“Uma multidão da coorte celeste cantava louvores,
dizendo: ‘Glória a Deus no mais alto dos céus...’” (cf. Lc 2,13-14).
Das cinco grandes Solenidades do Senhor elencadas nos nn.
1-2 da Tabela de precedência dos dias litúrgicos (Páscoa, Natal, Epifania,
Ascensão e Pentecostes), duas possuem atualmente uma sequência própria: a
Páscoa (Victimae paschali laudes) e o Pentecostes (Veni, Sancte Spiritus).
Entre os séculos X e XVI, porém, todas as principais celebrações do Ano Litúrgico contavam
com uma ou mais sequências, composições poéticas entoadas antes do Evangelho da
Missa que sintetizam o mistério celebrado, até que a reforma do Concílio de Trento as reduziu a apenas quatro [1].
A Solenidade do Natal do Senhor, com efeito, contava com ao
menos três sequências, em alusão às três Missas (da Noite, da Aurora e do Dia):
Grates nunc omnes, Eia recolamus e Natus ante saecula.
Essas composições foram elencadas pelo célebre Notker Balbulus
(†912), monge beneditino da Abadia de São Galo (Sankt Gallen), na Suíça, em seu
Liber Sequentiarum [2].
Nesta postagem gostaríamos de apresentar a sequência Grates
nunc omnes (“Demos graças, todos, agora”), ora indicada para a Missa
da Noite do Natal (In galli cantu, In prima Missa), ora para
a Missa da Aurora (In primo mane). Contudo, é mais adequada para a primeira,
dada sua referência ao canto dos anjos, recordado no Evangelho da Missa da
Noite (Lc 2,1-14).
A maioria dos estudiosos considera que essa sequência não é de
Notker, sendo acrescentada posteriormente em seu elenco. Trata-se, provavelmente,
de uma composição anônima realizada no sul da Alemanha no século XI.
Originalmente era composta por apenas duas estrofes: Grates
nunc omnes reddamus Domino Deo (5 versos) e Huic
oportet ut canamus (3 versos). Logo, porém, foi enriquecida com
outras cinco estrofes de 5 versos.
Com efeito, se a primeira estrofe nos convida a dar graças a
Cristo, as seguintes estendem a ação de graças ao Pai e ao Espírito Santo (estrofes
2-3), à Trindade como um todo (4), à Virgem Maria (5) e aos anjos (6).
Nessa “forma longa” da sequência, a segunda estrofe do texto
original, Huic oportet, podia também ser entoada como refrão, repetida a
cada estrofe.
A composição, com efeito, era muito popular entre o final da Idade Média
e o início da Idade Moderna, sendo acolhida inclusive em ambiente luterano,
recebendo adaptações para as línguas vernáculas, e entoada em diversos momentos
do culto.
Em alguns lugares, pois, era entoada como canto
de entrada ou de Comunhão, considerando sua forma de “ladainha”, intercalando o
“convite ao louvor” a um refrão.
Além disso, o convite “reddamus”, do
verbo “reddere” (“dar”, no sentido de “dar graças”), pode ser facilmente
associado ao verbo “redire” (“retornar”, no sentido de “retornar a Deus”,
simbolismo expresso no gesto da procissão).
Segue, pois, o texto da sequência Grates nunc omnes (forma
longa) no original (em latim) e em uma tradução nossa bastante livre.
Sequentia in Nativitate Domini: Grates nunc omnes
1. Grates nunc omnes
reddamus Domino Deo,
qui sua nativitate
nos liberavit
de diabolica potestate.
2. Grates nunc omnes
reddamus aeterno Patri,
pro sua qui pietate
mundo salutem
de matris contulit puritate.
3. Grates nunc omnes
reddamus Flamini Sancto,
pro sua quod bonitate
mundum lustravit
ab idolatica vanitate.
4. Grates nunc omnes
reddamus simplici Deo
et trino, liberatori
clementissimo
nostroque benigno salvatori.
5. Grates nunc omnes
reddamus virgini matri,
de cuius fecunditate
auctor salutis
cum vera prodiit deitate.
6. Grates nunc reddant
angelicae potestates
et caelestium virtutes
omnipotenti
pro liberatis atque salvatis.
7. Huic oportet ut canamus
cum angelis semper:
Gloria in excelsis. Amen [3].
Sequência do Natal do Senhor: Demos graças, todos, agora
1. Demos graças, todos, agora,
ao Senhor Deus,
que por seu Nascimento
nos libertou
do poder do diabo.
2. Demos graças, todos, agora,
ao Eterno Pai,
que por sua misericórdia
deu ao mundo a salvação
pela pureza de uma mãe.
3. Demos graças, todos, agora,
ao Espírito Santo,
que por sua bondade
purificou o mundo
da vaidade da idolatria.
4. Demos graças, todos, agora,
a Deus simples e trino,
Libertador
Clementíssimo
e nosso benigno Salvador.
