No último dia 20 de novembro celebramos os 70 anos da publicação da Encíclica Mediator Dei sobre a Sagrada Liturgia do Venerável Papa Pio XII. Este documento é um marco do Movimento Litúrgico e deu um grande impulso para a reforma litúrgica do Concílio Vaticano II.
Recomendamos a todos os estudiosos da Liturgia a leitura deste documento, que publicamos na íntegra:
Papa Pio XII
Carta Encíclica Mediator
Dei
Sobre
a Sagrada Liturgia
Introdução
1. "O mediador entre Deus e os homens" (1), o grande pontífice
que penetrou os céus, Jesus, Filho de Deus (2), assumindo a obra de
misericórdia com a qual enriqueceu o gênero humano de benefícios sobrenaturais,
visou sem dúvida a restabelecer entre os homens e o Criador aquela ordem que o
pecado tinha perturbado e a reconduzir ao Pai celeste, primeiro princípio e
último fim, a mísera estirpe de Adão, infeccionada pelo pecado original. E por
isso, durante a sua permanência na terra, não só anunciou o início da redenção
e declarou inaugurado o reino de Deus, mas ainda cuidou de promover a salvação
das almas pelo contínuo exercício da pregação e do sacrifício, até que, na
cruz, se ofereceu a Deus qual vítima imaculada para "purificar a nossa
consciência das obras mortas, para servir a Deus vivo" (3). Assim, todos
os homens, felizmente chamados do caminho que os arrastava à ruína e à
perdição, foram ordenados de novo a Deus, a fim de que, com sua pessoal
colaboração na obra da própria santificação, fruto do sangue imaculado do
Cordeiro, dessem a Deus a glória que lhe é devida.
2. O Divino Redentor quis, ainda, que a vida sacerdotal por ele iniciada
em seu corpo mortal com as suas preces e o seu sacrifício, não cessasse no
correr dos séculos no seu corpo místico, que é a Igreja; e por isso instituiu
um sacerdócio visível para oferecer em toda parte a oblação pura (4), a fim de
que todos os homens, do oriente ao ocidente, libertos do pecado, por dever de
consciência servissem espontânea e voluntariamente a Deus.
3. A Igreja, pois, fiel ao mandato recebido do seu Fundador, continua o
ofício sacerdotal de Jesus Cristo, sobretudo com a sagrada liturgia. E o faz em
primeiro lugar no altar, onde o sacrifício da cruz é perpetuamente representado
(5) e renovado, com a só diferença no modo de oferecer; em seguida, com os
sacramentos, que são instrumentos particulares por meio dos quais os homens
participam da vida sobrenatural; enfim, com o tributo cotidiano de louvores
oferecido a Deus ótimo e máximo (6). "Que jubiloso espetáculo – diz o
nosso predecessor de feliz memória Pio XI – oferece ao céu e à terra a Igreja
que reza, enquanto continuamente dia e noite, se cantam na terra os salmos
escritos por inspiração divina: nenhuma hora do dia transcorre sem a
consagração de uma liturgia própria; cada etapa da vida tem seu lugar na ação
de graças, nos louvores, preces e aspirações desta comum oração do corpo místico
de Cristo, que é a Igreja" (7).
4. Certamente conheceis, veneráveis irmãos, que, no fim do século
passado e nos princípios do presente, houve singular fervor de estudos
litúrgicos; já por louvável iniciativa de alguns particulares, já sobretudo
pela zelosa e assídua diligência de vários mosteiros da ínclita ordem
beneditina; assim que não somente em muitas regiões da Europa, mas ainda nas
terras de além-mar, se desenvolveu a esse respeito uma louvável e útil
emulação, cujas benéficas consequências foram visíveis, quer no campo das
disciplinas sagradas, onde os ritos litúrgicos da Igreja oriental e ocidental
foram mais ampla e profundamente estudados e conhecidos, quer na vida
espiritual e íntima de muitos cristãos. As augustas cerimônias do sacrifício do
altar foram mais conhecidas, compreendidas e estimadas; a participação aos
sacramentos maior e mais frequente; as orações litúrgicas mais suavemente
saboreadas e o culto eucarístico tido, como verdadeiramente o é, por centro e
fonte da verdadeira piedade cristã. Além disso, pôs-se em mais clara evidência
o fato de que todos os fiéis constituem um só e compacto corpo de que é Cristo
a cabeça, com o consequente dever para o povo cristão de participar, segundo a
própria condição, dos ritos litúrgicos.
