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segunda-feira, 23 de dezembro de 2024

Sequência do Natal: Eia recolamus

“Hoje, na cidade de Davi, nasceu para vós um Salvador” (Lc 2,11).

Há um ano, em dezembro de 2023, publicamos aqui em nosso blog um artigo sobre a sequência Grates nunc omnes para a Missa da Noite da Solenidade do Natal do Senhor.

Durante a Idade Média, com efeito, as principais celebrações do Ano Litúrgico contavam geralmente com uma ou mais sequências, composições poéticas entoadas antes do Evangelho da Missa, até que a reforma do Concílio de Trento (século XVI) infelizmente as reduziu a apenas quatro [1].

Era o caso da Solenidade do Natal do Senhor, que contava com ao menos três sequências, em alusão às três Missas (da Noite, da Aurora e do Dia): Grates nunc omnes, Eia recolamus e Natus ante saecula.

Adoração dos pastores
(Gerard van Honthorst) 

Essas composições foram elencadas pelo célebre Notker Balbulus (†912), monge da Abadia beneditina de São Galo (Sankt Gallen), na Suíça, em seu Liber Sequentiarum, no qual compila 38 sequências.

Após apresentamos a sequência Grates nunc omnes em 2023, nesta postagem damos continuidade à proposta com Eia recolamus laudibus piis digna, geralmente indicada para a Missa da Aurora (In aurora, In primo mane).

Contudo, uma vez que essa sequência era bastante popular em toda a Europa, às vezes aparecia indicada para a “Missa principal” do Natal (In summa Missa Nativitatis Domini, In magna Missa), isto é, a Missa com maior concurso de povo, ou então para a Missa da Noite (In galli cantu).

No Missal de Sarum, utilizado na Inglaterra durante a Idade Média, por sua vez, essa sequência era indicada para o dia 01 de janeiro, Oitava do Natal e Festa da Circuncisão do Senhor (In Octava Nativitatis Domini, In die Circumcisionis Domini).

Não está claro se Notker foi o autor do texto ou apenas o compilou. Alguns estudiosos sugerem que se trata de uma composição anônima realizada na Alemanha entre os séculos X e XI.

Não obstante, assim como outras sequências atribuídas a Notker, sua divisão em estrofes não é clara. Propomos aqui uma divisão em nove estrofes de dois versos de métrica desigual, exceto a primeira e a última estrofes, com três versos.

A composição, ademais, se caracteriza por uma espécie de “assonância”: várias palavras terminam em “a” ou em variantes (“am”, “at”), o que dá grande musicalidade ao texto.

Segue, pois, o texto da sequência no original (em latim) e em uma tradução nossa bastante livre (mais uma adaptação do que uma tradução), seguidos de um breve comentário sobre a sua teologia.


Sequentia in Nativitate Domini: Eia recolamus

1. Eia recolamus laudibus piis digna,
Hujus diei gaudia, in qua nobis lux oritur gratissima.
Noctis inter nebulosa pereunt nostri criminis umbracula.

2. Hodie saeculo maris stella est enixa novae salutis gaudia,
Quem tremunt barathra, mors cruenta pavet ipsa, a quo peribit mortua.

3. Gemit capta pestis antiqua, coluber lividus perdit spolia.
Homo lapsus, ovis abducta, revocatur ad aeterna gaudia.

quinta-feira, 19 de dezembro de 2024

Abertura do Grande Jubileu do Ano 2000 nas Dioceses

“Jesus Cristo ontem e hoje e por toda a eternidade” (Hb 13,8).

Dentro de alguns dias terá início o Jubileu Ordinário de 2025 com a Abertura da Porta Santa da Basílica de São Pedro na Missa da Noite de Natal. No domingo seguinte, por sua vez, terá início o Jubileu nas Dioceses (cf. Bula Spes non confundit).

Já recordamos aqui em nosso blog o Rito de Abertura da Porta Santa Basílica de São Pedro presidido pelo Papa São João Paulo II no dia 24 de dezembro de 1999. Nesta postagem, por sua vez, recordaremos o Rito de Abertura do Grande Jubileu do Ano 2000 nas Igrejas Particulares (Dioceses e outras circunscrições eclesiásticas).


Como estabelecido na Bula Incarnationis mysterium essa celebração teve lugar no dia 25 de dezembro de 1999, com a Missa do Dia de Natal presidida pelo Bispo Diocesano na Catedral:

“Estabeleço que a inauguração do Jubileu nas Igrejas Particulares seja celebrada no dia santíssimo do Natal do Senhor Jesus, com uma solene Liturgia Eucarística presidida pelo Bispo Diocesano na Catedral e também na concatedral... Uma vez que o rito de abertura da Porta Santa é próprio da Basílica Vaticana e das Basílicas Patriarcais, será conveniente que, na inauguração do período jubilar em cada uma das Dioceses, tenha preferência a statio em outra igreja de onde partirá a peregrinação para a Catedral, a valorização litúrgica do Livro dos Evangelhos, a leitura de alguns parágrafos desta Bula...” (Incarnationis mysterium, n. 6).

Apresentamos a seguir as linhas gerais do rito, publicado no subsídio “Bendito seja Deus para sempre: Celebrações e orações para o Ano Santo”, publicado pela Comissão Central do Grande Jubileu do Ano 2000 e traduzido para o Brasil pela Editora Paulinas.

Vale lembrar que esses textos foram aprovados especificamente para o Grande Jubileu do Ano 2000. Sua publicação aqui serve à memória histórica e ao estudo da Liturgia. Para o rito a ser utilizado neste ano de 2024, confira o subsídio publicado pela CNBB, “Jubileu 2025: Textos litúrgicos”.

Rito de Abertura do Grande Jubileu do Ano 2000 nas Igrejas Particulares
25 de dezembro de 1999

A celebração teve início em uma igreja ou outro lugar adequado fora da Catedral, de onde partiu a procissão. Se a Missa foi celebrada no fim da tarde, os fiéis podiam levar velas acesas.

Quando o Bispo, acompanhado dos ministros, chegou ao local onde os fiéis estão reunidos, podia ser entoado um refrão ou um canto adequado. O Bispo, ao invés da casula, podia revestir o pluvial.

O celebrante principal (CP), isto é, o Bispo, iniciou a celebração com o sinal da cruz, a aclamação à Trindade e a saudação:

segunda-feira, 29 de julho de 2024

História do culto aos Santos Marta, Maria e Lázaro

“Jesus entrou em um povoado, e certa mulher, de nome Marta, recebeu-o em sua casa” (Lc 10,38).

