terça-feira, 31 de janeiro de 2012

A celebração da Festa da Apresentação do Senhor

“Recebemos, ó Deus, a vossa misericórdia no meio de vosso templo” (cf. Sl 47,10; Antífona de entrada da Festa da Apresentação do Senhor).

No dia 02 de fevereiro, 40 dias após a Solenidade do Natal do Senhor, como narra o Evangelho de Lucas (Lc 2,22-40), a Igreja celebra a Festa da Apresentação do Senhor que, embora ocorra no Tempo Comum, é um “eco” do Tempo do Natal.

Para acessar nossa postagem sobre a história da Festa da Apresentação do Senhor, clique aqui.

Bênção das velas na Festa da Apresentação do Senhor
(Átrio da Basílica de São Pedro no Vaticano - 2019)

A partir do cântico de Simeão, o Nunc dimittis (Lc 2,29-32), centrado no tema da luz, essa festa é enriquecida com a bênção das velas e com uma procissão, como veremos a seguir. Como exorta São Cirilo de Alexandria (†444) em uma de suas homilias: “Celebremos o mistério deste dia com lâmpadas flamejantes”.

1. O que se deve preparar:
- Todo o necessário para a celebração da Missa;
- Turíbulo com naveta do incenso e colher;
- Cruz processional;
- Dois castiçais com velas;
- Missal Romano;
- Caldeirinha de água benta e aspersório;
- Pluvial branco para o sacerdote (se houver).

O uso do incenso, embora sempre facultativo na Missa (cf. Instrução Geral sobre o Missal Romano, 3ª edição, nn. 276-277), é particularmente indicado para essa celebração (Cerimonial dos Bispos, n. 88).

A celebração inicia-se com a bênção das velas, que pode ser feita de duas formas: com a procissão ou com a entrada solene (cf. Cerimonial dos Bispos, nn. 242-248).

2. Procissão

Os fiéis reúnem-se em uma igreja menor ou em outro lugar adequado fora da igreja onde se celebrará a Missa. Todos levam velas apagadas.

O Papa Francisco profere a monição introdutória (2018)

O sacerdote, revestido de pluvial branco ou, na sua falta, da casula branca, dirige-se ao lugar onde estão os fiéis, acompanhado dos acólitos e demais ministros. Esses levam o turíbulo e a naveta, a cruz, os castiçais com velas, o Missal Romano e a caldeirinha de água benta. Se há diácono, este leva o Livro dos Evangelhos.

À chegada do sacerdote, todos acendem suas velas, enquanto canta-se a antífona proposta no Missal: “Eis que virá o Senhor...” ou outro canto adequado.

A história da Festa da Apresentação do Senhor

“Meus olhos viram a tua salvação: Luz para iluminar as nações e glória do teu povo Israel” (Lc 2,30.32).

O Evangelho de Lucas nos narra como, 40 dias após o seu nascimento, o Menino Jesus é levado por Maria e José ao Templo de Jerusalém para ser apresentado ao Senhor, onde é acolhido pelo justo Simeão e pela profetisa Ana (Lc 2,22-40).

As Igrejas do Oriente e do Ocidente celebram esse acontecimento evangélico no dia 02 de fevereiro, 40 dias após a Solenidade do Natal do Senhor. Trata-se da Festa da Apresentação do Senhor, cuja história veremos brevemente nesta postagem.

Apresentação do Senhor no Menologion de Basílio II
Uma das mais antigas representações desse mistério (séc. X-XI)

O simbolismo da Festa da Apresentação do Senhor

Antes de tudo cabe recordar que o episódio descrito por Lucas remete-nos a duas prescrições do Antigo Testamento:

- o resgate do primogênito (Ex 13,1-2.11-16), recordação do êxodo, quando os primogênitos do Egito morreram e os filhos de Israel foram poupados (Ex 12). Assim, todo primogênito “pertencia” a Deus e deveria ser “resgatado” pelos pais com uma oferta de cinco siclos de prata, a serem entregues a qualquer sacerdote (Nm 18,15-16).

