Toda liturgia deveria
ser capaz de expressar a grandeza que é pertencer à Igreja. Tudo nela deveria
nos dizer ao coração: “Esta é a tua casa. Este é o teu lugar. Tudo aquilo por
que tanto anseia o mais profundo de tua alma… está aqui”.
“Quão amável, ó Senhor, é vossa casa,
quanto a amo, Senhor Deus do universo!
Minha alma desfalece de saudades
e anseia pelos átrios do Senhor!
[...]
Na verdade, um só dia em vosso templo
vale mais do que milhares fora dele!”
(Sl 83(84),2-3.11)
É notório o trabalho pastoral e teológico que Bento XVI,
antes mesmo de ser eleito Papa, realizou no âmbito da sagrada Liturgia. Quem
não conhece esse trabalho tem agora a oportunidade de adquirir a obra
Teologia da Liturgia, lançada recentemente pela CNBB, e que constitui o primeiro volume
das obras completas de Ratzinger em português.
Foi desejo do próprio Papa Emérito que no primeiro volume de
sua Opera Omnia constassem seus
escritos sobre a Liturgia. Ele quis seguir a mesma ordem do Concílio Vaticano
II - de cujos documentos o primeiro foi justamente a Sacrosanctum Concilium - e priorizar aquela que foi a “realidade
central” de sua vida desde a infância, como ele mesmo escreve em sua
autobiografia:
“Cada novo degrau no acesso à Liturgia era, para mim, um
grande acontecimento. Cada livro novo me era uma preciosidade, e eu não podia
sonhar com nada mais lindo. Foi para mim uma aventura cativante esse lento
acesso ao misterioso mundo da Liturgia, que lá no altar, diante de nós e para
nós, se realizava. Tornou-se cada vez mais claro para mim que eu me encontrava
aí diante de uma realidade que não foi inventada por uma pessoa qualquer, e não
havia sido criada por uma autoridade ou grande personagem. Essa misteriosa
fusão de textos e ações tinha nascido da fé da Igreja, através dos séculos.
Carregava dentro de si o peso de toda a história, mas era, ao mesmo tempo,
muito mais do que um produto da história humana. Cada século tinha contribuído
com seus vestígios. As introduções nos ensinavam o que tinha vindo da Igreja
primitiva, da Idade Média, dos tempos modernos. Nem tudo era lógico. Tudo era
bastante complicado; nem sempre era fácil a gente se orientar. Mas exatamente
por isso aquela estrutura era maravilhosa, e nos sentíamos em casa” [1].
Detenhamo-nos por um momento nestas últimas palavras do
Papa, pois elas descrevem um sentimento que com certeza já perpassou o coração
de todo católico diante de uma liturgia bem celebrada: sentirmo-nos em casa.
A expressão tem um sentido bem preciso. O Papa evidentemente
não está dizendo que a Liturgia foi feita para as pessoas se sentirem em casa
como se se tratasse de algo banal, trivial, profano. Ele fala de nos sentirmos
em casa como um sinal de pertença e de familiaridade. Neste sentido preciso,
sim, é possível afirmar que a Liturgia foi feita para que nos sintamos em casa.
Mas a casa a que o Papa se refere não é um templo feito por
mão de homens, para usar uma expressão do Apóstolo (cf. At 17,24). O que a
Liturgia faz é colocar-nos em contato com o mistério da Igreja, o mistério da
montanha de Sião, da cidade do Deus vivo, da Jerusalém celestial, das miríades
de anjos, da assembleia festiva dos primeiros inscritos no livro dos céus, e de
Deus, juiz universal, e das almas dos justos que chegaram à perfeição, enfim, de
Jesus, o mediador da Nova Aliança, e do sangue da aspersão, que fala com mais
eloquência que o sangue de Abel (Hb 12,22-24).
