“É agora o momento favorável, é agora o dia
da salvação!” (2Cor 6,2).
Como vimos em
postagens anteriores dedicadas à história do Ano Litúrgico, nos primeiros três
séculos a única celebração cristã era a Páscoa: a Páscoa semanal, celebrada a
cada domingo, dia do Senhor; e a Páscoa anual, celebrada no domingo após a primeira
lua cheia da primavera (no hemisfério norte).
A Páscoa anual
era precedida por dois dias de intenso jejum, a sexta-feira e o sábado, que
dariam origem ao Tríduo Pascal. A partir do século IV, porém, esse jejum é
estendido para um período de quarenta dias: a “Quadragesima” ou Quaresma.
1. As origens da Quaresma
Entre o final do
século III e o início do século IV havia em Alexandria (Egito) um jejum de
quarenta dias (τεσσαρακοστὴ), que iniciava na Festa da Teofania (Batismo do
Senhor), no dia 06 de janeiro, como recordação do jejum de Jesus no deserto (Mt 4,1-11 e paralelos).
Jesus no deserto (Ivan Kramskoy) |
O Concílio de
Niceia (325) fala da “quadragesima
paschae” como algo conhecido. Os estudiosos, porém, não estão de acordo se
o Concílio se refere aqui aos 40 dias em preparação à Páscoa ou aos quarentas
dias da Páscoa à Ascensão.
A Quaresma
entendida como 40 dias de jejum em preparação penitencial para a Páscoa se
populariza nas igrejas do Oriente e do Ocidente no início do século IV, como atestam,
por exemplo:
- Eusébio de
Cesareia (†340) em sua De sollemnitate
paschali [1];
- Santo Atanásio
de Alexandria (†373) em suas Cartas
pascais [2];
- São Cirilo de
Jerusalém (†386) em suas Catequeses
pré-batismais [3];
- e a peregrina
Etéria (ou Egéria), que visitou Jerusalém no final do século IV: “Quando chegam
os dias pascais, celebram-se assim: tal como entre nós se observam quarenta
dias antes da Páscoa...” [4].
O simbolismo do
número quarenta, com efeito, é amplamente testemunhado na Escritura. Além do
jejum de 40 dias de Jesus, que citamos acima (cf. Catecismo da Igreja Católica, n. 540), temos:
- os 40 dias do
dilúvio (Gn 7–8);
- os 40 anos da
peregrinação de Israel no deserto (Ex
16,35; Dt 2,7; 8,2; 29,4; Sl 94/95);
- os 40 dias de
Moisés sobre o Sinai (Ex 24,18);
- os 40 dias da
peregrinação do profeta Elias ao monte Horeb (1Rs 19,8);
- os 40 dias da
penitência da cidade de Nínive (Jn
3,4) [5].
Apesar da clara
associação com o número quarenta, donde o nome Quaresma (Quadragesima, em latim), a forma de contar os 40 dias, porém,
variou ao longo do tempo e conforme as diversas igrejas.
No Rito Romano, esse tempo originalmente começava no I Domingo da Quaresma (In capite Quadragesimae), o sexto domingo antes da Páscoa, e terminava
na quinta-feira antes da Páscoa (Quinta-feira Santa).
O início da
Quaresma era provavelmente marcado por uma vigília noturna entre o sábado e o
domingo. Uma vez que durante esse tempo se omitem certos sinais de louvor,
sobretudo o Aleluia (“jejum dos ouvidos”), o 1º Domingo da Quaresma era marcado
pela “despedida do aleluia” (posteriormente antecipada para o domingo da
Septuagésima, como veremos adiante).
Para saber mais sobre a despedida do aleluia, clique aqui.
A passagem pelo Mar Vermelho (Lidia Kozenitzky): início da peregrinação de Israel pelo deserto |
Na contagem dos 40 dias da Quaresma, porém, logo foram excluídos os domingos, dia consagrado à memória da Ressurreição do Senhor, no qual os cristãos tradicionalmente não jejuam.
Assim, entre o século V e o século VIII seriam acrescentados à contagem os quatro dias anteriores ao I Domingo da Quaresma, da quarta-feira ao sábado, além da sexta-feira e do sábado antes da Páscoa, de modo a completar 40 dias de jejum.
Nos demais Ritos Ocidentais (Ambrosiano e Hispano-Mozárabe), porém, conserva-se o início da Quaresma no sexto domingo antes da Páscoa.