O Papa Bento XVI chama a atenção para o fato de que Lucas não menciona que Maria e José tenham realizado o “resgate” propriamente dito. Com efeito, o Menino pertence totalmente a Deus - afinal, é o próprio Deus (cf. Jo 1,1-18) -, inteiramente unido ao Pai na comunhão de amor do Espírito Santo [1].

- a purificação da mãe (Lv 12). A Lei judaica era baseada no “horror sanguinis”: o contato com sangue, incluindo o parto, gerava impureza. Assim, no 40º dia após o nascimento do filho a mulher devia oferecer um sacrifício expiatório. Por isso, como veremos, a celebração do dia 02 de fevereiro no Rito Romano foi conhecida por muito tempo como “Purificação de Maria”.

O número 40, além disso, é particularmente simbólico na Sagrada Escritura: remete à aliança - a aliança de Deus com a humanidade após o dilúvio, a aliança do Sinai após os 40 dias que Moisés permaneceu sobre o monte - e ao tempo da provação e da penitência - a peregrinação de Israel pelo deserto por 40 anos, os 40 dias de Jesus no deserto em oração...

Apresentação do Senhor - Giovanni Bellini (séc. XV)
Note-se o Menino envolto em faixas, prefigurando sua sepultura

Entre os cristãos orientais, a Festa da Apresentação do Senhor é chamada de Hypapanté (ὑπαπαντή), “Encontro”. Aqui vemos sintetizada a teologia da Encarnação, pela qual se realiza o “admirável intercâmbio de dons entre o céu e a terra”:

- Jesus, verdadeiro Deus, encontra-se com o seu povo, o povo da primeira aliança, representado por Simeão e Ana, e dá início ao caminho rumo ao seu sacrifício, com o qual será inaugurada a nova e eterna aliança (Lc 22,20);

- Jesus, verdadeiro homem, “nascido de uma mulher, nascido sujeito à Lei” (Gl 4,4-5), vai ao encontro do Pai, oferecendo-lhe a nossa humanidade, para elevá-la à divindade (Lc 23,46).

A origem da Festa da Apresentação do Senhor

A peregrina Etéria (ou Egéria), que visitou a Terra Santa no final do século IV, oferece-nos em seu “diário de viagem” (Itinerarium ad loca sancta) o primeiro testemunho de uma celebração litúrgica da Apresentação de Jesus no Templo:

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Por que a Liturgia? O que significa Liturgia?

Departamento das Celebrações Litúrgicas do Sumo Pontífice

Por que a Liturgia? O que significa Liturgia? (CIC 1066-1070)