No dia 29 de julho a Igreja de Rito Romano celebra a Memória dos Santos Marta, Maria e Lázaro, instituída pelo Papa Francisco em 2021, substituindo a Memória de Santa Marta, que até então se celebrava nessa mesma data.

Nesta postagem gostaríamos de percorrer brevemente a história do culto dos três irmãos de Betânia, venerados como “hospitum Domini” (“hospedeiros do Senhor”).

Jesus na casa de Marta, Maria e Lázaro

1. Fundamentos bíblicos

As irmãs Marta e Maria nos são apresentadas no capítulo 10 do Evangelho de Lucas, quando recebem Jesus em sua casa: Marta se apressa em servi-lo e Maria senta-se aos seus pés para escutá-lo (Lc 10,38-42). Este relato da filoxenia (hospitalidade) é proclamado sobretudo no XVI Domingo do Tempo Comum (Ano C).

Marta e Maria reaparecem no capítulo 11 do Evangelho de João, no relato da ressurreição de Lázaro, quando professam sua fé em Cristo (Jo 11,1-44). Não confundir este Lázaro ressuscitado pelo Senhor com o personagem de mesmo nome mencionado na parábola do rico e Lázaro, de caráter simbólico (Lc 16,19-31).

A ressurreição de Lázaro é o último dos sete grandes “sinais” do Quarto Evangelho, antecedendo diretamente o Mistério Pascal da Morte-Ressurreição de Cristo. Portanto, no Rito Romano esse episódio é lido no V Domingo da Quaresma (Ano A), unido ao III Escrutínio em preparação para os Sacramentos da Iniciação Cristã.
Para saber mais, confira nossa postagem sobre o ícone da ressurreição de Lázaro.

Por fim, os irmãos estão presentes no episódio da “unção de Betânia” (Jo 12,1-11), “seis dias antes da Páscoa”, quando Maria unge os pés do Senhor com perfume, gesto interpretado como “profecia” da sua sepultura [1]. Este episódio é lido na Segunda-feira da Semana Santa.

2. O culto aos Santos Marta, Maria e Lázaro no Oriente

No Rito Bizantino o relato da ressurreição de Lázaro é lido no sábado que antecede o Domingo de Ramos, denominado justamente “Sábado de Lázaro”. A celebração desse dia em Betânia, na igreja conhecida como “Lazarium”, é atestada já no século IV pela peregrina Etéria [2].

Ressureição de Lázaro
(Léon Bonnat)

Marta e Maria de Betânia, por sua vez, são celebradas nesse Rito no III Domingo da Páscoa, o “Domingo das Miróforas” (ou “Mirróforas”), isto é, as mulheres que levaram perfumes (em grego, myron) ao túmulo do Senhor na manhã da Ressurreição. Embora os Evangelhos não as mencionem, são associadas a esse grupo por sua amizade com Jesus e por sua presença na “unção de Betânia”.

O “Sábado de Lázaro” e o “Domingo das Miróforas”, porém, não são celebrações hagiológicas (de santos), mas sim cristológicas, em honra do Senhor que ressuscita Lázaro dos mortos e que é “ungido com perfume” pelas mulheres.

quarta-feira, 24 de julho de 2024

Missa votiva: Grande Jubileu do Ano 2000

Daqui cinco meses, no dia 24 de dezembro, durante a Missa da Noite de Natal na Basílica de São Pedro no Vaticano, terá início o Jubileu Ordinário de 2025. No domingo seguinte, 29 de dezembro, Festa da Sagrada Família, terá início o Jubileu nas Dioceses (cf. Bula Spes non confundit).

Como indicado nas Normas sobre a concessão de indulgências, durante o Ano Santo será possível celebrar uma Missa própria para o Jubileu, sobretudo nas peregrinações à Catedral ou outras igrejas jubilares estabelecidas pelo Bispo Diocesano. Trata-se de uma Missa votiva, a ser rezada para promover a devoção dos fiéis.

Enquanto aguardamos a publicação do formulário para 2025 pelo Dicastério para a Evangelização (1ª seção) e sua tradução pela CNBB, aproveitamos a ocasião para recordar a Missa votiva do Grande Jubileu do Ano 2000.

Para o Grande Jubileu, com efeito, foram propostos dois formulários de Missa (com todas as orações próprias, incluindo o Prefácio), a serem celebradas com paramentos brancos por ocasião de celebrações especiais durante o Ano Santo, exceto nas solenidades, nos domingos e nas festas, na Oitava da Páscoa, na Comemoração dos Fiéis Defuntos, na Quarta-feira de Cinzas e na Semana Santa.

Também foram propostas algumas sugestões de leituras, a serem proferidas nos dias de semana do Tempo Comum. Nos demais Tempos, porém, deviam ser proferidas as leituras do dia.

Logotipo do Grande Jubileu

Confira a seguir os dois formulários de Missa conforme propostos no subsídio “Bendito seja Deus para sempre: Celebrações e orações para o Ano Santo”, publicado pela Comissão Central do Grande Jubileu do Ano 2000 e traduzidos para o Brasil pela Editora Paulinas.

Vale lembrar que essas orações não podem ser usadas na Missa, uma vez que foram aprovadas especificamente para o Jubileu do Ano 2000. Sua publicação aqui serve à memória histórica e ao estudo da Liturgia.

Grande Jubileu do Ano 2000
Missa votiva para o Ano Santo

Formulário A

Antífona de entrada (Sl 89,1-2)
Vós fostes um refúgio para nós, ó Senhor, de geração em geração;
desde sempre e para sempre vós sois Deus (T.P. Aleluia).

Oração do dia
Ó Deus, na plenitude dos tempos enviastes o vosso Filho ao mundo como Salvador. Concedei que Ele ilumine, como peregrinos neste mundo, o nosso caminho até vós, com a luz do seu Mistério Pascal. Por nosso Senhor Jesus Cristo, vosso Filho, na unidade do Espírito Santo. Amém.

Oração sobre as oferendas
Fazei, Senhor, que vos sejam agradáveis os dons que vos apresentamos, ao celebrarmos com alegria este Ano Santo, para que participemos da vida eterna do vosso Filho que, por sua Morte, destruiu a nossa. Por Cristo, nosso Senhor. Amém.

quarta-feira, 20 de março de 2024

Sequência da Páscoa: Laudes Salvatori

“Este é o dia que o Senhor fez para nós: alegremo-nos e nele exultemos!” (Sl 117,24).