2. A Quaresma, itinerário batismal e
penitencial
A Quaresma está
diretamente relacionada a duas “instituições” da Igreja primitiva: o
catecumenato e a penitência pública.
Antes de tudo a
Quaresma era o período de preparação próxima dos catecúmenos para a recepção
dos sacramentos da Iniciação Cristã na Vigília Pascal. Assim, durante esse
tempo tinham lugar, por exemplo, os “escrutínios”, acompanhados pela
proclamação os Evangelhos da samaritana (Jo
4,5-42), da cura do cego de nascença (Jo
9,1-41) e da ressurreição de Lázaro (Jo
11,1-45).
Com o tempo, o
catecumenato cede espaço ao Batismo de crianças, administrado ao longo de todo
o ano e não apenas na Vigília Pascal. Assim, o caráter batismal da Quaresma
permaneceu por muitos séculos em “segundo plano”. Não obstante, os fiéis eram
exortados a preparar-se durante a Quaresma para a solene renovação das promessas
batismais na Vigília Pascal.
Como vimos em
nossa postagem sobre a história da Quarta-feira de Cinzas, a partir do século
IV desenvolve-se um rigoroso itinerário penitencial para os pecadores públicos,
que iniciava na segunda-feira da I semana da Quaresma e concluía na manhã da
Quinta-feira Santa, com o rito da reconciliação dos penitentes.
O início desse
itinerário penitencial era marcado pela imposição das cinzas, inicialmente na
segunda-feira da I semana e depois transferida para a quarta-feira in capite ieiunni (no início do jejum).
Com a extensão do rito da imposição das cinzas a todos os fiéis no século X,
esse dia passa a ser conhecido como dies
cinerum (dia das cinzas) ou feria
quarta cinerum (quarta-feira de cinzas).
O caráter penitencial da Quaresma foi reforçado ainda com a instituição das “estações quaresmais romanas”: a celebração da Missa nas principais igrejas de Roma precedida de uma procissão penitencial, sobretudo nas quartas, sextas e sábados.
3. O Tempo da Septuagésima e o Tempo da Paixão
A partir dos
séculos VI e VII, surgiu paulatinamente uma “pré-Quaresma” de três semanas. Assim,
os três domingos anteriores ao início da Quaresma foram denominados, de maneira
aproximativa, domingos da Quinquagésima, da Sexagésima e da Septuagésima.
Também nos ritos
orientais há uma espécie de “pré-Quaresma” de quatro domingos, nos quais os
Evangelhos proclamados vão pouco a pouco introduzindo os fiéis no Mistério
Pascal.
No Ocidente, porém,
essa ampliação da Quaresma surgiu provavelmente em ambiente monástico, para
enfatizar o caráter penitencial desse tempo. Assim, o número simbólico de
“setenta dias” foi interpretado em alusão aos setenta anos do cativeiro do povo
de Israel na Babilônia (Jr 25,11;
29,10).
Também no século
VII a Quaresma propriamente dita foi reduzida a quatro semanas, com as últimas
duas semanas antes da Páscoa passando a integrar o Tempo da Paixão. Assim, o V
Domingo da Quaresma tornou-se o I Domingo da Paixão e o Domingo de Ramos o II
Domingo da Paixão.
Esse Tempo da
Paixão, além dos textos próprios, que enfatizavam já o Mistério Pascal, era
marcado sobretudo pelo uso de cobrir as imagens e as cruzes da igreja com panos
roxos. Em alguns lugares, a partir do século XI, todo o presbitério era coberto
por uma grande cortina roxa, denominada “véu quaresmal” (velum quadragesimale) ou “véu de jejum”.
Esse “jejum dos olhos” era interpretado em alusão a Jo 8,59: “Então eles pegaram em pedras para apedrejar Jesus, mas ele escondeu-se e saiu do Templo”. Atualmente tal gesto é facultativo a partir do V Domingo da Quaresma, sendo prescrito apenas a partir do final da Missa da Ceia do Senhor, na Quinta-feira Santa [6].
4. A Quaresma hoje
A reforma
litúrgica do Concílio Vaticano II (1962-1965) quis recuperar o caráter original
da Quaresma, à luz da Constituição Sacrosanctum
Concilium, que exortou a resgatar a dupla dimensão desse tempo, ao mesmo
tempo batismal e penitencial (nn. 109-110).
Por essa razão,
o Tempo da Septuagésima foi suprimido, sendo suas orações e leituras acolhidas
no Tempo Comum (Tempus per annum).
