-O em panos e deitou-O numa
manjedoura, porque não havia lugar para eles na hospedaria».
Os agentes são dois: César Augusto que manda recensear toda
a terra e Maria – certamente com a ajuda de José – que envolve o Menino em
panos e o deita na manjedoura. Abissal diferença esta, na verdade. Augusto no
auge do seu império sobre todos e Maria na humildade que a define em tudo.
Em termos históricos e mundiais, nunca houvera um império
assim. Os antigos impérios tinham forte preponderância étnica, religiosa e
cultural da parte dos seus protagonistas e mandantes. O Império de Otávio
César Augusto, sem esquecer a base romana em que nascera, ganhou nessa altura
uma dimensão geográfica e cultural inédita e desenvolveu uma civilização larga
e duradoura. Herdamos-lhe, além do mais, o direito e a língua.
Integrava três continentes, da Europa meridional à Ásia
Menor e ao Norte de África. Quando a notícia daquele Menino que nascera e
depois dera a vida pela fé que trazia se tornou em Evangelho, o Império Romano
tanto se opôs ao novo culto como predispôs a sua expansão. Não por acaso Jesus
mandará «dar a César o que é de César» e Paulo insistirá no respeito pela
autoridade, conquanto que não se divinizasse a si própria. Mas este era já o
problema do Império, que redundaria em perseguição aos discípulos de Cristo.
Não foi problema só então. Nesta mesma noite, em que
passados dois milênios, celebramos entre nós e em paz o Natal de Cristo, muitos
irmãos nossos arriscam a vida para o fazerem noutras latitudes, publicamente,
ou mesmo discretamente. Não há grande intervalo nas notícias de perseguições e
atentados, de igrejas destruídas, de prisões, maus tratos e humilhações
vitimando cristãos - sacerdotes, religiosos e religiosas, leigos e famílias. E
quase sempre em consequência de poderes que exorbitam da sua esfera,
desrespeitam consciências e discriminam por motivos religiosos. Naquele tempo
não demorou muito até que os sucessores de Augusto fizessem o mesmo, de Nero a
Diocleciano. E, mesmo depois e até hoje, o mal pode persistir ou voltar, apesar
da crescente afirmação dos direitos humanos. Direitos que o Cristianismo também
inspirou e dos quais os cristãos deveriam ter sido sempre, como devemos ser nós
agora, os primeiros defensores e promotores. Porque o contraste persiste e deve
persistir entre a grandeza do Império e a humildade do Natal. E deve existir em
tensão criativa e humanizante. Antigas ideologias políticas, que alguma vez
podem regressar, e outras mais recentes, ditas culturais mas na verdade
políticas também, porque assim mesmo se pretendem impor, atuam geralmente a partir
do todo que alcançam ou pretendem alcançar. Tomam o poder e põem-no ao seu
serviço, reduzindo drástica ou disfarçadamente o campo dos que lhes resistem.
Tão convictas de si próprias, ignoram ou desclassificam tudo o mais: tradições
que persistem pela verdade, bondade e beleza que transportam; legítimas crenças
religiosas que libertam o espírito e criam comunhão: tudo isto sofre e com isto
sofreremos realmente todos.
As democracias desenvolveram-se como resistência a tais
“impérios”. E trechos como este do nascimento de Cristo e nas condições em que
aconteceu demonstram desde o início o modo imprescindível delas se sustentarem.
Formulemos assim: Diante de tudo o que se queira impor de fora, servindo-se
dalguma autoridade materialmente entendida e apanhada, o modo divino de
intervir é como uma criança que nasce, acolhida numa família que a protege,
alargando-se depois numa familiaridade nova que tem em cada um o seu polo
irredutível, para respeitar, ajudar a crescer e criar verdadeira comunhão.