5. Demos graças, todos, agora,
à Virgem Mãe,
de cuja fecundidade
procede, como verdadeiro Deus,
o autor da salvação.
6. Deem graças, agora,
ao Onipotente,
os coros dos anjos
e as virtudes celestes,
pelos que foram libertos e salvos.
7. A Ele convém cantar
sempre com os anjos:
Glória nas alturas! Amém.
Breve comentário:
As primeiras estrofes do poema seguem a mesma estrutura,
servindo como “convite ao louvor”: “Demos graças, todos...” (Grates reddamus
omnes...).
Destaca-se o advérbio “agora” (“nunc”), que nos
remete ao “hoje” (“hodie”) repetido diversas vezes nos textos litúrgicos
do Natal. A celebração, com efeito, não é mera recordação do passado, mas sim atualização
do mistério da salvação (cf. Catecismo da Igreja Católica, nn.
1104.1165).
A 1ª estrofe é dirigida diretamente a Jesus Cristo, referido como “Senhor
Deus”, rendendo-lhe graças por seu Nascimento, pelo qual fomos libertados do poder
do mal. Evidencia-se assim o caráter salvífico da Encarnação: toda a vida de
Cristo é mistério de salvação (cf. ibid., n. 517-518.1115).
Se a 1ª estrofe é dirigida ao Filho, a 2ª estrofe estende a ação de
graças ao “Eterno Pai”. A Encarnação é um evento trinitário, que brota
da piedade/misericórdia do Pai para a salvação do mundo. Recorda-se também a
participação do ser humano no mistério, através da colaboração da mulher (“pela
pureza de uma mãe”).
Completando a invocação das três Pessoas da Santíssima
Trindade, a 3ª estrofe é dirigida ao Espírito Santo, referido aqui como “sopro” ou “vento”, “flamen” (cf. Jo 3,8;
20,22; At 2,1-4). O poema celebra a ação do Espírito que, em sua
bondade, purificou o mundo do mal, representado pela “vaidade da idolatria”.
Após mencionar cada uma das três Pessoas, na 4ª estrofe somos convidados a render graças ao Deus que é Uno (ou “simples”) e Trino, “Libertador
Clementíssimo e nosso benigno Salvador”.
À ação de graças à Trindade segue-se na 5ª estrofe o “louvor”
à Bem-aventurada Virgem Maria, já citada na 2ª estrofe. Aqui temos um texto bastante
similar à oração do dia (coleta) da Solenidade da Santa Mãe de deus (01 de
janeiro), a qual remonta ao Sacramentário Gregoriano (séc. VIII): da
fecundidade da “Virgem Mãe... procede, como verdadeiro Deus, o autor da
salvação”.
A 6ª estrofe, a última do “corpo do texto”, traz
uma pequena diferença: aqui não somos convidados a render graças “aos anjos”,
mas os próprios “coros dos anjos e as virtudes celestes” são convidados a dar
graças a Deus “Onipotente”, por nós, que fomos “libertos e salvos”.
A 7ª estrofe, por fim, a segunda do texto original (que,
como vimos, podia ser entoada também como refrão), retoma o convite a “cantar sempre
com os anjos” os louvores a Deus, citando aqui o início do “hino angélico” proclamado
na noite santa do Nascimento do Senhor: “Gloria in excelsis!” - “Glória nas
alturas!”.
Notas:
[1] Além das citadas Victimae paschali laudes (Páscoa) e Veni, Sancte Spiritus (Pentecostes), o Concílio de Trento conservou as sequências de Corpus Christi, Lauda Sion (atualmente facultativa) e das Missas dos fiéis defuntos, Dies irae (atualmente entoada como hino facultativo da Liturgia das Horas na última semana do Ano Litúrgico).
Posteriormente seria acrescentada a sequência Stabat Mater dolorosa para a Memória de Nossa Senhora das Dores (15 de setembro), que atualmente é facultativa.
[2] Já falamos aqui em nosso blog sobre seis das sequências
compiladas por Notker:
Sancti Baptistae, Christi praeconis (Natividade de
São João Batista);
Petre, summe Christi pastor (São Pedro e São Paulo);
Summi triumphum Regis (Ascensão do Senhor);
Sancti Spiritus adsit nobis gratia (Pentecostes);
Congaudent angelorum chori (Assunção de Maria);
Stirpe Maria regia (Natividade de Maria).
Outras sequências apresentadas foram:
Psallite regi nostro (Martírio de São João Batista) -
Gottschalk de Aachen (séc. XI);
Ave Maria, Virgo serena (Anunciação) - composição anônima
(séc. XI);
Zyma vetus expurgetur (Páscoa) - Adão de São Vítor
(séc. XII);
Decet huius cunctis horis (Visitação de Maria) - Johann
von Jenstein (séc. XIV).
[3] NOTKER
Balbulus. Liber Sequentiarum, cap. II: In primo mane. in: MIGNE, J.
P. Patrologiae: Cursus Completus, Series Latina, vol. 131, pp. 1005-1006.
Imagens: Wikimedia Commons.
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