Em uma palavra, a Liturgia existe a fim de nos transportar
para o que há além desta vida terrena. No Batismo, todos nós, católicos,
recebemos uma nova vida, a vida sobrenatural da graça, isto é, uma vida muito
acima dos dados meramente naturais. Por meio desta porta, nós adentramos o
edifício espiritual da Igreja, o Corpo místico de Cristo, formado por todos os
santos que já passaram por este mundo e agora estão no Céu, por todas as almas
justas que estão se purificando no Purgatório e por todos os guerreiros
valorosos que militam neste vale de lágrimas.
Esta casa, caro leitor, é a morada de todos os
bem-aventurados, dos homens e mulheres que, em todos os tempos e lugares,
temeram e amaram a Deus, e cumpriram com a sua santíssima vontade. Por isso,
porque é uma casa ornada das mais belas virtudes, nenhuma casa se lhe é capaz
de igualar.
A Liturgia deveria ser capaz de expressar esta magnificência
que é pertencer à Igreja. Todas as orações que nela existem, todos os cantos
que foram compostos e incorporados a ela ao longo dos séculos, todos os gestos
sagrados que o sacerdote faz e que o povo acompanha (ou deveria acompanhar) com
piedade e devoção, tudo isso deveria falar mui ternamente ao nosso coração e
dizer: “Esta é a tua casa. Este é o teu lugar. Tudo aquilo por que tanto anseia
o mais profundo de tua alma… está aqui”.
Mas a experiência que, ao pequeno Ratzinger, transmitiu
imediatamente a sensação de pertença, pode ser para outros, em um primeiro
momento, ocasião de choque e estranhamento. Vejamos o que aconteceu, por
exemplo, ao famoso escritor francês Paul Claudel (em suas próprias palavras):
“Assim era a infeliz criança que, a 25 de dezembro de 1886,
foi a Notre-Dame de Paris para assistir aos ofícios de Natal. Começava então a
escrever, e parecia-me que nas cerimônias católicas, consideradas com um
diletantismo superior, encontraria um excitante apropriado e a matéria de
alguns exercícios decadentes.
Foi com essas disposições que, acotovelado e empurrado pela
multidão, assisti, com um prazer medíocre, à missa cantada. Depois, não tendo
nada melhor a fazer, voltei para assistir às vésperas. As crianças do coro,
vestidas de branco, e os alunos do Seminário Menor de Saint Nicholas du
Chardonnet, que os ajudavam, cantavam o que mais tarde soube ser o Magnificat.
Eu próprio estava de pé entre a multidão, junto do segundo
pilar à entrada do coro, à direita da sacristia. E foi então que se produziu o
acontecimento que domina toda a minha vida. Em um instante, meu coração foi
tocado e acreditei.
Acreditei com tal força de adesão, com tal elevação de todo
o meu ser, com tão poderosa convicção, com tal certeza sem deixar lugar a
qualquer espécie de dúvida, que, a partir de então, todos os livros, todos os
raciocínios e todas as circunstâncias de uma vida agitada não puderam abalar-me
a fé, nem mesmo, para ser mais preciso, atingi-la.
Tive de súbito o forte sentimento da inocência, da eterna
juventude de Deus, uma revelação inefável. Tentando, como o fiz várias vezes,
reconstituir os minutos que se seguiram a esse instante extraordinário,
encontro os elementos seguintes que, entretanto, formavam apenas um clarão, uma
única arma de que a Providência Divina se servia para atingir e abrir enfim o
coração de uma pobre criança desesperada: ‘Como são felizes os que creem! E se
fosse verdade? É verdade! Deus existe. Ele está em toda parte. É alguém, é um
Ser tão pessoal quanto eu. Ele me ama, Ele me convoca’.
As lágrimas e os soluços vieram… e o canto tão doce do Adeste fideles aumentou ainda mais minha
emoção. Emoção bem doce, mas a que se misturava um sentimento de espanto e
quase de horror. Pois minhas convicções filosóficas estavam intactas. Deus as deixara
desdenhosamente onde estavam, e eu nada via a mudar nelas; a religião católica
me parecia continuar o mesmo tesouro de anedotas absurdas, seus padres e fiéis
me inspiravam a mesma aversão que ia até o ódio e o desgosto. O edifício de
minhas opiniões e de meus conhecimentos permanecia de pé, e não lhe achava
qualquer defeito. Tinha apenas me retirado dele. Um novo e formidável ser, com
exigências terríveis para o jovem e o artista que eu era, tinha-se revelado, e
não sabia como conciliá-lo com coisa alguma que me cercava.