A profissão de fé, abordada na primeira parte do Catecismo da Igreja Católica, é seguida pela explicação da vida sacramental, por cujo meio Cristo está presente e age, continuando a edificação da sua Igreja. Se na liturgia, aliás, não se destacasse a figura de Cristo, que é o seu princípio e está realmente presente para torná-la válida, nem sequer teríamos a liturgia cristã, que depende do Senhor e é sustentada pela sua presença.
Existe, então, uma relação intrínseca entre fé e liturgia, ambas intimamente unidas. Sem a liturgia e os sacramentos, a profissão de fé não teria eficácia, pois careceria da graça que alicerça o testemunho dos cristãos. “Por outro lado, a ação litúrgica nunca pode ser considerada genericamente, prescindindo-se do mistério da fé. A fonte da nossa fé e da liturgia eucarística, de fato, é o mesmo acontecimento: o dom que Cristo fez de si mesmo no mistério pascal” (Bento XVI, Sacramentum Caritatis, 34).
Se abrirmos o catecismo na sua segunda parte, leremos que a palavra “liturgia” significa, originariamente, “serviço de em favor do povo”. Na tradição cristã, significa que o povo de Deus faz parte da “obra de Deus” (CIC, 1069).
Em que consiste essa obra de Deus da qual fazemos parte? A resposta do catecismo é clara e nos permite descobrir a íntima conexão que existe entre a fé e a liturgia: “No símbolo da fé, a Igreja confessa o mistério da Santíssima Trindade e o seu desígnio benevolente (Ef 1,9) para toda a criação: o Pai realiza o "mistério da sua vontade" dando o seu Filho Amado e o Espírito Santo para a salvação do mundo e para a glória do seu nome” (CIC, 1066).
“Cristo, o Senhor, realizou esta obra da redenção humana e da perfeita glorificação, preparada pelas maravilhas que Deus fez no povo da antiga aliança, principalmente pelo mistério pascal da sua bem-aventurada paixão, da ressurreição dentre os mortos e da sua gloriosa ascensão” (CIC, 1067). É este o mistério de Cristo, que a Igreja “anuncia e celebra na sua liturgia a fim de que os fiéis vivam dele e deem testemunho dele no mundo” (CIC, 1068).
Por meio da liturgia, “exerce-se a obra da nossa redenção” (Concílio Vaticano II, Sacrosanctum Concilium, 2). Assim como foi enviado pelo Pai, Cristo enviou os apóstolos para anunciarem a redenção e “realizarem a obra de salvação que proclamavam, mediante o sacrifício e os sacramentos, em torno dos quais toda a vida litúrgica gira” (ibidem, 6).
Vemos assim que o catecismo sintetiza a obra de Cristo no mistério pascal, que é o seu núcleo essencial. E o nexo com a liturgia se mostra óbvio, pois “por meio da liturgia é que Cristo, nosso Redentor e Sumo Sacerdote, continua na sua Igreja, com ela e por ela, a obra da nossa redenção” (CIC, 1069). Assim, esta “obra de Jesus Cristo”, perfeita glorificação de Deus e santificação dos homens, é o verdadeiro conteúdo da liturgia.
Este é um ponto importante porque, embora a expressão e o conteúdo teológico-litúrgico do mistério pascal devam inspirar o estudo teológico e a celebração litúrgica, isto nem sempre foi assim. “A maior parte dos problemas ligados às aplicações concretas da reforma litúrgica têm a ver com o fato de que não foi suficientemente considerado que o ponto de partida do concílio é a páscoa [...]. E páscoa significa inseparabilidade da cruz e da ressurreição [...]. A cruz está no centro da liturgia cristã, com toda a sua seriedade: um otimismo banal, que nega o sofrimento e a injustiça do mundo e reduz o ser cristãos a ser educados, não tem nada a ver com a liturgia da cruz. A redenção custou a Deus o sofrimento do seu Filho e a sua morte. Daí que o seu exercitium, que, segundo o texto conciliar, é a liturgia, não pode acontecer sem a purificação e sem o amadurecimento que provêm do seguimento da cruz” (Bento XVI, Teologia della Liturgia, LEV, Vaticano, 2010, p. 775-776).
Esta linguagem conflita com aquela mentalidade incapaz de aceitar a possibilidade de uma intervenção divina real neste mundo em socorro do homem. Por isso, “quem compartilha uma visão deísta considera como integrista a confissão de uma intervenção redentora de Deus para mudar a situação de alienação e de pecado, e este mesmo juízo é emitido a propósito de um sinal sacramental que torne presente o sacrifício redentor. Mais aceitável, aos seus olhos, seria a celebração de um sinal que correspondesse a um vago sentimento de comunidade. Mas o culto não pode nascer da nossa fantasia; seria um grito na escuridão ou uma simples auto-afirmação. A verdadeira liturgia pressupõe que Deus responde e nos mostra como podemos adorá-lo. “A Igreja pode celebrar e adorar o mistério de Cristo presente na eucaristia precisamente porque o próprio Cristo se entregou antes a ela no sacrifício da cruz” (Sacramentum Caritatis, 14). A Igreja vive desta presença e tem a difusão desta presença no mundo inteiro como a sua razão de ser e de existir” (Bento XVI, Discurso de 15 de abril de 2010).
Esta é a maravilha da liturgia, que, como o catecismo recorda, é culto divino, anúncio do evangelho e caridade em ato (cf. CIC, 1070). É Deus mesmo quem age, e nós nos sentimos atraídos por esta sua ação, a fim de sermos, deste modo, transformados nele.