Um símbolo recorrente nas diversas tradições religiosas é o “centro” ou “eixo do mundo” (em latim, axis mundi): uma árvore, uma montanha, um templo... a partir do qual o ser humano podia conectar-se com a divindade.

A árvore como axis mundi
(Hilma af Klint - Tree of Knowledge)

Na tradição judaica, por exemplo, o “centro do mundo” era situado no Templo de Jerusalém. No Cristianismo, porém, o próprio Jesus diz à mulher samaritana que o mais importante não é onde adorar a Deus, mas sim como adorá-lo: “em espírito e verdade” (cf. Jo 4).

Assim, embora os cristãos construam templos onde a comunidade se reúne para partilhar a Palavra e os Sacramentos, no Cristianismo de certa forma “o tempo é mais importante que o espaço”. 

Portanto, mais do que o “axis mundi”, a tradição cristã reflete sobre o “axis temporis”, o “eixo do tempo”: a Encarnação do Verbo de Deus, entendida aqui em sentido amplo, desde sua Concepção até sua Ascensão aos céus.

O próprio Jesus inicia sua pregação afirmando que “o tempo se cumpriu” (Mc 1,15). O mesmo atesta São Paulo, situando a vinda do Filho de Deus “na plenitude dos tempos” (Gl 4,4; cf. também Hb 1,2).

Não é de estranhar, portanto, que uma das antigas sequências propostas para o Domingo de Páscoa seja uma grande “recapitulação” da vida de Jesus. Trata-se da sequênciaLaudes Salvatori” (Os louvores do Salvador), prescrita para o “dia santo da Páscoa” (in die sancto Paschae) ou “na Ressurreição do Senhor” (in Resurrectione Domini). Para saber mais, confira nossa postagem sobre a história do Domingo de Páscoa.

Esta “sequência pascal” (Sequentia Paschalis) é a nona das 38 composições presentes no Liber Sequentiarum compilado por Notker Balbulus (†912), monge beneditino da Abadia de São Galo (Sankt Gallen), na Suíça.

As sequências, com efeito, composições poéticas entoadas antes do Evangelho da Missa, se popularizaram no Rito Romano a partir do século X. A reforma do Concílio de Trento (séc. XVI), porém, infelizmente as reduziu a apenas quatro, conservando para a Missa do Domingo de Páscoa a sequência “Victimae paschali laudes”, atribuída a Wippo de Borgonha (†1050) [1].

No Missal de Sarum, por sua vez, utilizado na Inglaterra durante a Idade Média, era prescrita uma sequência para cada dia da Oitava Pascal, incluindo “Laudes Salvatori” no II Domingo da Páscoa [2].

Outra sequência pascal sobre a qual já falamos aqui em nosso blog era “Zyma vetus expurgetur”, atribuída a Adão de São Vítor (†1146), na qual vários acontecimentos do Antigo Testamento são lidos à luz do mistério de Cristo (leitura tipológica).

Na sequência “Laudes Salvatori”, como afirmamos anteriormente, os eventos da vida terrena de Cristo são lidos à luz da sua Páscoa. O próprio Evangelho atesta que os discípulos só compreenderam muitas coisas que Jesus fez e disse “depois que Ele ressuscitou dos mortos” (cf., por exemplo, Jo 2,22-24).

Além disso, embora a Igreja tenha distribuído “pedagogicamente” a celebração dos mistérios de Cristo no ciclo do Ano Litúrgico (cf. Sacrosanctum Concilium, n. 102), cada celebração litúrgica é celebração do mistério de Cristo em sua totalidade, sobretudo do Mistério Pascal da sua Morte-Ressurreição.

A anamnese (memorial) da história da salvação presente na sequência encontra eco também em alguns candelabros para o círio pascal realizados durante a Idade Média: essas “colunas pascais” costumavam retratar diversas cenas da vida de Cristo, culminando em seu Mistério Pascal. Para saber mais, confira nossa postagem sobre a história da Vigília Pascal.

Coluna pascal
Basílica de São Paulo fora dos muros (Roma)

Como já fizemos com outras composições aqui em nosso blog, propomos a seguir a sequência Laudes Salvatori em seu texto original em latim, seguida de uma tradução nossa bastante livre e de alguns comentários destacando suas diversas citações bíblicas.

Como as demais sequências atribuídas a Notker, sua divisão em estrofes não é clara. Propomos aqui uma divisão em dez estrofes com distintos números de versos.

Sequentia Paschalis
Laudes Salvatori voce modulemur supplici

1. Laudes Salvatori voce modulemur supplici. 

2. Et devotis melodiis caelesti
Domino iubilemus Messiae,
qui se ipsum exinanivit ut nos
perditos liberaret homines.

quarta-feira, 6 de março de 2024

O IV Domingo da Quaresma: Domingo Laetare

Alegra-te, Jerusalém! Reuni-vos, vós todos que a amais; vós que estais tristes, exultai de alegria! Saciai-vos com a abundância de suas consolações” (cf. Is 66,10-11).

O IV Domingo da Quaresma é conhecido também como Domingo Laetare, em referência à antífona de entrada: Laetáre, Ierúsalem...

Os “motivos” dessa alegria são a proximidade da Páscoa, na qual a Igreja acolherá novos filhos pelo sacramento do Batismo, e a chegada da primavera no hemisfério norte, como veremos ao longo dessa postagem.

A cruz, venerada pelos bizantinos no centro da Quaresma

1. A origem do Domingo Laetare

Entre os séculos IV e V os fiéis de Rito Bizantino começaram a solenizar a metade da Quaresma e da Páscoa com festas em honra de Cristo como Mediador entre nós e o Pai (cf. 1Tm 2,5).

Na quarta-feira da IV semana da Páscoa, o 25º dia desse Tempo, com efeito, os bizantinos celebram a festa do “Meio-Pentecostes” (ou Meso-Pentecostes), recordando o texto de Jo 7,14: “Quando a festa já estava pela metade, Jesus subiu ao Templo para ensinar...”. O convite de Jesus a beber da “água viva” (Jo 7,37-38), por sua vez, precede a leitura do Evangelho da samaritana no domingo seguinte (Jo 4,5-42).

A metade da Quaresma, porém, oscila entre a terceira e a quarta semanas nas diversas tradições, uma vez que há diferentes formas de contar os “40 dias”.
Para saber mais, confira nossa postagem sobre a história da Quaresma.

No Rito Bizantino a Quaresma começa na segunda-feira da 7ª semana antes da Páscoa, de modo que a “metade” desse Tempo, do qual se exclui a Semana Santa, é celebrada no III Domingo, conhecido como Domingo da Santa Cruz [1].
Para saber mais, confira nossa postagem sobre a história da Festa da Exaltação da Santa Cruz.