5. Sem dúvida, sabeis muito bem que esta Sé Apostólica sempre zelou para
que o povo a ela confiado fosse educado num verdadeiro e ativo sentido
litúrgico e que, com zelo não menor se tem preocupado em que os sagrados ritos
brilhem até externamente por uma adequada dignidade. Nessa mesma ordem de ideias,
falando, segundo o costume, aos pregadores quaresmais desta nossa excelsa
cidade, em 1943, nós os havíamos calorosamente exortado a advertir os seus
ouvintes que participassem, com maior empenho, do sacrifício eucarístico; e
recentemente fizemos traduzir de novo em latim, do texto original, o livro dos
Salmos para que as preces litúrgicas, de que são eles a parte maior na Igreja
católica, fossem mais exatamente entendidas e a sua verdade e suavidade mais
facilmente percebidas (8).
6. Todavia, enquanto pelos salutares frutos que dele derivam, o
apostolado litúrgico nos é de não pequeno conforto, o nosso dever nos impõe
seguir com atenção esta "renovação" na maneira pela qual é concebida
por alguns, e cuidar diligentemente para que as iniciativas não se tornem
excessivas nem insuficientes.
7. Ora, se de uma parte verificamos com pesar que em algumas regiões o
sentido, o conhecimento e o estudo da liturgia são às vezes escassos ou quase
nulos; de outra, notamos, com muita apreensão, que há algumas pessoas muito ávidas
de novidades e que se afastam do caminho da sã doutrina e da prudência. Na
intenção e desejo de um renovamento litúrgico, esses inserem muitas vezes
princípios que, em teoria ou na prática, comprometem esta santíssima causa, e frequentemente
até a contaminam de erros que atingem a fé católica e a doutrina ascética.
8. A pureza da fé e da moral deve ser a norma característica desta
sagrada disciplina, que deve necessariamente conformar-se ao sapientíssimo
ensinamento da Igreja. É, portanto, nosso dever louvar e aprovar tudo o que é
bem feito, conter ou reprovar tudo o que se desvia do verdadeiro e justo
caminho.
9. Não acreditem, pois, os inertes e os tíbios ter a nossa aprovação
porque repreendemos os que erram e contemos os audazes; nem os imprudentes se
tenham por louvados quando corrigimos os negligentes e os preguiçosos. Ainda
que nesta nossa encíclica tratemos sobretudo da liturgia latina, não é que
tenhamos em menor estima as venerandas liturgias da Igreja oriental, cujos
ritos, transmitidos por nobres e antigos documentos, nos são igualmente
caríssimos; mas visamos antes às condições particulares da Igreja ocidental,
que são tais que reclamam a intervenção da nossa autoridade.
10. Ouçam, pois, os cristãos todos, com docilidade, a voz do Pai comum,
o qual deseja ardentemente que todos, unidos a ele intimamente, se aproximem do
altar de Deus, professando a mesma fé, obedecendo à mesma lei, participando do
mesmo sacrifício com uma só inteligência e uma só vontade. O respeito devido a
Deus o reclama; as necessidades dos tempos presentes o exigem. Após uma longa e
cruel guerra que dividiu os povos com rivalidades e morticínios, os homens de
boa vontade se esforçam do melhor modo possível, em reconduzir todos à
concórdia. Acreditamos, todavia, que nenhum projeto e nenhuma iniciativa seja,
neste caso, tão eficaz quanto um fervoroso espírito religioso e zelo ardente,
do qual é necessário estejam animados e guiados todos os cristãos, a fim de
que, aceitando de coração aberto as mesmas verdades e obedecendo docilmente aos
legítimos pastores, no exercício do culto devido a Deus, constituam uma
comunidade fraterna, porquanto, "ainda que muitos, somos um só corpo, participando
todos do único pão (9).
Primeira Parte: Natureza, Origem, Progresso da Liturgia
I. A liturgia é culto público
11. O dever fundamental do homem é certamente este de orientar a si
mesmo e a própria vida para Deus. "A ele, com efeito, devemos
principalmente unir-nos como indefectível princípio, ao qual deve ainda
constantemente aplicar-se a nossa escolha como ao último fim, que perdemos
pecando, mesmo por negligência, e que devemos reconquistar pela fé, crendo
nele" (10). Ora, o homem se volta ordinariamente para Deus quando lhe
reconhece a suprema majestade e o supremo magistério, quando aceita com
submissão as verdades divinamente reveladas, quando lhe observa religiosamente
as leis, quando faz convergir para ele toda a sua atividade, quando – para
dizer resumidamente – presta, mediante a virtude da religião, o devido culto ao
único e verdadeiro Deus.
