quarta-feira, 23 de setembro de 2020

As Quatro Têmporas: uma Liturgia “ecológica”

Ó Senhor, vós marcastes para a terra o lugar de seus limites, vós formastes o verão, vós criastes o inverno” (Sl 73,17).

Desde a eleição do Papa Francisco o tema do cuidado da criação tem estado em destaque. Na Encíclica Laudato si’, publicada em 2015, o Pontífice destaca o alcance “ecológico” (ou “cósmico”) da Liturgia, particularmente da Eucaristia (n. 236):

“A Eucaristia é, por si mesma, um ato de amor cósmico. ‘Sim, cósmico! Porque mesmo quando tem lugar no pequeno altar duma igreja da aldeia, a Eucaristia é sempre celebrada, de certo modo, sobre o altar do mundo’. A Eucaristia une o céu e a terra, abraça e penetra toda a criação. O mundo, saído das mãos de Deus, volta a Ele em feliz e plena adoração” [1].

No ciclo do Ano Litúrgico, existem quatro celebrações que tocam mais diretamente o mistério da natureza e que, embora não tenham sido abolidas pela reforma litúrgica do Concílio Vaticano II, atualmente são pouco conhecidas: as Quatro Têmporas.

Do latim quattuor tempora (quatro tempos ou quatro estações), as Quatro Têmporas são celebrações do Rito Romano que marcam a passagem das quatro estações do ano: primavera, verão, outono e inverno.


A origem das Quatro Têmporas

O Liber pontificalis (séc. VI-VII) atribui sua origem mais remota ao Papa São Calisto I (217-222), que teria prescrito para a igreja de Roma três jejuns anuais “nos sábados do trigo, do vinho e do azeite, segundo a profecia” [2]. As três têmporas citadas eram:
- as do verão (no hemisfério norte), celebradas em junho, após a colheita do trigo;
- as do outono, em setembro, para a colheita das uvas;
- e as do inverno, em dezembro, para a semeadura.

São Calisto I, Papa (217-222)

Posteriormente foram inseridas as têmporas da primavera, em março. No tempo do Papa São Leão Magno (440-461) as quatro já são conhecidas, como ele afirma em uma de suas homilias para as têmporas, destacando a dimensão do jejum:

“Os jejuns, por inspiração do Espírito Santo, distribuem-se pelo ciclo do ano todo, de tal modo que a lei da abstinência atinge todas as estações. De fato, celebramos o jejum da Primavera na Quaresma, do Verão no Pentecostes, do Outono no sétimo mês, porém, o do Inverno neste décimo mês” [3].

O número quatro, além de completar o número das estações, evoca também uma fundamentação bíblica. Trata-se do texto de Zc 8,19, que menciona quatro jejuns ao longo do ano. Vale destacar, porém, que nesta perícope o jejum adquire não um caráter penitencial, mas festivo, dupla dimensão também presente nas têmporas cristãs.


As Têmporas e os dias da semana

Como vimos, as têmporas estão diretamente associadas à prática do jejum, o que determinou os dias da semana em que eram celebradas: quarta-feira, sexta-feira e sábado, como indica mais uma vez são Leão Magno:

“Exortamos a vossa santidade a jejuar na quarta e na sexta-feira, e a celebrarmos unidos, nos sábados, as vigílias junto do bem-aventurado Apóstolo Pedro” [4].

São Leão Magno, Papa (440-461)

Desde a Didaché, documento cristão do século I, a quarta e a sexta eram dias de jejum: “jejuai na quarta-feira e no dia da preparação” [5]. O dia da preparação (“parasceve”) indica aqui a preparação ao sábado, dado a influência judaica.

O sábado foi inserido como dia de jejum mais tarde, provavelmente do século III, como um prolongamento do jejum da sexta. Aos três dias foi dado um simbolismo associado à Paixão: quarta-feira, segundo a tradição, seria o dia em que Judas decidiu entregar Jesus; sexta-feira é, naturalmente, o dia da crucificação; e sábado é o dia em que o Senhor estava no sepulcro.

As Têmporas e o Ano Litúrgico

Se os dias da semana estavam fixos, o mesmo não ocorria com os dias do ano, sobretudo a partir do momento em que as Têmporas se difundiram fora de Roma. Estas nunca foram adotadas no Oriente, sendo celebrações tipicamente romanas, acolhidas apenas em regiões sob sua influência: Itália (séculos VI-VII); Inglaterra (séc. VII); e Alemanha, donde passou à França (séc. VIII).

Cada uma dessas regiões celebrava as têmporas em uma data. Por exemplo, algumas igrejas celebravam as têmporas de verão na semana antes do Pentecostes, outras na semana seguinte, ou mesmo duas semanas depois.

