Padre Raniero Cantalamessa, OFMCap
I pregação de Quaresma
23 de fevereiro de 2018
“Não vos conformeis com a mentalidade deste mundo” (Rm 12,2)
“Não
vos conformeis com este mundo, mas transformai-vos pela renovação do vosso
espírito, para que possais discernir qual é a vontade de Deus, o que é bom, o
que lhe agrada e o que é perfeito." (Rm 12,2).
Numa
sociedade em que todos se sentem investidos da tarefa de transformar o mundo e
a Igreja, cai esta palavra de Deus que nos convida a transformar-nos a nós mesmos.
"Não vos conformeis com este mundo”: depois dessas palavras, esperávamos
ouvir: "mas transformai-o!"; Em vez disso, se diz: “mas
transformai-vos!”. Transformar, sim, o mundo, mas o mundo que está dentro de
vós, antes de pensar em transformar o mundo que está fora de vós.
Será
esta palavra de Deus, tirada da Carta aos Romanos, que nos introduzirá este ano
no espírito da Quaresma. Como fazemos há alguns anos, dedicamos a primeira
meditação a uma introdução geral à Quaresma, sem entrar no tema específico do
programa, até mesmo por causa da ausência de parte do auditório envolvido nos
Exercícios Espirituais.
1. Os cristãos e o mundo
Em
primeiro lugar, vejamos como esse ideal de desapego do mundo foi compreendido e
vivido desde o Evangelho até nossos dias. É sempre útil ter em conta
experiências passadas se quisermos entender as necessidades do presente.
Nos
evangelhos sinóticos, a palavra "mundo" (kosmos) é quase
sempre compreendida num sentido moralmente neutro. Tomado no sentido espacial,
mundo indica a terra e o universo ("ide ao mundo inteiro"), tomado em
um sentido temporal, indica o tempo ou o “século” (aion)
presente. É com Paulo e ainda mais com João que a palavra "mundo", é
preenchida com um valor moral e significa, na maioria das
vezes, o mundo depois do pecado e sob o domínio de Satanás, “o deus deste
mundo” (2Cor 4,4). Daí a exortação de Paulo da qual nós partimos e, aquela,
quase idêntica, de João na sua Primeira Carta:
"Não
ameis o mundo nem as coisas do mundo. Se alguém ama o mundo, não está nele o
amor do Pai. Porque tudo o que há no mundo - a concupiscência da carne, a
concupiscência dos olhos e a soberba da vida - não procede do Pai, mas do
mundo."(1Jo 2,15-16).
Essas
coisas não nos fazem perder de vista que o mundo em si mesmo, apesar de tudo, é
e permanece, a boa realidade criada por Deus, que Deus ama e que veio para
salvar, não para julgar: "Com efeito, de tal modo Deus amou o mundo, que
lhe deu seu Filho único, para que todo o que nele crer não pereça, mas tenha a
vida eterna" (Jo 3,16).
A
atitude em relação ao mundo que Jesus propõe a seus discípulos encerra-se em
duas preposições: estar no mundo, mas não ser do mundo: “Já
não estou no mundo – diz dirigindo-se ao Pai – ; eles, pelo contrário, ainda
estão no mundo [...]. Eles não são do mundo,
como também eu não sou do mundo" (Jo 17,11.16).
Nos
primeiros três séculos, os discípulos estão bem cientes de sua posição única.
A Carta a Diogneto, um escrito anônimo do final do segundo século,
descreve dessa forma o sentimento que os cristãos tinham de si mesmos no mundo:
“Os
cristãos não diferem do resto dos homens nem pelo território, nem pela língua,
nem pelos hábitos de vida. De fato, não moram em cidades particulares, não usam
de uma linguagem estranha, não levam um tipo de vida especial [...]. Moram
tanto na cidade grega como na bárbara, como acontece, e apesar de iguais nas
roupas, na comida e no resto da vida segundo os costumes do lugar, se propõem
uma forma de vida maravilhosa e, segundo todos, paradoxal. Cada um mora na
própria pátria, mas como forasteiros; participam de todas as atividades de bons
cidadãos e aceitam todos os encargos como convidados passageiros. Toda terra
estrangeira é uma pátria para eles, enquanto toda pátria é, para eles, terra
estrangeira. Como todos, se casam e têm filhos, mas não expõem seus filhos.
Eles têm em comum a mesa, mas não a cama. Vivem na carne, mas não segundo a
carne” [1].
Façamos
um breve resumo da história. Quando o cristianismo se torna tolerado e depois,
em seguida, religião protegida e favorecida, a tensão entre o cristianismo e o
mundo tende, inevitavelmente, a diminuir, porque o mundo se tornou, ou pelo
menos, é considerado "um mundo cristão". Ocorre, assim, um duplo
fenômeno. De uma parte, grupos de cristãos desejosos de permanecerem o sal da
terra e não perderem o sabor, fogem, também fisicamente, do mundo e se retiram
no deserto. Nasce o monaquismo sob a bandeira do monge Arsênio: “Fuge, tace, quiesce”, “Fuja, cale, viva
retirado [2]”
Ao
mesmo tempo, os pastores da Igreja e os espíritos mais iluminados tentam
adaptar o ideal de desapego do mundo a todos os crentes, propondo uma fuga
não-material, mas espiritual, do mundo. São Basílio no Oriente e Santo
Agostinho no Ocidente conhecem o pensamento de Platão, especialmente na versão
ascética que ele havia tomado com o discípulo Plotino. Neste ambiente cultural,
estava vivo o ideal da fuga do mundo. Mas era uma fuga, por assim dizer,
vertical, não horizontal, para cima, não para o deserto. Consiste em elevar-se
por acima da multiplicidade das coisas materiais e das paixões humanas, para
unir-se ao que é divino, incorruptível e eterno.
Os
Padres da Igreja - os Capadócios em primeiro lugar - propõem uma ascética
cristã que responde a essa exigência religiosa e adota a sua linguagem, sem,
contudo, sacrificar os valores próprios do Evangelho. Para começar, a fuga do
mundo inculcada por eles é trabalho da Graça mais do que esforço humano. O ato
fundamental não está no final do caminho, mas no seu começo, no batismo.
Portanto, não é reservada a poucos cultos, mas aberta a todos. Santo Ambrósio
escreverá um breve tratado “Sobre a fuga do mundo”, dirigindo-o a todos os
neófitos [3]. A separação do mundo que ele propõe é sobretudo afetiva:
“A fuga – diz – não consiste no abandonar a terra, mas, permanecendo na terra,
em observar a justiça e a sobriedade, em renunciar aos vícios e não ao uso dos
alimentos” [4].
Este
ideal de desapego e de fuga do mundo acompanhará, em formas diferentes, toda a
história da espiritualidade cristã. Uma oração da liturgia resume-o no lema: “terrena
despicere et amare caelestia”, “desprezar as coisas da terra e amar as do
céu”.