Fonte: Santa Sé

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Liturgia: insistentes ponderações

Dom Henrique Soares Costa, Bispo Auxiliar de Aracaju, publicou recentemente em seu blog Visão Cristã um excelente artigo sobre a Sagrada Liturgia, o qual reproduzimos aqui:

Sobre a Liturgia: insistentes ponderações

A liturgia é para nosso alimento, alento e transformação espiritual: ela nos cristifica, isto é, é obra do próprio Cristo que, na potência do Espírito, nos dá sua própria vida, aquela que ele possui em plenitude na sua humanidade glorificada no céu. Participar da liturgia é participar das coisas do céu, é entrar em comunhão com a própria vida plena e glorificada do Cristo nosso Senhor.
A liturgia não é feita produzida por nós, não é obra nossa! Ela é instituição do próprio Senhor. Para se ter uma idéia, basta pensar em Moisés, que vai ao faraó e lhe diz: “Assim fala o Senhor: deixa o meu povo partir para fazer-me uma liturgia no deserto”. E, mais adiante, explica ao faraó que somente lá, no deserto, o Senhor dirá precisamente que tipo de culto e que coisas o povo lhe oferte.
Isto tem a ação litúrgica de específico e encantador: não entramos nela para fazer do nosso modo, mas do modo de Deus; não entramos nela para nos satisfazer, mas para satisfazer a vontade de Deus. Por isso digo tantas vezes que o espaço litúrgico não é primeiramente antropológico, mas teológico: a liturgia é espaço privilegiado para a manifestação e atuação salvífica de Deus em Cristo Jesus nosso Senhor. Nela, a obra salvífica de Cristo é perenemente continuada na Igreja.
O problema é que entrou em certos ambientes da Igreja uma concepção errada de liturgia, totalmente alheia ao sentido da genuína tradição cristã: a liturgia como algo que nós fazemos, do nosso modo, a nosso gosto, para exprimir nossos próprios sentimentos. Numa concepção dessas, o homem, com seus sentimentos, gostos e iniciativas, é o centro e Deus fica de lado! Trata-se, então, de uma simples busca de nós mesmos, produzida por nós mesmos; uma ilusão, pois aí só encontramos nós e os sentimentos que provocamos. É o triste curto-circuito: faz-se tudo aquilo (coreografias, palmas, trejeitos, barulho, baterias infernais, sorrisinhos do celebrante, comentários e cânticos intimistas, invenções impertinentes e despropositadas...) para que as pessoas sintam, liguem-se, “participem”... Mas, tudo isto somente liga a assembleia a si mesma. Não passa de uma exaltação subjetiva e sentimental! Aí não se abre de fato para o Silêncio de Deus, para Aquele que vem nos surpreender com sua glória e sua ação silenciosa, profunda, consistente e transformadora. A assembleia já não celebra com a Igreja de todos os tempos e de todos os lugares; muito menos com a Igreja celeste!
O sentido da liturgia é um outro: é um culto prestado a Deus porque ele é Deus! O interesse é Deus! A liturgia é algo devido a Deus e instituído pelo próprio Deus. Quando alguém participa de uma liturgia celebrada como a Igreja determina e sempre celebrou, se reorienta, se reencontra, toma consciência de sua própria verdade: sou pequeno, dependente de Deus e profundamente amado por ele: nele está minha vida, meu destino, minha verdade, minha paz. Nada é mais libertador que isso.
Vê-se a diferença entre essas duas atitudes ante a realidade litúrgica: na visão que se está difundindo, criamos uma sensação, uma ilusão. É algo parecido com a sensação de bem-estar que se pode sentir diante de uma paisagem bonita, num bloco de carnaval, num show, num momento sublime, numa noite com a pessoa amada... Na perspectiva que a Igreja sempre teve e ensinou, não! Estamos diante da Verdade que é Deus; verdade que não produzimos nem inventamos, mas vem a nós e enche o nosso coração! Devemos procurá-la? Certamente sim: "Fizeste-nos para ti, Senhor, e nosso coração andará inquieto enquanto não descansar em ti!" Mas para isto é indispensável a capacidade de silêncio, de escuta, de abrir os olhos do coração para a beleza de Deus. A liturgia nos dá isto!