No Rito Romano, por sua vez, a Quaresma originalmente começava no 6º domingo antes da Páscoa, de modo que a “hebdomada mediana” (semana média) tradicionalmente era a quarta.

Como “eco” do citado Domingo da Santa Cruz, em Roma fixou-se como “igreja estacional” para o IV Domingo da Quaresma a Basílica da Santa Cruz em Jerusalém (Santa Croce in Gerusalemme), na qual conservam-se algumas das supostas relíquias da Paixão e sob a qual Santa Helena (†330) teria mandado espalhar terra de Jerusalém.
Para saber mais, confira nossa postagem sobre as estações quaresmais romanas.

Basílica da Santa Cruz “em Jerusalém” (Roma)

Vários textos litúrgicos desse Domingo, portanto, faziam referência à “cidade santa”, como a célebre antífona de entrada: “Laetáre, Ierúsalem...” - “Alegra-te, Jerusalém...”, tomada da terceira parte do Livro de Isaías (Is 56–66), expressando a alegria do povo de Israel em retornar a casa após o exílio da Babilônia.

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2024

Os sete salmos penitenciais

Tende piedade, ó meu Deus, misericórdia!” (Sl 50,3).

O Tempo da Quaresma, como recorda a Constituição Sacrosanctum Concilium (n. 109), possui uma dupla característica: batismal e penitencial. Sobretudo à luz desta última, esse tempo é particularmente adequado para a recitação dos sete salmos penitenciais (septem psalmi paenitentiales ou poenitentiales).

Davi em oração (Pieter de Grebber)

1. A origem dos sete salmos penitenciais

Ao percorrermos os 150 cânticos que integram o Livro dos Salmos (Sl), encontramos diversos gêneros literários: louvor, ação de graças, súplica, textos sapienciais... Dentre os salmos de súplica, a Igreja selecionou sete para expressar de maneira particular o arrependimento dos pecados, o pedido de perdão a Deus, com a confiança na sua misericórdia, e o propósito de conversão: Sl 6, 31(32), 37(38), 50(51), 101(102), 129(130) e 142(143).

A tradição dos “salmos penitenciais” remonta ao menos ao século V. Na biografia de Santo Agostinho (†430) escrita por seu discípulo Possídio (Vita Sancti Augustini), se menciona que esse, antes de morrer, “mandou copiar para si os salmos de Davi chamados penitenciais” [1].

O texto, porém, não diz quais seriam esses salmos nem o seu número. Certamente dentre esses estava o Salmo 50 (Miserere), que desde o início da Igreja foi considerado o “salmo penitencial” por excelência, associado ao pedido de perdão do rei Davi após o seu pecado e a repreensão do profeta Natã (cf. 2Sm 11,1–12,9).

Posteriormente ganharia destaque também o Salmo 129 (De profundis), associado tanto a ritos penitenciais quanto aos ofícios pelos defuntos.

De toda forma, o primeiro a propor a lista dos sete salmos penitenciais como a conhecemos parece ter sido o célebre escritor romano Cassiodoro (580). Em sua Exposição sobre o Saltério (Expositio in Psalterium), ao tratar do Salmo 6, exorta o leitor a lembrar que este é “o primeiro salmo ‘dos penitentes’” (“Memento autem quod hic poenitentium primus est psalmus”), elencando em seguida os outros seis [2].

A exortação a “lembrar” dá a entender que a lista já era conhecida nessa época (século VI). O autor ainda interpreta o número “sete” em alusão às diversas formas pelas quais obter o perdão dos pecados: pelo Batismo, o martírio, as obras de caridade, etc.

A fixação dos “sete salmos”, com efeito, certamente está relacionada ao amplo simbolismo que esse número possui na tradição judaico-cristã, representando a “plenitude”: sete dias da semana, sete dons do Espírito Santo, sete sacramentos... [3].

Cassiodoro (†580) na biblioteca do seu mosteiro, chamado Vivarium
(Miniatura do século VIII)

2. Os sete salmos penitenciais na Liturgia

Ao longo da Idade Média, a recitação dos salmos penitenciais foi ganhando cada vez mais espaço na Liturgia de Rito Romano. Em diversas celebrações, com efeito, esses eram recitados na sequência, às vezes acompanhados da Ladainha de Todos os Santos, além de antífonas, responsórios e orações:

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2024

Sequência da Apresentação do Senhor: Concentu parili hic te

Quando se completaram os dias para a purificação da Mãe e do Filho, Maria e José levaram Jesus a Jerusalém, a fim de apresentá-lo ao Senhor” (Lc 2,22).

No dia 02 de fevereiro, 40 dias após o Natal, a Igreja celebra a Festa da Apresentação do Senhor, conforme o relato do Evangelho de Lucas (Lc 2,22-40).

Entre os cristãos orientais, onde a festa teve sua origem, esta é conhecida como Hypapanté, “Encontro”, pois celebra o encontro entre o Antigo e o Novo Testamento, entre Deus e o seu povo, que esperava a salvação.

Quando foi acolhida no Ocidente a partir do século VII, porém, a festa adquiriu um caráter mais mariano, sendo conhecida como “Purificação de Maria”. A ênfase cristológica só seria recuperada com a reforma litúrgica do Concílio Vaticano II.
Para saber mais, confira nossa postagem sobre a história da Festa da Apresentação do Senhor.

Apresentação do Senhor (Giotto)

Por esse motivo, a sequência proposta para o dia 02 de fevereiro possui um forte acento mariano: Concentu parili hic te (Unanimemente o povo te venera). Esta é a oitava das 38 composições presentes no Liber Sequentiarum compilado por Notker Balbulus (†912), monge beneditino da Abadia de São Galo (Sankt Gallen), na Suíça.

A partir do século X, com efeito, se tornaram muito populares no Rito Romano as sequências, composições poéticas em honra do mistério celebrado que eram entoadas antes do Evangelho da Missa. Infelizmente a reforma litúrgica do Concílio de Trento (séc. XVI) as reduziu a apenas quatro [1].

A fim de resgatar esse precioso tesouro da Igreja, como já fizemos com outras composições, publicamos a seguir o texto original da sequência para a Festa da Purificação da Bem-aventurada Virgem Maria (In Purificatione Beatae Mariae Virginis), seguido de uma tradução nossa bastante livre (mais uma “adaptação” do que uma “tradução”) e um breve comentário sobre o texto.

Propomos uma divisão da sequência em sete estrofes de seis ou oito versos (à exceção da última, com sete versos).