Também foi suprimido o Tempo da Paixão, embora a V semana da Quaresma e a
Semana Santa conservem vários textos próprios (prefácio da Paixão, hinos, etc.).
Assim, a
Quaresma inicia com a Quarta-feira de Cinzas (quarta-feira da sétima semana
antes da Páscoa) e termina na tarde da Quinta-feira Santa, antes da Missa da
Ceia do Senhor (com a qual tem início o Tríduo Pascal) [7].
“O Tempo da
Quaresma visa preparar a celebração da Páscoa; a Liturgia quaresmal, com
efeito, dispõe para a celebração do Mistério Pascal tanto os catecúmenos, pelos
diversos graus de iniciação cristã, como os fiéis, pela comemoração do Batismo
e pela penitência” (Normas Universais
sobre o Ano Litúrgico e o Calendário, n. 27) [8].
A reforma litúrgica recuperou o itinerário catecumenal da Quaresma, com os Evangelhos da samaritana, do cego de nascença e da ressurreição de Lázaro, como vimos anteriormente. Esses Evangelhos são proclamados nos domingos III a V da Quaresma do ano A, podendo ser retomados sempre que na comunidade há catecúmenos [9].
Nos dois primeiros domingos da Quaresma, por sua vez, leem-se respectivamente os relatos das tentações de Jesus no deserto e da Transfiguração, conforme os três Evangelhos Sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas).
Além da “Quaresma batismal” do ano A, os domingos III a V dos outros dois anos possuem sua respectiva série de Evangelhos: uma “Quaresma cristológica” no ano B e uma “Quaresma penitencial” no ano C.
As tentações de Jesus no deserto (Duccio): Evangelho do I Domingo da Quaresma |
Nos dias feriais
até o final da III semana os textos bíblicos refletem sobre diversos “temas”
próprios da espiritualidade quaresmal. A partir da IV semana começa uma leitura
semicontínua do Evangelho de João,
que prossegue durante o Tempo Pascal.
Vale destacar ainda os nove hinos próprios para esse tempo na Liturgia das Horas:
Domingos do Tempo da Quaresma
Vésperas: Audi, benígne Cónditor (Ó Pai, nesta Quaresma)
Ofício das Leituras: Ex more docti mýstico (Seguindo o preceito místico)
Laudes: Precémur omnes cérnui (Humildes ajoelhados)
Dias de semana do Tempo da Quaresma
Vésperas: Iesu, quadragenáriae (A abstinência quaresmal)
Ofício das Leituras: Nunc tempus acceptábile (Agora é tempo favorável)
Laudes: Iam, Christe, sol iustítiae (Ó Cristo, sol de justiça)
Tempo da Quaresma: Hora Média
Hora Terça (9h): Dei fide, qua vívimus (Na fé em Deus, por quem vivemos)
Hora Sexta (12h): Qua Christus hora sítiit (Na mesma hora em que Jesus, o Cristo)
Hora Nona (15h): Ternis ter horis números (O número sagrado)
Apesar da grande
riqueza de leituras, orações e hinos da Quaresma renovada pelo Concílio Vaticano II,
ainda há muito a se fazer para que os fiéis descubram o sentido desse tempo em
plenitude, sobretudo o seu caráter batismal:
“No âmbito da
piedade popular o sentido mistérico da Quaresma não é facilmente percebido e
não são colhidos alguns de seus grandes valores e ‘temas’, tais como a relação
entre o ‘sacramento de quarenta dias’ e os sacramentos da iniciação cristã,
como também o mistério do ‘êxodo’ presente ao longo de todo o itinerário
quaresmal” (Diretório sobre Piedade
Popular e Liturgia, n. 124) [10].
Com efeito, a
piedade popular quaresmal centra-se nos mistérios da Paixão e Morte do Senhor.
Ainda que legítima, essa contemplação exprime apenas uma parte do mistério da
Quaresma (cf. Diretório sobre Piedade Popular e Liturgia, nn. 128-129).
Além disso, a
famigerada “Campanha da Fraternidade” divide ainda mais a atenção dos fiéis,
com reflexões (ainda que legítimas) que pouco ou nada têm a ver com a ampla
riqueza bíblica, teológica e espiritual da Quaresma.
Para saber em que momento cantar o hino da Campanha da Fraternidade nas celebrações da Quaresma conforme as orientações da própria CNBB, clique aqui.
