“Hoje a alegria
contagia a todos, porque a antiga condenação fica sem efeito. Hoje chega Aquele
que está em todos os lugares, a fim de encher de alegria todas as coisas” - Santo
André de Creta [1]
Em nossa
série de postagens sobre os ícones das festas litúrgicas, meditaremos hoje sobre a última das celebrações ligadas ao mistério
da Encarnação do Senhor, que do ponto de vista cronológico é, na verdade, a
primeira: a solenidade da Anunciação do Senhor, comemorada nove meses antes do
Natal, no dia 25 de março.
Origem e conteúdo da
festa
A origem da festa remonta, no Oriente, ao Concílio de Éfeso
(431), que promulgou o dogma da maternidade divina de Maria. Ao lado do Natal,
que proclamava a verdade da Encarnação, isto é, a humanidade do Filho,
começou-se a celebrar a festa da Anunciação para professar, à luz do Evangelho
(Lc 1,26-38), sua divindade.
Inicialmente no domingo anterior ao Natal ou uma semana
antes deste (no dia 18 de dezembro), a festa passou, no século VI, a ser
celebrada nove meses antes da Natividade, isto é, no dia 25 de março. Este dia,
próximo ao equinócio de primavera no hemisfério norte, era, além disso,
considerado o dia da criação do mundo. Assim, a festa da Anunciação proclama a
nova criação que se inicia no seio de Maria.
Em Roma esta festa foi introduzida pelo Papa Sérgio I
(687-701), o qual prescreveu uma procissão festiva em honra da Mãe de Deus. De
fato, durante muitos séculos esta festa, no Ocidente, enfatizou demais o papel
da Virgem Maria, tendo readquirido seu caráter cristológico com a reforma do
Concílio Vaticano II.
Uma dificuldade em relação ao dia 25 de março é que coincide
sempre com o período da Quaresma, razão pela qual a Anunciação não é celebrada
com grande solenidade no Ocidente. No Oriente, porém, mesmo que coincida com um
dia da Semana Santa, é celebrada festivamente.
Com efeito, a importância desta festa é visível nas igrejas bizantinas,
que colocam seu ícone no lugar de maior destaque, isto é, nas portas centrais
da iconostase, que dão acesso ao santuário.
A festa celebra o mistério da Encarnação na sua totalidade, recordando
tanto a Mãe quanto Filho, novo Adão e nova Eva que, com sua obediência,
desfazem o “nó” do pecado original e dão início a uma nova criação.
O ícone
O ambiente: Como
no
ícone da Natividade de Maria, o ambiente é a casa, o espaço familiar: “o
anjo entrou onde ela estava” (Lc 1,28). No fundo, cobrindo toda a cena, costuma
ser representado um véu de cor vermelha. Este véu une o Antigo Testamento,
cujas promessas estão para cumprir-se, com o Novo Testamento, prestes a começar
com o “sim” de Maria.
O véu simboliza também o amor de Deus que a todos envolve e
o mistério de Deus escondido no ventre de Maria: o véu servia para ocultar o
local da manifestação de Deus na tenda da reunião do Êxodo e no Templo de
Jerusalém. Este véu só irá rasgar-se definitivamente no momento da Paixão do
Senhor (Mt 27,51).
Ainda na casa de Nazaré, onde se desenrola a cena, costuma
ser representado um vaso de flores, que nos remete ao jardim do Éden. Com a
obediência de Maria, que se contrapõe à desobediência de Adão e Eva, abre-se
para eles a possibilidade de, na Ressurreição do Senhor, ingressar no paraíso.
Este paralelo entre o Gênesis e o Evangelho é notório na
Porta Santa da Basílica de São Pedro (painéis 1 a 4): de um lado, a expulsão
dos primeiros pais do paraíso por um anjo com uma espada flamejante; do outro,
a Anunciação a Maria, com o anjo portando uma flor.
Por fim, algumas representações deste ícone retratam um poço
entre o anjo e a Virgem. O poço quadrado é símbolo da criação (indicando os
quatro pontos cardeais, isto é, a totalidade do mundo). É, além disso, um poço
vazio: está à espera de receber a água da vida, oferecida pelo Cristo (Jo 4,14).
A criação que espera a salvação através da resposta de Maria
aparece em uma célebre homilia de São Bernardo: “Ó Virgem cheia de bondade, o
pobre Adão, expulso do paraíso com a sua mísera descendência, implora a tua
resposta; Abraão a implora, Davi a implora. Os outros patriarcas, teus antepassados,
que também habitam a região da sombra da morte, suplicam esta resposta. O mundo
inteiro a espera (...) Apressa-te, ó Virgem, em dar a tua resposta” [3]
O anjo: A parte
esquerda do ícone é dominada pela figura do Anjo Gabriel, facilmente identificado
por suas grandes asas, geralmente na cor vermelha, a cor do fogo, indicando que
ele é impelido pelo amor de Deus (2Cor 5,14).
Suas vestes geralmente são brancas: “é a cor que precede à luz da manhã, a cor que anuncia o nascimento, a
vida” [4]. Não obstante, também o encontramos em vestes verdes (símbolo da
vida, remetendo às plantas vivas) ou azuis (a cor do céu, indicando sua
origem). Às vezes possui uma faixa azul no ombro, indicando que vem do céu, da
parte de Deus, ou uma faixa dourada, indicando sua nobreza: é o mensageiro do
Rei.