Sequentia in Purificatione Beatae Mariae Virginis:
Concentu parili hic te

1. Concentu parili hic te,
Maria, veneratur populus
teque piis colit cordibus.
Generosi Abrahae tu filia
veneranda, regia de Davidis
stirpe genita.

sábado, 6 de janeiro de 2024

Sequência da Epifania: Festa Christi omnis

Vimos sua estrela no Oriente e viemos adorar o Senhor” (cf. Mt 2,2).

Como vimos em postagens anteriores aqui em nosso blog, a partir do século X se tornaram muito populares no Rito Romano as sequências, composições poéticas entoadas antes do Evangelho da Missa em honra do mistério celebrado [1].

No início do século X, com efeito, Notker Balbulus (†912), monge beneditino da Abadia de São Galo (Sankt Gallen), na Suíça, compilou 38 composições em seu Liber Sequentiarum [2].

Nesta postagem gostaríamos de apresentar a sétima sequência compilada por Notker, intitulada Festa Christi omnis (“A festa de Cristo”), para a Solenidade da Epifania do Senhor (In Epiphania Domini), celebrada pelas Igrejas do Oriente e o Ocidente no dia 06 de janeiro.

A jornada dos Magos a Belém, guiados pela estrela
(Leopold Kupelwieser)

Publicamos a seguir o texto original da sequência (em latim) e uma tradução nossa bastante livre (mais uma “adaptação” do que uma “tradução”), além de um breve comentário sobre o texto.

Como as demais composições de Notker, a sequência Festa Christi omnis não possui uma divisão em estrofes clara. Propomos uma divisão dos seus 40 versos em 10 estrofes de quatro ou seis versos, à exceção da primeira e da última, com apenas dois versos.

A divisão temática, por sua vez, é notória: após uma introdução (versos 1-6), contempla-se a visita dos Magos (vv. 7-16), o massacre dos Inocentes (vv. 17-24) e, por fim, o Batismo do Senhor (vv. 25-40).

A Solenidade da Epifania do Senhor, com efeito, contempla a “manifestação” de Cristo em um sentido amplo, embora com diferentes ênfases: no Ocidente se enfatiza a visita dos Magos ao Menino e no Oriente o Batismo do Senhor no Jordão.

Sequentia in Epiphania Domini: Festa Christi omnis

1. Festa Christi omnis
Christianitas celebret.

2. Quae miris sunt modis ornata
cunctisque veneranda populis
Per omnitenentis adventum
atque vocationem gentium.

3. Ut natus est Christus, est stella
magis visa lucida.
At illi, non cassam putantes
tanti signi gloriam.

terça-feira, 26 de dezembro de 2023

A Oitava do Natal

Quando se completaram os oito dias... deram-lhe o nome de Jesus” (Lc 2,21).

Assim como a Páscoa da Ressurreição, a Solenidade do Natal do Senhor é enriquecida no Rito Romano com uma Oitava, isto é, com uma celebração prolongada por oito dias, de 25 de dezembro a 01 de janeiro.

Nascimento de Jesus (Charles Le Brun)

1. Simbolismo do número “oito” e origem da Oitava do Natal

Na tradição cristã, o número oito é associado ao domingo, o “dia do Senhor”, que é ao mesmo tempo o primeiro e o oitavo dia da semana, no qual tem lugar a nova criação iniciada na Ressurreição do Senhor (cf. Mt 28,1 e paralelos) [1].

Assim, logo as grandes festas passaram a ser enriquecidas com uma “oitava”, tanto como uma celebração prolongada por oito dias quanto como um “eco” da festa apenas no oitavo dia (octava dies).

A primeira a ser celebrada foi a Oitava da Páscoa, já a partir dos séculos III-IV, e que corresponde ao primeiro modelo: uma celebração prolongada por oito dias, nos quais tinham lugar as “catequeses mistagógicas” aos neófitos (aqueles que haviam recebido os sacramentos da Iniciação Cristã na Vigília Pascal).

Para saber mais, confira nossa postagem sobre a Oitava da Páscoa.

Também no século IV se celebrava no Oriente a Oitava da Epifania, de 06 a 13 de janeiro. Vale lembrar que nessa época a Epifania celebrava tanto o nascimento do Senhor quanto sua manifestação aos povos.

A partir do século V, porém, as Igrejas do Oriente acolheram a celebração ocidental do nascimento do Senhor no dia 25 de dezembro e as Igrejas do Ocidente acolheram a festa da Epifania a 06 de janeiro.

Para saber mais, confira nossas postagens sobre a história da Solenidade do Natal do Senhor e sobre a história da Solenidade da Epifania.

A peregrina Etéria (ou Egéria), que visitou a Terra Santa em meados do século IV, testemunha a celebração da Oitava da Epifania tanto em Jerusalém como em Belém: “Durante oito dias, celebra-se com todo este júbilo e esplendor... Em Belém, durante toda esta oitava, todos os dias há este esplendor e esta festa...” [2].

Em Roma, após a proclamação do dogma da Maternidade Divina de Maria no Concílio de Éfeso (431), o oitavo dia após o Natal passou a ser celebrado como festa em honra da Santa Mãe de Deus.

Vemos aqui a influência das “festas associadas” ou “festas decorrentes” da tradição oriental: após a celebração de um evento da história da salvação recordam-se os personagens que participaram dele [3]. No Rito Bizantino, por exemplo, se celebra a “Sinaxe da Mãe de Deus” em 26 de dezembro, no dia seguinte ao Natal.

Note-se que não temos aqui uma oitava como celebração prolongada por oito dias, como na Páscoa, mas apenas dois dias de festa: o primeiro (25 de dezembro) e o oitavo (01 de janeiro).

No final do século VII, porém, quando o Papa Sérgio I (†701), de origem síria, popularizou diversas celebrações orientais em Roma, incluindo várias festas marianas [4], a celebração da Mãe de Deus a 01 de janeiro perdeu importância, passando a ser simplesmente a “Oitava do Natal” (In Octava Nativitatis Domini).

Vitral em honra da Mãe de Deus (Mater Dei)

Posteriormente, entre os séculos XIII e XIV, Roma acolheria a Festa da Circuncisão do Senhor no dia 01 de janeiro. Esta tem sua origem na Espanha, em meados do século VI, quando começa a organizar-se o Rito Hispano-Mozárabe a partir da cidade de Toledo.