O estado de um homem que fosse arrancado de um golpe de seu
corpo, para ser colocado em um corpo estranho, no meio de um mundo
desconhecido, é a única comparação que posso encontrar para exprimir este
estado de confusão completa. O que mais repugnava a minhas opiniões e a meu
gosto era, entretanto, a verdade e o fato de ter de acomodar-se a ela custasse
o que custasse. Ah! Isso não aconteceria sem que tentasse tudo que me fosse
possível para resistir” [2].
Percebam como, curiosamente, o que para um católico de
berço, praticante, foi sentir-se em casa, para esse artista (até então um
católico “morno”) foi justamente a experiência do deslocamento: o homem que ele
era até aquele momento sentia-se fora de lugar, transportado a uma realidade
nova e inesperada.
É que o pequeno Ratzinger tinha fé; Paul Claudel ainda não.
E foi só a partir do momento em que lhe caíram as escamas dos olhos, foi só
quando ele acreditou, que a Liturgia ganhou, para ele, todo o sentido que
realmente possui.
Foi preciso, portanto, uma experiência totalmente alheia a
seu mundo para que Paul Claudel se convertesse. Como o peixe que é tirado da
água para a terra, Cristo pescou a alma desse homem, tirando-a de um ambiente
para colocá-lo em outro completamente diferente. Essa migração - que constitui,
no fundo, a essência de toda e qualquer conversão - deveria nos lembrar uma
coisa de que muitos em nossa época parecem ter-se esquecido, a saber: que não
são as nossas “adaptações”, as nossas “manipulações”, as nossas tentativas de
“acomodar” o sagrado à banalidade das nossas vidas o que trará as pessoas de
volta à Igreja. Muito pelo contrário, é justamente o estupor diante do
sobrenatural, o espanto diante do sagrado, a admiração com o que é nobre e
elevado, a isca de que tantos precisam para se livrar da miséria, da baixeza,
da lama em que estão afundados.
Lendo o relato da conversão de um homem ao simples ouvir de
uma música sacra, deveríamos nos perguntar se a mesma experiência teria
acontecido, por exemplo, se aquelas crianças em Notre-Dame (a mesma Notre-Dame
que estava em chamas alguns dias atrás) estivessem cantando uma música popular,
um “sambinha” para Cristo, um jogral infantil ou um iê-iê-iê festivo para
homenagear os fiéis presentes na celebração daquelas Vésperas…
Ora, alguém poderá dizer, “o Espírito sopra onde quer”. E é
verdade. Mas será que podemos tão soberbamente pretender que o Espírito Santo
se adeque à pobreza de nossos esquemas, à vulgaridade de nossas profanações, à
baixeza de nossas invencionices? Que Deus se sirva até das mais insignificantes
das coisas para trazer uma pessoa a si, é coisa de que ninguém duvida; agora,
que façamos o que quisermos na Liturgia, sob o pretexto de que “o que importa é
o coração”, e como se um “batuque” e um “molejo” estivessem no mesmo nível de
um coro de crianças cantando um Magnificat
ou um Adeste fideles, é no mínimo uma
profunda falta de bom senso (para não falar do pecado de irreverência que aqui
se esconde sob a aparência de “simplicidade” e “despojamento”). Além do mais,
que uma e outra pessoa aja dessa forma por ignorância, é coisa que se pode
muito bem admitir; que não haja, no entanto, uma única voz capaz de dizer esse
óbvio ululante, é coisa que escapa à nossa compreensão, é coisa que só a
expressão “mistério da iniquidade” pode explicar…
É por isso que nós, católicos, precisamos fazer um exame de
consciência urgente, perguntando-nos se o modo como celebramos a Liturgia tem
revelado aos homens a face de Deus ou a face… do próprio homem. Nossas crianças
será que sentem, a respeito da Liturgia de nossas igrejas, o mesmo que sentia o
pequeno Ratzinger, a ponto de dizerem: “Estou em casa”? Será que nossas Missas
têm favorecido e despertado nas pessoas esse nobre sentimento de pertença que o
Papa Bento XVI teve em menino e que foi decisivo para sua vida e vocação
cristã? Ou, ao contrário, não estaremos sonegando a nossos filhos, com nossos
desrespeitos, nossas bizarrices, nossas danças e piruetas “litúrgicas”, o
próprio tesouro da fé da Igreja?