Na mão esquerda, Gabriel “empunha comprido bastão, símbolo da autoridade e da dignidade da
pessoa, do mensageiro, do peregrino” [5], enquanto que a mão direita está
estendida em direção à Virgem, com três dedos levantados, um gesto de bênção em
alusão à Trindade, a qual cobrirá Maria com sua sombra.
Às vezes o anjo aparece, por fim, sobre um pequeno pedestal
na cor azul, indicando sua origem celeste. Este pedestal se contrapõe ao poço,
símbolo do mundo.
A Virgem: Maria domina
o lado direito do ícone, ora sentada sobre um trono, ora em pé à frente deste.
Esta representada, como de costume, por uma túnica na cor azul e um longo manto
na cor vermelha.
Este manto (omophorion),
porém, costuma ter aqui uma tonalidade mais escura: “a cor escura significa a humildade; a terra arada pronta para receber a
semente que a fará frutificar” [6]. Sobre o manto, como é comum nas
representações da Mãe de Deus, encontramos três estrelas: na fronte e nos
ombros, símbolos da Trindade que a envolveu com sua sombra e de sua virgindade
perpétua: antes da Anunciação, no momento da concepção do Verbo e durante toda
a sua vida.
Maria é retratada aqui com ao menos uma das mãos levantadas,
gesto de espanto diante do anúncio do anjo, conforme narrado no Evangelho. Em
algumas versões do ícone segura na outra mão um rolo de linha vermelha com a
agulha. É uma profecia do que vai acontecer em seguida: a humanidade do Filho
vai ser “tecida” em seu ventre.
Sua representação sentada ou diante de um trono evoca sua
realeza: a partir deste momento ela é a gebirah,
a Rainha-Mãe. “O Senhor Deus lhe dará [ao seu Filho] o trono de seu pai Davi”
(Lc 1,32). O célebre hino Akathistos saúda repetidas vezes Maria como “trono de
Deus” ou “trono da Sabedoria”.
Diante do trono há um pedestal sobre o qual Maria pisa. Se
há no ícone um pedestal para Gabriel, o de Maria é maior, indicando que com o
seu “sim” galgou um lugar superior aos coros dos anjos.
A luz do Altíssimo:
Por fim, no topo do ícone encontramos um raio de luz que desce do céu e aponta
para a Virgem. Este raio é, naturalmente, a presença de Deus, como no ícone da
Teofania.
De fato, toda a Trindade participa deste acontecimento, como
podemos concluir pelas palavras do Anjo (Lc 1,35):
a) “O Espírito virá
sobre ti”: como professamos no Símbolo, o Filho foi concebido pelo poder ou
pela ação do Espírito Santo. Ele às vezes aparece no ícone como uma pomba que
desce sobre Maria;
b) “O poder do
Altissimo te cobrirá com sua sombra”: No Antigo Testamento a principal imagem
de Deus Pai era a sombra ou nuvem. Está presente no nimbo de cor mais escura
bem no alto da tela;
c) “O menino que vai
nascer será chamado Santo, Filho de Deus”: Por fim, o Filho é o próprio
raio que desce do céu e toca a Virgem.
Em algumas interessantes representações deste evento, o raio
toca o ouvido de Maria, pois ela concebe ao ouvir a Palavra de Deus anunciada
pelo Anjo. “A morte entrou no mundo através do ouvido de Eva: por isso a vida
deveria entrar no mundo através do ouvido de Maria” [7]. Ou, para usar a
célebre expressão de Santo Agostinho: “antes
de conceber Jesus em seu seio, Maria o concebeu em seu coração”.
“Hoje é o começo da nossa salvação e a manifestação do eterno mistério:
o Filho de Deus torna-se Filho da Virgem e Gabriel anuncia a graça.
Com ele aclamamos, pois, à Mãe de Deus: Ave, ó cheia de graça, o Senhor
é contigo!”
Tropário
da festa [8]
[1] PASSARELLI, Gaetano. O
ícone da Anunciação. São Paulo: Ave Maria, 1996, p. 11. Coleção: Iconostásio, 11.
[2] Sobre a história desta festa confira:
ADAM, Adolf. O Ano
Litúrgico: Sua história e seu significado segundo a renovação litúrgica. São
Paulo: Loyola, 2019, pp. 112-113.
DONADEO, Madre Maria. O
Ano Litúrgico Bizantino. São Paulo: Ave Maria, 1998, pp. 56-60.
RIGHETTI, Mario. Historia
de la Liturgia, v. I: Introducción general; El año litúrgico; El Breviario.
Madrid: BAC, 1945, pp. 912-914.
[3] 2ª leitura do Ofício das Leituras do dia 20 de dezembro.
in: OFÍCIO DIVINO. Liturgia das Horas
segundo o Rito Romano. Tradução para o Brasil da segunda edição típica. São
Paulo: Paulus, 1999, v. 1: Tempo do Advento e Tempo do Natal, p. 310.
[4] PASSARELLI, op.
cit., p. 22.
[5] ibid.
[6] ibid., p. 27.
[7] ibid., p. 34.
[8] DONADEO, op. cit.,
p. 57.