Uma vez que nesse Rito a Festa da Mãe de Deus é celebrada no dia 18 de dezembro, oito dias antes do Natal, no dia 01 de janeiro, em consonância com o Evangelho (Lc 2,21), foi instituída a Festa da Circuncisão do Senhor (In Circuncisione Domini).


2. Os santos da Oitava do Natal, “companheiros de Cristo”

Em Jerusalém e Constantinopla, entre os séculos IV-V (antes da acolhida da celebração do Natal no dia 25 de dezembro, quando ainda se celebrava o nascimento do Senhor na Epifania, a 06 de janeiro), os últimos dias do mês de dezembro eram dedicados à celebração de alguns santos:
25 de dezembro: Rei Davi e São Tiago, o “irmão do Senhor”
26 de dezembro: Santo Estêvão
27 de dezembro: São Pedro e São Paulo
28 de dezembro: São Tiago Maior e São João Evangelista

sexta-feira, 22 de dezembro de 2023

Sequência do Natal: Grates nunc omnes

“Uma multidão da coorte celeste cantava louvores, dizendo: ‘Glória a Deus no mais alto dos céus...’” (cf. Lc 2,13-14).

Das cinco grandes Solenidades do Senhor elencadas nos nn. 1-2 da Tabela de precedência dos dias litúrgicos (Páscoa, Natal, Epifania, Ascensão e Pentecostes), duas possuem atualmente uma sequência própria: a Páscoa (Victimae paschali laudes) e o Pentecostes (Veni, Sancte Spiritus).

Entre os séculos X e XVI, porém, todas as principais celebrações do Ano Litúrgico contavam com uma ou mais sequências, composições poéticas entoadas antes do Evangelho da Missa que sintetizam o mistério celebrado, até que a reforma do Concílio de Trento as reduziu a apenas quatro [1].

Sandro Botticelli - Natividade mística (detalhe)

A Solenidade do Natal do Senhor, com efeito, contava com ao menos três sequências, em alusão às três Missas (da Noite, da Aurora e do Dia): Grates nunc omnes, Eia recolamus e Natus ante saecula.

Essas composições foram elencadas pelo célebre Notker Balbulus (†912), monge beneditino da Abadia de São Galo (Sankt Gallen), na Suíça, em seu Liber Sequentiarum [2].

Nesta postagem gostaríamos de apresentar a sequência Grates nunc omnes (“Demos graças, todos, agora”), ora indicada para a Missa da Noite do Natal (In galli cantu, In prima Missa), ora para a Missa da Aurora (In primo mane). Contudo, é mais adequada para a primeira, dada sua referência ao canto dos anjos, recordado no Evangelho da Missa da Noite (Lc 2,1-14).

A maioria dos estudiosos considera que essa sequência não é de Notker, sendo acrescentada posteriormente em seu elenco. Trata-se, provavelmente, de uma composição anônima realizada no sul da Alemanha no século XI.

Originalmente era composta por apenas duas estrofes: Grates nunc omnes reddamus Domino Deo (5 versos) e Huic oportet ut canamus (3 versos). Logo, porém, foi enriquecida com outras cinco estrofes de 5 versos.

Com efeito, se a primeira estrofe nos convida a dar graças a Cristo, as seguintes estendem a ação de graças ao Pai e ao Espírito Santo (estrofes 2-3), à Trindade como um todo (4), à Virgem Maria (5) e aos anjos (6).

Nessa “forma longa” da sequência, a segunda estrofe do texto original, Huic oportet, podia também ser entoada como refrão, repetida a cada estrofe.

A composição, com efeito, era muito popular entre o final da Idade Média e o início da Idade Moderna, sendo acolhida inclusive em ambiente luterano, recebendo adaptações para as línguas vernáculas, e entoada em diversos momentos do culto.

Em alguns lugares, pois, era entoada como canto de entrada ou de Comunhão, considerando sua forma de “ladainha”, intercalando o “convite ao louvor” a um refrão.

Além disso, o convite “reddamus”, do verbo “reddere” (“dar”, no sentido de “dar graças”), pode ser facilmente associado ao verbo “redire” (“retornar”, no sentido de “retornar a Deus”, simbolismo expresso no gesto da procissão).

Sandro Boticelli - Natividade mística (detalhe)

Segue, pois, o texto da sequência Grates nunc omnes (forma longa) no original (em latim) e em uma tradução nossa bastante livre.

Sequentia in Nativitate Domini: Grates nunc omnes

1. Grates nunc omnes
reddamus Domino Deo,
qui sua nativitate
nos liberavit
de diabolica potestate.

2. Grates nunc omnes
reddamus aeterno Patri,
pro sua qui pietate
mundo salutem
de matris contulit puritate.

segunda-feira, 4 de dezembro de 2023

60 anos da Constituição Sacrosanctum Concilium

No dia 04 de dezembro de 2023 celebramos os 60 anos da Constituição Sacrosanctum Concilium sobre a sagrada Liturgia, promulgada no encerramento da 2ª sessão do Concílio Vaticano II.

Reproduzimos a seguir um texto do Padre Washington Paranhos, SJ, publicado em duas partes no site da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE), no qual destaca alguns aspectos desse importantíssimo documento:

A Constituição Sacrosanctum Concilium e a reforma litúrgica 60 anos depois
Pe. Washington Paranhos, SJ

Com a Constituição Sacrosanctum Concilium, aprovada em 04 de dezembro de 1963, pela primeira vez um Concílio Geral da Igreja Católica promulgou um documento sobre a Liturgia do Rito Romano. A reforma da Liturgia fazia parte do aggiornamento do Concílio Vaticano II (1962-1965). O aggiornamento da vida eclesial não tem sido tão visível em nenhum outro lugar, mas também não tem sido tão controverso como no contexto da Liturgia. Como a hermenêutica do Concílio em geral, também hoje a hermenêutica da Constituição sobre a Liturgia é, em parte, objeto de acalorada controvérsia. Não é exagero falar em “batalha interpretativa”, como afirma Massimo Faggioli, e isso também se aplica à historiografia do Concílio.

