Homilia na Missa de Ordenações
Sacerdotais
Um diálogo para toda a vida
Estimados irmãos e muito
especialmente vós, caríssimos ordinandos:
Estarmos aqui hoje, vigília de
São Pedro e São Paulo com os atuais condicionamentos e em ordenações
sacerdotais, traz-nos necessariamente ao essencial.
Aí nos fixamos, sem rodeio nem
demora: - Por que a Igreja e por que os padres? Para responder desde já: -
Porque sim Cristo, porque sim o Evangelho e porque sim a tradição viva e
católica em que nos incluímos.
Porque sim Cristo, como
resposta de Deus ao mundo. O mundo, tudo aquilo que existe à nossa medida,
permitindo-nos viver e conviver. O espaço-tempo de cada um e de cada coisa, tão
inevitáveis como relativos. Como crentes, sabemos que é a criação divina, a
respeitar e compartilhar. Sabemos e correspondemos, quando tomamos conta dos
outros e das coisas, na medida da responsabilidade e competência próprias.
Sempre que não é assim - e às vezes muito pelo contrário -, o mundo passa de
possibilidade a impossibilidade, face ao que a vida exige, concebida ou
enfraquecida que esteja, para a subsistência capaz e saudável de multidões
inteiras.
Assim somos nós, enquanto
mundo, tão magníficos como contraditórios. Para tal não precisaríamos de quanto
aqui nos traz. E o que aqui nos traz é Cristo, como resposta de Deus ao mundo.
Resposta cabal ao que o mundo mais profundamente anseia e redenção absoluta de
quanto o impede.
Impressiona positivamente
verificar como os mais antigos textos cristãos expressam tal verdade. Assim
Jesus, falando a Nicodemos: «Tanto amou Deus o mundo, que lhe entregou o seu
Filho Unigênito, a fim de que todo o que crê nele não se perca, mas tenha a
vida eterna» (Jo 3,16). Assim o autor da Carta aos Hebreus,
quase resumindo a nossa teologia: «Nestes dias, que são os últimos, Deus
falou-nos por meio do Filho, a quem constituiu herdeiro de todas as coisas, e
por meio de quem fez o mundo» (Hb 1,2).
O percurso terreno de Cristo
foi muito limitado em espaço - tempo, num Israel exíguo e em pouco mais de três
décadas. Mas tão totalizado, das tábuas do presépio às da oficina de Nazaré e
finalmente às da cruz, que preenche agora o espaço e o tempo de cada um de nós,
redimidos de quanto os arruinaria e com ele eternamente sublimados. Saiu do Pai
e veio ao mundo, para voltar do mundo para o Pai e nos levar consigo (cf. Jo 16,28). Por isso
estamos aqui, para “passar” com Cristo para o Pai, no plano final da sua
Páscoa.
Para Paulo, foi completa a
surpresa. Foi também total, pois lhe totalizou a vida. Naquela estrada de
Damasco, em que o Ressuscitado o começou a ressuscitar a ele, Paulo
encontrou-se a si próprio como significado e destino. Ouçamo-lo com atenção e
pormenor: «… quando Aquele que me destinou desde o seio materno e me chamou
pela sua graça Se dignou revelar em mim o seu Filho, para que eu O anunciasse
aos gentios, decididamente não consultei a carne e o sangue…»
A “carne e o sangue” somos
nós, como nos entendemos só por nós, e a nossa condição neste mundo. Podemos
considerá-los bons, naturais e comuns. Assim gostamos dos nossos e somos
capazes de gostar dos outros. O mundo está cheio de bons exemplos de
solidariedade, que havemos de reconhecer e louvar, como o próprio Cristo o
reconheceu e louvou, mesmo nos que não pertenciam ao seu grupo.
Mas Cristo foi muito além
desta ordem natural das coisas e do limite espontâneo dos afetos, preferindo os
últimos e amando a todos por igual, de coração indiviso. É neste sentido que a
opção preferencial pelos pobres ou o celibato por amor do Reino dos Céus
assinalam o que vai além “da carne e do sangue”. Exigindo conversão permanente,
são grande serviço da Igreja ao mundo, para que este não se encerre em si
mesmo. Para que o mundo se converta na matéria do Reino e todo o bem se
eternize, naquele amor que nunca acabará.