12. Esse é um dever que obriga antes de tudo os homens individualmente,
mas é ainda um dever coletivo de toda a comunidade humana ordenada com
recíprocos vínculos sociais, porque também ela depende da suma autoridade de
Deus.
13. Note-se ainda que esse é um dever particular dos homens, porquanto
Deus os elevou à ordem sobrenatural. Assim, se consideramos Deus como autor da
antiga Lei, vemo-lo proclamar preceitos rituais e determinar acuradamente as
normas que o povo deve observar ao render-lhe o legítimo culto. Estabeleceu,
para isso, vários sacrifícios e designou várias cerimônias com que deviam
realizar-se e determinou claramente o que se referia à arca da aliança, ao
templo e aos dias festivos; designou a tribo sacerdotal e o sumo sacerdote, indicou
e descreveu as vestes para uso dos sagrados ministros e tudo o mais que tinha
relação com o culto divino (11).
14. Esse culto, aliás, não era mais do que a sombra (12) daquele que o
sumo sacerdote do Novo Testamento havia de render ao Pai celeste.
15. De fato, apenas "o Verbo se fez carne" (13), manifesta-se
ao mundo no seu ofício sacerdotal, fazendo ao Pai Eterno um ato de submissão
que durará por todo o tempo de sua vida: "entrando no mundo, diz... eis
que venho... para fazer, ó Deus, a tua vontade..." (14), um ato que será
consumado de modo admirável no sacrifício cruento da cruz: "Pelo poder
desta vontade fomos santificados por meio da oblação do corpo de Jesus Cristo
feita uma só vez para sempre" (15). Toda a sua atividade entre os homens
não tem outro escopo. Menino, é apresentado no templo ao Senhor; adolescente,
ali volta ainda; em seguida ali vai frequentemente para instruir o povo e para
rezar. Antes de iniciar o ministério público jejua durante quarenta dias, e com
seu conselho e o seu exemplo exorta todos a rezarem de dia e de noite. Como
mestre de verdade, "ilumina todo homem" (16) para que os mortais
reconheçam convenientemente o Deus imortal, e não "se afastem para sua
perdição, mas guardem a fé para salvar a sua alma" (17). Como Pastor, depois,
ele governa o seu rebanho, conduzindo-o às pastagens da vida, e dá uma lei a
observar, para que ninguém se afaste dele e da reta via que traçou, mas todos
vivam santamente sob o seu influxo e a sua ação. Na última ceia, com rito e
aparato solene, celebra a nova páscoa e provê a sua continuação mediante a
divina instituição da eucaristia; no dia seguinte, elevado entre o céu e a
terra, oferece o sacrifício salutar de sua vida; de seu peito rasgado faz, de
certo modo, jorrar os sacramentos que distribuem às almas os tesouros da
redenção. Fazendo isso, tem por único fim a glória do Pai e a crescente
santificação do homem.
16. Entrando, depois, na sede da beatitude celeste, quer que o culto por
ele instituído e prestado durante a sua vida terrena continue ininterrupto. Já
que não deixou órfão o gênero humano, mas o assiste sempre com o seu contínuo e
valioso patrocínio, fazendo-se nosso advogado no céu junto do Pai (18), assim o
ajuda mediante a sua Igreja, na qual está indefectivelmente presente no correr
dos séculos, Igreja que constituiu coluna da verdade (19) e dispensadora de
graça, e que, com o sacrifício da cruz, fundou, consagrou e conformou
eternamente (20).