Sessão do Concílio Vaticano II

Faz-se necessário reconhecer quão altamente eloquente foi a escolha de colocar a Liturgia em primeiro plano, fazendo da Sacrosanctum Concilium o primeiro documento promulgado pelo Concílio Vaticano II. Plenamente consciente do valor e do significado desta circunstância, o Papa Paulo VI fez-se intérprete da alegria de toda a Igreja:

“Exulta o nosso espírito com este resultado. Vemos que se respeitou nele a escala dos valores e dos deveres:  Deus está em primeiro lugar; a oração é a nossa primeira obrigação; a Liturgia é a fonte primeira da vida divina que nos é comunicada, a primeira escola da nossa vida espiritual, primeiro dom que podemos oferecer ao povo cristão que, juntamente conosco, crê e ora, e primeiro convite ao mundo, para que solte a sua língua muda em oração feliz e autêntica, e sinta a inefável força regeneradora, ao cantar conosco os louvores divinos e as esperanças humanas, por Cristo nosso Senhor e no Espírito Santo” (Paulo VI, Discurso no encerramento da segunda sessão do Concílio Vaticano II, 04 de dezembro de 1963).

quinta-feira, 7 de setembro de 2023

Sequência da Natividade de Maria: Stirpe Maria regia

“É hoje o nascimento de Maria, a Virgem santa, descendente de Davi” [1].

As sequências, composições poéticas a serem entoadas antes do Evangelho da Missa e que sintetizam o mistério celebrado, se popularizaram no Rito Romano a partir do século X [2].

No início do século X, com efeito, um monge beneditino da Abadia de São Galo (Sankt Gallen), na Suíça, Notker Balbulus (†912), isto é, Notker “o Gago”, compilou 38 composições em seu Liber Sequentiarum [3].

Nesta postagem gostaríamos de apresentar a 20ª sequência compilada por Notker: Stirpe Maria regia (“Descendente de estirpe régia”), para a Festa da Natividade da Bem-aventurada Virgem Maria, celebrada no dia 08 de setembro.

Vitral representando a “Árvore de Jessé”

Publicaremos aqui o texto original da sequência (em latim) e uma tradução nossa bastante livre (mais uma “adaptação” do que uma “tradução”), além de um breve comentário sobre o texto.

Assim como as demais sequências compiladas por Notker, não há rimas e a divisão em estrofes não está clara. Propomos a seguir uma divisão em 07 estrofes de dois ou três versos.

Sequentia: Stirpe Maria regia
In Nativitate Virginis Mariae

1. Stirpe Maria regia
Procreata regem generans Iesum.

2. Laude digna angelorum sanctorum,
Et nos peccatores tibi devotos intuere benigna.

3. Tu pios patrum mores ostentas in te,
Sed excellis eosdem.

4. Patris tui Salomonis in te lucet sophia
Et Ezechiae apud Deum cor rectum,
Sed numquam in te corrumpendum.

5. Patris Iosiae adimplevit te religiositas,
Summi etiam patriarchae te fides
Totam possedit, patris tui.

6. Sed quid nos istos recensemus heroas,
Cum tuus natus omnes praecellat illos
Atque cunctos per orbem?

7. Nos hac die tibi gregatos serva,
Virgo, in lucem mundi qua prodisti,
Paritura caelorum lumen [4].

Notker Balbulus, compilador da sequência

Sequência: Descendente de estirpe régia
Natividade da Bem-aventurada Virgem Maria

1. Descendente de estirpe régia,
Maria gerou o Rei Jesus.

2. Digna do louvor dos santos anjos,
Ela olha benigna por nós, pecadores, seus devotos.

segunda-feira, 14 de agosto de 2023

Sequência da Assunção de Maria: Congaudent angelorum chori

“Maria é elevada ao céu, alegram-se os coros dos anjos”.

Como vimos em postagens anteriores aqui em nosso blog, entre os séculos X e XVI as principais celebrações do Ano Litúrgico eram enriquecidas com uma ou mais sequências, composições poéticas a serem entoadas antes do Evangelho da Missa que sintetizavam o mistério celebrado [1].

No início do século X, Notker Balbulus (†912), isto é, Notker “o Gago”, monge beneditino da Abadia de São Galo (Sankt Gallen), na Suíça, compilou 38 composições em seu Liber Sequentiarum [2].

Nesta postagem gostaríamos de apresentar a 19ª sequência compilada por Notker: Congaudent angelorum chori (“Alegram-se os coros dos anjos”), para a Solenidade da Assunção da Bem-aventurada Virgem Maria, celebrada no dia 15 de agosto (ou transferida para o domingo seguinte, como no caso do Brasil).

Maria, assunta aos céus, é acolhida pelos anjos
(Fra Angelico, detalhe)

Propomos a seguir o texto original da sequência (em latim) e uma tradução nossa bastante livre (mais uma “adaptação” do que uma “tradução”), além de um breve comentário sobre o texto.

Assim como as demais sequências compiladas por Notker, não há rimas e a divisão em estrofes não está clara. A publicamos aqui dividida em 10 estrofes com dois ou três versos.

Sequentia: Congaudent angelorum chori
De Assumptione Beatae Virginis Mariae

1. Congaudent angelorum chori gloriosae virgini,
Quae sine virili commixtione genuit
Filium, qui suo mundum cruore medicat.

2. Nam ipsa laetatur, quo caeli iam conspicatur principem,
In terris cui quondam sugendas virgo mamillas praebuit.

3. Quam celebris angelis Maria, Iesu mater, creditur,
Qui filii illius débitos se cognoscunt famulos.

4. Qua gloria in caelis ista virgo colitur,
Quae Domino caeli praebuit hospitium sui sanctissimi corporis.

sexta-feira, 14 de julho de 2023

Sugestão de leitura: A reforma litúrgica (Dom Annibale Bugnini)

“O sagrado Concílio julga ter a obrigação de providenciar a reforma e incremento da Liturgia” (cf. Sacrosanctum Concilium, n. 1).

Este é o 50º livro que propomos como sugestão de leitura aqui em nosso blog. Portanto, para celebrar esta marca, no contexto das comemorações dos 60 anos do Concílio Vaticano II (1962-1965), trazemos uma das obras verdadeiramente fundamentais para o estudo da Liturgia: A Reforma Litúrgica (1948-1975), de Dom Annibale Bugnini (†1982).

Capa da edição brasileira

Dom Annibale Bugnini exerceu diversas funções importantes no contexto da reforma litúrgica, antes, durante e depois do Concílio Vaticano II, sobretudo como Secretário do Consilium ad Exsequendam Constitutionem de Sacra Liturgia (Conselho para a execução da Constituição da Sagrada Liturgia) e da Congregação para o Culto Divino.

A obra, portanto, reúne sua vastíssima experiência sobre o tema, desde o ano de 1948 até o ano de 1975.

Esta importantíssima obra foi publicada no Brasil em 2018 pelas Editoras Paulus, Paulinas e Loyola, a partir da 2ª edição italiana (1997), revista e enriquecida com várias notas.

A seguir apresentamos uma visão geral da obra, composta por 835 páginas divididas em 60 capítulos, agrupados por sua vez em 10 seções.