Ao Império de Augusto e sucessores sujeitaram-se muitos, por melhores ou piores
razões. Com o tempo foram-se rarefazendo a força e a convicção, até tudo ruir
sob os bárbaros. Por seu lado, àquele Menino acorreram pastores, chegaram
Magos, e chegamos nós todos nesta celebração festiva. Com Ele queremos
coincidir na humildade do coração, que dá todo o espaço a Deus e em Deus a cada
um, novo ou idoso, saudável ou doente, forte ou fragilizado, no arco inteiro da
existência, da concepção à morte natural, como ela se define. É o Presépio que
congrega o mundo, não qualquer império que ultrapassasse os seus limites e se
esquecesse do primeiríssimo dever de respeitar e promover a dignidade de cada
pessoa humana.
Formulo ainda: Se partirmos do Império de qualquer “Augusto”
que seja, corremos o risco de o contrafazer a ele próprio, num totalitarismo
desumanizador. Se partimos de cada pessoa, como naquele Menino o próprio Deus
quis recomeçar conosco, faremos do poder um serviço autêntico e capaz para o
bem comum de todos.
Em Roma o esplendor de Augusto podia deslumbrar. Em Jerusalém, Herodes juntava
grandes obras a grandes prepotências. Nestes todos reparavam e tinham
forçosamente de reparar. Duraram o que duraram e, do fórum de Roma ao Muro das
Lamentações, o que sobra hoje são ruínas. Em contraste, num estábulo de Belém
nasceu aquele Menino, que pouco depois um mago do Oriente reconheceria como
rei, oferecendo-lhe o sinal do ouro (cf. Mt 2,11).
E, de fato, Jesus anunciou e inaugurou um Reino. Trinta anos
depois do seu nascimento, «começou a pregar, dizendo: “Convertei-vos, porque
está próximo o Reino do Céu”» (Mt 4,17). Mas, reparemos no contraste, este
Reino é dom de Deus e exige conversão ao modo divino de ser como em Jesus
inteiramente se revela. Não se impõe, senão pela verdade que transporta. Não
impera, serve, com atenção prioritária aos mais pobres e frágeis.
Não cresce por qualquer estratégia ou logística comum, pois a sua finalidade as
ultrapassa em muito. Nada menos do que isto, como lemos na 2ª Carta de Pedro:
«O divino poder, ao dar-nos a conhecer aquele que nos chamou pela sua glória e
pelo seu poder, concedeu-nos todas as coisas que contribuem para a vida e a
piedade. Com elas, teve a bondade de nos dar também os mais preciosos e
sublimes bens prometidos, a fim de que – por meio deles – vos torneis
participantes da natureza divina, depois de vos livrardes da corrução que a
concupiscência gerou no mundo» (2Pd 1,3-4). Reparemos, a finalidade
é participarmos da natureza divina; a conversão é o contrário da
concupiscência, sendo esta a vontade de captar para si tudo e todos.
Assim começa o Reino e o seu primeiro trono é o Presépio,
como depois será a Cruz. Assim crescerá, como o mesmo Rei ensina: «O Reino do
Céu é semelhante a um grão de mostarda que um homem tomou e semeou no seu
campo. É a mais pequena de todas as sementes; mas depois de crescer, torna-se a
maior planta do horto e transforma-se numa árvore, a ponto de virem as aves do
céu abrigar-se nos seus ramos» (Mt 13,31-32).
Irmãos caríssimos, voltemos ao presépio desta noite,
recolhamos a lição, vivamos o contraste. Na companhia de Maria e José, no
círculo alargado de anjos e pastores, acolhamos a Deus no Menino assim nascido.
Mantenhamo-nos com Ele, no crescimento do seu Reino, garantido por uma
ressurreição que não lhe desfaz, antes reforça, o modo simples e prestável de
acontecer. Em cada momento de serviço aos irmãos, um por um, lugar por lugar,
com verdadeiro acolhimento e resposta, garante-se o tempo todo, pois «o amor
jamais passará» (1 Cor 13,8).
É o Natal deste Reino que hoje celebramos. É a sua luz que
unicamente nos deslumbra!
* * *