Deus revela Cristo a Paulo e a
revelação torna-se missão, para chegar a muitos. Revelação que aconteceu
exterior e interiormente, não apenas a Paulo mas em Paulo. Como Deus nos chega
em Cristo, assim Cristo chega aos outros através de nós, quando somos realmente
seus.
Estou certo, caríssimos
ordinandos, que estais aqui em consequência do muito que vos chegou e cativou
de Cristo na vida e exemplo de discípulos autênticos. E assim há de ser através
vós, agora, com a graça do sacramento apostólico. Com São Paulo, não vos
ficareis pelo modo mundano de considerar as coisas. O horizonte que se abriu na
estrada de Damasco, há de rasgar-se também nas que trilhareis agora.
Assim realizareis uma vocação
que é muito mais do que mera escolha profissional. Como ouvimos a Paulo: «…
quando Aquele que me destinou desde o seio materno e me chamou pela sua
graça…». Olhai o vosso percurso a esta luz e agradecei-o muito a Deus, como nós
o agradecemos convosco.
O que seja a missão, em
qualquer lugar e circunstância que a Igreja nos coloque, está claro e patente
noutro trecho escutado. Pedro e João subiram ao templo e encontraram um coxo de
nascença a pedir esmola. Pedro «olhou fixamente para ele e disse-lhe: “Não
tenho ouro nem prata, mas dou-te o que tenho: em nome de Jesus Cristo, o
Nazareno, levanta-te e anda”».
Olhar atentamente para o outro
que nos requer, tolhido que seja de corpo ou de espírito, e fazê-lo levantar-se
e andar em nome de Cristo, tem muitas concretizações hoje como então.
Era coxo de nascença aquele
homem. E não faltam tolhimentos hoje em dia, impedindo de andar perfeitamente.
Limitações físicas, nalguns casos, que pedem resposta clínica competente. Mas
outras se acrescentam, de ordem educativa e cultural, quando alguma ideologia
ou preconceito contrariam a formação e o crescimento num quadro geral de
valores humanizantes. Valores como os que incluem o respeito pela vida,
concebida ou fragilizada que esteja, a complementaridade essencial homem –
mulher, a igual dignidade de todos, ou a abertura à religião transcendente.
Omitir ou contrariar tais valores deforma e entorpece qualquer um e desde muito
cedo infelizmente. Já o verificava o Papa Francisco no início do seu
pontificado, ao escrever: «Com a negação de toda a transcendência, produziu-se
uma crescente deformação ética, um enfraquecimento do sentido do pecado, e tudo
isso provoca uma desorientação generalizada, especialmente na fase tão
vulnerável às mudanças da adolescência e da juventude» (Evangelii Gaudium,
64).
Àquele homem que pedia esmola,
os apóstolos responderam com a oferta do nome de Jesus. E olhando atentamente a
evolução do pensamento e da prática nestes dois últimos milênios, não será
difícil verificar como o seu nome, na força do que disse e do que fez, foi
gerando o melhor da humanidade que nos chegou.
Caros ordinandos: É desta
tradição viva que sereis especiais transmissores, guardando o depósito que vos
é confiado, como Paulo exortou o seu discípulo Timóteo (cf. 1Tm 6,20).
Para que na vossa própria conduta e pregação, na resposta que dareis a tanto
brado, ressalte sempre e em tudo o nome de Jesus, a verdade do Evangelho e o
fulgor da caridade mais atenta.
Tal sucederá pela razão de
aqui estardes: o amor verdadeiro, intenso e pleno a Cristo, que vos toca o
coração, com a vontade de lhe corresponder em tudo. É esta a única razão do
vosso ministério, que só assim vos é sacramentalmente concedido. Retomai
diariamente o diálogo de há pouco: «Pedro respondeu-Lhe: Senhor, Tu sabes tudo,
bem sabes que Te amo”. Disse-lhe Jesus: “Apascenta as minhas ovelhas”».
Não precisareis doutro
motivo para vos encher o coração e a vida. E, através de vós, a de muitos.
Santa Maria de Belém, 28 de junho de 2020.
+ Manuel, Cardeal-Patriarca