17. A Igreja, portanto, tem em comum com o Verbo encarnado o escopo, o
empenho e a função de ensinar a todos a verdade, reger e governar os homens,
oferecer a Deus o sacrifício, aceitável e grato, e assim restabelecer entre o
Criador e as criaturas aquela união e harmonia que o apóstolo das gentes
claramente indica por estas palavras: "Não sois mais hóspedes ou
adventícios, mas concidadãos dos santos e membros da família de Deus, educados
sobre o fundamento dos apóstolos e dos profetas, com o próprio Jesus Cristo por
pedra angular, sobre a qual todo o edifício bem ordenado se levanta para ser um
templo santo no Senhor, e sobre ele vós sois também juntamente edificados em
morada de Deus, pelo Espírito" (21). Por isso a sociedade fundada pelo
divino Redentor não tem outro fim, seja com a sua doutrina e o seu governo,
seja com o sacrifício e os sacramentos por ele instituídos, seja enfim com o
ministério que lhe contou, com as suas orações e o seu sangue, senão crescer e
dilatar-se sempre mais – o que se dá quando Cristo é edificado e dilatado nas
almas dos mortais, e quando, vice-versa, as almas dos mortais são educadas e
dilatadas em Cristo; de maneira que, neste exílio terreno prospere o templo no
qual a divina majestade recebe o culto grato e legítimo. Em toda ação
litúrgica, junto com a Igreja está presente o seu divino Fundador: Cristo está
presente no augusto sacrifício do altar, quer na pessoa do seu ministro, quer
por excelência, sob as espécies eucarísticas; está presente nos sacramentos com
a virtude que neles transfunde, para que sejam instrumentos eficazes de
santidade; está presente, enfim, nos louvores e súplicas dirigidas a Deus, como
vem escrito: "Onde estão duas ou três pessoas reunidas em meu nome aí
estou no meio delas" (22). A sagrada liturgia é, portanto, o culto público
que o nosso Redentor rende ao Pai como cabeça da Igreja, e é o culto que a
sociedade dos fiéis rende à sua cabeça, e, por meio dela, ao Eterno Pai. É, em
uma palavra, o culto integral do corpo místico de Jesus Cristo, ou seja, da
cabeça e de seus membros.
18. A ação litúrgica inicia-se com a fundação da própria Igreja. Os
primeiros cristãos, com efeito, "eram assíduos aos ensinamentos dos
apóstolos, e à comum fração do pão e à oração" (23). Em toda a parte onde
os pastores possam reunir um núcleo de fiéis, erigem um altar sobre o qual
oferecem o sacrifício, e em torno dele vêm dispostos outros ritos adaptados à
santificação dos homens e à glorificação de Deus. Entre esse ritos estão, em
primeiro lugar, os sacramentos, isto é, as sete principais fontes de salvação;
depois, está a celebração do louvor divino, com o qual os féis reunidos
obedecem à exortação do Apóstolo: "Instruindo-vos e exortando-vos uns aos
outros com toda a sabedoria, cantando a Deus em vosso coração, inspirados pela
graça, salmos, hinos e cânticos espirituais" (24); depois, ainda, a
leitura da Lei, dos Profetas, do Evangelho e das epístolas apostólicas; e,
enfim, a prática com a qual o presidente da assembleia recorda e comenta
utilmente os preceitos do divino Mestre, os acontecimentos principais de sua
vida, e admoesta todos os presentes com exortações oportunas e exemplos.
19. O culto se organiza e se desenvolve segundo as circunstâncias e as
necessidades dos cristãos, se enriquece de novos ritos, cerimônias e fórmulas,
sempre com o mesmo intento: "a fim de que sejamos estimulados por aqueles
sinais... conheçamos o progresso realizado e nos sintamos solicitados a
desenvolvê-lo com maior vigor; o efeito, de fato, é mais digno, se mais ardente
é o afeto que o precede" (25). Assim a alma se eleva a Deus mais e melhor;
assim o sacerdócio de Jesus Cristo está sempre em ato na sucessão dos tempos,
não sendo a liturgia outra coisa que o exercício desse sacerdócio. Como a sua
cabeça divina, assim a Igreja assiste continuamente os seus filhos, ajuda-os e
exorta-os à santidade, para que, ornados com essa dignidade sobrenatural,
possam um dia voltar ao Pai que está nos céus. Ela restaura para a vida celeste
os nascidos à vida terrena, dá-lhes a ajuda do Espírito Santo na luta contra o
inimigo implacável; chama os cristãos em torno dos altares e, com insistentes convites,
exorta-os a celebrar e tomar parte no sacrifício eucarístico, e nutre-os com o
pão dos anjos, para que sejam sempre mais firmes; purifica e consola aqueles
que o pecado feriu e maculou; consagra com legítimo rito aqueles que, por
vocação divina, são chamados ao ministério sacerdotal; revigora com graças e
dons divinos o casto conúbio daqueles que são destinados a fundar e constituir
a família cristã; depois de ter confortado e restaurado com o viático
eucarístico e a sagrada unção as últimas horas da vida terrena, acompanha ao
túmulo com suma piedade os despojos dos seus filhos, dispondo-os
religiosamente, protegendo-os ao abrigo da cruz, para que possam um dia
ressurgir triunfando da morte; abençoa com particular solenidade quantos
dedicam a sua vida ao serviço divino na consecução da perfeição religiosa;
estende a sua mão caridosa às almas que, nas chamas da purificação, imploram
preces e sufrágios, para conduzi-las finalmente à eterna beatitude.