A obra inicia com um Prefácio à edição brasileira (pp. 15-21), escrito pelo revisor, Prof. Gabriel Frade; uma nota sobre a 2ª edição italiana (pp. 23-24); uma apresentação escrita pelo Padre Gottardo Pasqualetti (†2020), outro importante colaborador da reforma litúrgica (pp. 25-27); e, por fim, o Prefácio escrito pelo próprio Dom Annibale Bugnini em 1981 para a 1ª edição (pp. 29-33).

1ª SEÇÃO: AS GRANDES ETAPAS

Esta 1ª seção, a mais longa, traça um histórico da reforma litúrgica em geral, sendo subdividida em quatro partes:

I. Início da reforma

1. A chave da reforma litúrgica (pp. 39-44)
2. A Comissão preparatória (pp. 45-55)
Os primeiros dois capítulos da obra descrevem a “pré-história” da reforma conciliar: a comissão instituída por Pio XII em 1948 e aquela instituída por João XXIII em 1960, já em vista do Concílio.

3. A Constituição litúrgica do Concílio (pp. 57-64)
4. “Altiora principia” (pp. 65-71)
Os capítulos 3-4, por sua vez, são dedicados à Constituição Sacrosanctum Concilium, promulgada em 1963, apresentada aqui de maneira bastante sucinta.

5. A “Constituinte” do Consilium (pp. 73-76)
6. Motu próprio “Sacram Liturgiam” (pp. 77-80)
7. Organização do trabalho (pp. 81-87)
Nesses capítulos apresenta-se a história do “Consilium”, organismo criado em 1964 e encarregado da aplicação da Sacrosanctum Concilium.

8. A Sagrada Congregação para o Culto Divino (pp. 89-108)
Por fim, Dom Bugnini conclui este primeiro percurso histórico com os primeiros anos da Congregação para o Culto Divino (1969-1975).

II. Primeiras realizações

9. 07 de março de 1965: Passagem do latim ao vernáculo (pp. 111-121)
10. Mudanças no Missal (pp. 123-129)
11. Concelebração (pp. 131-139)
Nestes três capítulos, como o título indica, são apresentadas as primeiras realizações do Consilium: a passagem do latim para as línguas vernáculas, as primeiras mudanças no rito da Missa e a concelebração.

Dom Annibale Bugnini (†1982)

III. Dois campos de ação

a) Preparação da reforma litúrgica
12. Reuniões (pp. 143-188)
13. Observadores no Consilium (pp. 189-191)
No capítulo 12 Dom Bugnini faz um elenco das reuniões do Consilium e da Congregação para o Culto Divino de 1964 a 1972, enquanto no capítulo 13 comenta brevemente a presença de observadores não católicos no Consilium.

b) Promoção da pastoral litúrgica
14. Cartas aos Presidentes das Conferências Episcopais (pp. 193-202)
15. Encontros (pp. 203-212)
16. Traduções (pp. 213-223)
17. Notitiae (pp. 225-230)
Nesses capítulos elencam-se as diversas formas de trabalho do Consilium: cartas, encontros, orientações sobre a tradução dos textos litúrgicos e a criação da Revista Notitiae.

sexta-feira, 2 de junho de 2023

História do Tempo Comum

“Há um tempo para tudo o que acontece debaixo do céu” (Ecl 3,1).

O Ano Litúrgico do Rito Romano é composto por três grandes ciclos: o Ciclo do Natal, o Ciclo da Páscoa e o Tempo Comum (em latim, Tempus per annum; traduzido em outros idiomas como “Tempo Ordinário”), cuja história traçaremos brevemente nesta postagem.

Anjo em um fundo verde, cor própria do Tempo Comum
(Vitral do Santuário Nacional de Aparecida)

1. Desenvolvimento da celebração do Tempo Comum

Enquanto os outros dois ciclos têm seu núcleo na celebração anual do Natal e da Páscoa, o núcleo do Tempo Comum é o domingo, o dia do Senhor, nossa “Páscoa semanal”, a “pedra fundamental” do edifício do culto cristão: desde o tempo do Novo Testamento (século I), com efeito, a comunidade se reúne neste dia para ouvir a Palavra de Deus e partir o Pão (cf. At 2,42).

Durante as 33 ou 34 semanas que compõem esse tempo a Igreja não celebra um aspecto particular da vida e da missão do seu Senhor, mas sim o mistério de Cristo em sua plenitude (cf. Normas Universais sobre o Ano Litúrgico e o Calendário, n. 43). Por isso alguns liturgistas chamam os domingos do Tempo Comum de “domingos em estado puro”.

Como recorda o Catecismo da Igreja Católica, “toda a vida de Cristo é mistério” (nn. 512-521). Se celebrássemos apenas os chamados “tempos fortes” (Advento, Natal, Quaresma, Páscoa), estes seriam festas isoladas. A salvação não se dá apenas em eventos “extraordinários”, mas sobretudo no “ordinário”, no quotidiano da vida. Portanto, o Tempo Comum “preenche” a maior parte do Ano Litúrgico - do Natal até a Quaresma e da Páscoa até o Advento - com o mistério da salvação:

“No decorrer do ano, [a Igreja] expõe todo o mistério de Cristo, desde a Encarnação e a Natividade até a Ascensão, o dia de Pentecostes e a expectativa da feliz esperança da sua volta gloriosa”
(Constituição Sacrosanctum Concilium, n. 102).

Assim, podemos definir o Tempo Comum como a peregrinação da Igreja, vivificada pelo Espírito Santo, ao encontro do seu Esposo.

O Tempo Comum é como um “eco” do Pentecostes,
a efusão do Espírito, “Senhor que dá vida” a toda criatura

Os primeiros textos litúrgicos para o Tempo Comum remontam ao Sacramentário Gelasiano (séc. VII-VIII), que traz dezesseis formulários de Missas para os domingos: “Orationes et preces per dominicis diebus”.

Esta série de Missas, porém, costumava ser celebrada a partir da Festa dos Apóstolos São Pedro e São Paulo (29 de junho), uma vez que:
- Os domingos entre o Natal e o início da Quaresma (ou da Septuagésima) estavam ainda ligados ao Natal, cuja celebração em alguns lugares se estendia até o dia 02 de fevereiro, Festa da Apresentação do Senhor;
- Os domingos logo após o Tempo Pascal, por sua vez, serviam como uma espécie de “eco” do Pentecostes. O primeiro domingo após esta solenidade, por exemplo, estava ligado às Têmporas de verão (no hemisfério norte).