Notas:
[1] EUSÉBIO DE
CESAREIA. Sobre a Páscoa (De sollemnitate paschali): “Quanto a
nós, celebramos de novo, em cada ano, o início do jejum segundo o seu regresso
cíclico, e empenhamo-nos, em ordem à preparação, num exercício de quarenta dias
que precedem a festa...” (in:
CORDEIRO, José de Leão [org.]. Antologia
Litúrgica: Textos Litúrgicos, Patrísticos e Canónicos do Primeiro Milénio.
Secretariado Nacional de Liturgia: Fátima, 2003, p. 354).
[2] cf. ATANÁSIO DE ALEXANDRIA, Cartas pascais (Epistulae festales); in: CORDEIRO, op. cit., p. 385.
[3] CIRILO DE
JERUSALÉM. Catequeses pré-batismais (Protocatechesis): “Tens um período de
quarenta dias de penitência” (in: CORDEIRO,
op. cit., p. 470).
[4] ETÉRIA. Peregrinação ou diário de Viagem (Itinerarium ad loca sancta); in: CORDEIRO, op. cit., p. 451.
[5] Sobre o
simbolismo bíblico e teológico dos números, cf.:
HEINZ-MOHR,
Gerd. Dicionário dos Símbolos: Imagens e
sinais da arte cristã. São Paulo: Paulus, 1994, pp. 340-348.
LÉON-DUFOUR,
Xavier et al. Vocabulário de Teologia
Bíblica. 9ª ed. Petrópolis: Vozes, 2008, pp. 672-675.
LURKER, Manfred.
Dicionário de figuras e símbolos bíblicos.
São Paulo: Paulus, 1993, pp. 160-163.
[6] Carta
Circular Paschalis Sollemnitatis, n.
26. As cruzes permanecem cobertas até o final da Celebração da Paixão do
Senhor, na Sexta-feira Santa, e as imagens até o início da Vigília Pascal (cf. CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO. Paschalis Sollemnitatis: A preparação e
celebração das festas pascais. Brasília: Edições CNBB, 2018, p. 15.
Coleção: Documentos da Igreja, n. 38).
[7] Sobre a
reforma da Quaresma, cf. BUGNINI,
Annibale. A reforma litúrgica: 1948-1975.
São Paulo: Paulinas; Paulus; Loyola, 2018, pp. 272.282.
[8] MISSAL
ROMANO. Tradução portuguesa da 2ª edição
típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1991, p. 105.
[9] Paschalis Sollemnitatis, n. 24 (CONGREGAÇÃO
PARA O CULTO DIVINO, op. cit., 2018, pp.
14-15).
[10] CONGREGAÇÃO
PARA O CULTO DIVINO E A DISCIPLINA DOS SACRAMENTOS. Diretório sobre Piedade Popular e Liturgia. São Paulo: Paulinas,
2003, p. 112.
Referências:
ADAM, Adolf. O Ano Litúrgico: Sua história e seu
significado segundo a renovação litúrgica. São Paulo: Loyola, 2019, pp. 66-72.
AUGÉ, Matias. Ano Litúrgico: É o próprio Cristo presente
na sua Igreja. São Paulo: Paulinas, 2019, pp. 155-159.190-191.
BERGAMINI,
Augusto. Cristo, Festa da Igreja. O Ano Litúrgico. São Paulo: Paulinas,
1994, pp. 265-267.
RIGHETTI, Mario.
Historia de la Liturgia, vol. I:
Introducción general; El año litúrgico; El Breviario. Madrid: BAC, 1955,
pp. 736-743.
THURSTON,
Herbert. Lent. in: The Catholic
Encyclopedia, vol. 9, 1910. Disponível em: New Advent.
Andre, boa noite.
ResponderExcluirPode fazer novena nas missaa semanais e dominicais durante a quaresma? Por exemplo: Dia 19/03 Sao Jose...
Depende da forma como está organizada a novena. E isso vale para qualquer tempo litúrgico, não só para a Quaresma.
ExcluirO Diretório sobre Piedade Popular e Liturgia indica no n. 13 que não se deve misturar práticas de piedade com as ações litúrgicas.
O ideal, portanto, é que a novena seja rezada fora da Missa, sobretudo se essa é composta por várias orações. Se for uma novena mais simples, com apenas uma breve oração, até poderia ser recitada no final da Missa, antes da bênção, ou na conclusão das Preces.
Novena de Sao Jose...sei q missas votivas nao podem, mas e as novenas?
ResponderExcluir