E os que estão de fora - como estava Paul Claudel antes
daquela visita a Notre-Dame -, com que impressão ficam ao se aproximar de
nossas igrejas? A de um grupo sério de pessoas que temem a Deus e O veneram com
respeito e reverência? Ou a de um bando que vive da gritaria e do oba-oba?
Na verdade, ante a dessacralização e as profanações que
acontecem em tantas de nossas Missas, ao ver o silêncio e as orações secretas
substituídas pela verborragia e pelos “programas de auditório”, diante do
sentimentalismo que tomou o lugar da nobreza do canto gregoriano [3], não há
como não tomar emprestadas as palavras do salmista ao ver desolada sua terra:
“Por que razão vós destruístes sua cerca, para que todos os passantes a
vindimem, o javali da mata virgem a devaste, e os animais do descampado nela pastem?”
(Sl 79(80),13-14).
Nós nos perguntamos o porquê, mas não é muito difícil chegar
a uma resposta satisfatória. Como não enxergar em tudo isso que nos está
acontecendo a justa mão de Deus nos castigando por nossos pecados? Não é
curioso (para não dizer providencial) que justamente a nossa época, tão dada à
sensualidade, seja privada na Liturgia de todos os aspectos sensíveis que a
enobreceram em outras épocas? Por que outro motivo nos teria sido negada a
beleza e as glórias da Liturgia, senão para que pagássemos o preço (merecido)
da feiura dos pecados em que vivemos atolados?
Não estaremos sonegando a nossos filhos, com nossas
irreverências na Liturgia, o próprio tesouro da fé da Igreja?
Sim, tudo isso é verdade, mas lembremo-nos sempre: Deus,
como Pai amoroso, só nos castiga porque busca a nossa conversão. Ele não
permitiria os males que estamos experimentando, se não quisesse deles extrair
um bem muito concreto: a purificação da nossa fé.
Portanto, se a Liturgia de sua paróquia está ruim, se na
Missa de que você participa o Cristo parece se despojar totalmente, como fez no
Calvário, não deixe nunca de adorá-lo sob as espécies eucarísticas e de
fazer-lhe companhia em meio aos verdugos que O maltratam… E não, não se trata
de “cruzar os braços”. Se você puder fazer algo, mãos à obra, é claro! O que
pudermos realizar, o que estiver ao nosso alcance fazer pelo resgate da
Liturgia, façamos, não fiquemos inertes.
Só não caiamos na tentação de trair a fé; de deixar a nossa
casa, que é a Igreja; de abandonar nosso Senhor justamente quando Ele mais
precisa daqueles que O adorem, em espírito e em verdade.
[1] Joseph Ratzinger. Lembranças da minha vida: autobiografia parcial (1927-1977). 2.ª ed. São Paulo: Paulinas, 2007, pp. 20-21.
[2] Jacques Madaule. Paul Claudel (1868-1955). in: Convertidos do século XX. 2.ª ed. Rio de Janeiro: Agir, 1966, pp. 132-133.
[3] “Halevy, afamado compositor de óperas, discípulo de Cherubini, diz: ‘Como podem os sacerdotes católicos, possuidores do canto gregoriano, a mais linda melodia religiosa que existe no mundo, permitir nas suas igrejas a pobreza da nossa música moderna?’” (Pe. João Batista Reus. Curso de Liturgia. 3.ª ed. Rio de Janeiro: Vozes, 1952, p. 65)
Equipe Christo Nihil
Praeponere, 15 de maio de 2019.