 Foi o Papa São Gregório VII (1073-1085), durante o Sínodo de Roma de 1078, a fixar as têmporas em semanas específicas do Ano Litúrgico:
- Têmporas de primavera (de outono no hemisfério sul): na I semana da Quaresma;
- Têmporas de verão (de inverno no hemisfério sul): na semana após o Pentecostes;
- Têmporas de outono (de primavera no hemisfério sul): na terceira semana de setembro, entre as Festas da Santa Cruz (14) e de São Miguel (29);
- Têmporas de inverno (de verão no hemisfério sul): na terceira semana de dezembro, após a Memória de Santa Luzia (13).

São Gregório VII, Papa (1073-1085)

As Missas das Quatro Têmporas

A celebração das Têmporas logo foi enriquecida com Missas próprias para todos os dias, inclusive com duas leituras do Antigo Testamento nas quartas-feiras e seis nos sábados (sendo a última do Novo Testamento). No início estas leituras do sábado eram na verdade doze, uma vez que cada uma era proferida em latim e grego.

Em todos os sábados das Têmporas a quinta leitura era tomada do Livro de Daniel, seguida do cântico de Dn 3,52-56, a primeira parte do cântico dos três jovens na fornalha, um hino de louvor ao Senhor.

A este cântico se acrescentavam dois versos, o primeiro convidando os anjos e santos ao louvor, e o segundo, inspirado na segunda parte do hino (vv. 57-88), estendendo o convite a toda a criação: “Benedicant te caeli, terra, mare, et omnia quae in eis sunt. Et laudent te, et glorificent in saecula” (Te bendigam céus, terra, mar e tudo o que neles há. E te louvem, e te glorifiquem pelos séculos).

Embora com o tempo as orações que recordavam os ciclos da natureza e a ação de graças pelos frutos da terra tenham sido substituídas por outras que faziam referência mais direta aos tempos litúrgicos, a presença do cântico do Livro de Daniel, sobretudo com a adição do versículo que mencionamos, manteve a dimensão “cósmica” ou “ecológica” da celebração das têmporas.

As ordenações nas Quatro Têmporas

Como vimos, o sábado era o dia mais solene das Têmporas, inicialmente com uma vigília que durava a noite toda (o que justifica o grande número de leituras). Era neste dia que, desde o tempo do Papa São Gelásio I (492-496), eram conferidas as ordenações diaconais e presbiterais, dentro da grande vigília do sábado na Basílica de São Pedro.

Estas ordenações eram preparadas na quarta e na sexta, quando se anunciavam à comunidade os nomes dos candidatos (como os “proclamas” do Matrimônio) e todos se preparavam pela oração e pelo jejum.

As Quatro Têmporas hoje

Como afirmamos anteriormente, as Têmporas não foram abolidas pela reforma litúrgica do Concílio Vaticano II. Sua regulamentação, porém, foi confiada às Conferências Episcopais, que pouco ou nada fizeram. Isto não impede que possamos resgatá-las em nossas comunidades, dando-lhes novo sentido.

Sobre as Têmporas afirmam as Normas Universais sobre o Ano Litúrgico e o Calendário (n. 45): “Nas Quatro Têmporas do ano, a Igreja costuma rogar ao Senhor pelas várias necessidades humanas, principalmente pelos frutos da terra e pelo trabalho dos homens, e render-lhe graças publicamente” [6]. Vemos aqui que a ênfase está na dimensão agrícola, como pedido a Deus por bom tempo para o cultivo, bem como na ação de graças a Deus pelo dom da criação.

Reconectando-se com a dimensão “ecológica” das têmporas, sua celebração poderia ser realizada atualmente mais em sintonia com os ciclos da natureza, e não tanto com os tempos litúrgicos, no próprio dia em que ocorrem os solstícios e equinócios que marcam a mudança das estações:
- 20 ou 21 de março: primavera no hemisfério norte e outono no hemisfério sul;
- 20 ou 21 de junho: verão no hemisfério norte e inverno no hemisfério sul;
- 22 ou 23 de setembro: outono no hemisfério norte e primavera no hemisfério sul;
- 21 ou 22 de dezembro: inverno no hemisfério norte e verão no hesmisfério sul.

"Quatro Estações" - Walter Crane (1845-1915)

Inclusive as supracitadas Normas indicam que, “para cada dia destas celebrações, escolha-se entre as Missas para diversas necessidades a que mais se adaptar ao objetivo” (n. 47). Isto se torna mais fácil nas Têmporas de junho e setembro, uma vez que caem no Tempo Comum, e mais difícil nas Têmporas de março e dezembro, que caem respectivamente na Quaresma e no Advento [7].

De toda forma, nos dias permitidos podem ser celebradas, por exemplo, uma das seguintes Missas: “Para a sementeira” (Missal, p. 917), “Após as colheitas” (p. 918), “Pela santificação do trabalho” (p. 915) ou “Em ação de graças” (p. 929).

Se não for possível celebrar a Missa, cumpre notar que o Ritual de Bênçãos possui formulários análogos, que podem ser usados na forma de uma Celebração da Palavra: “Bênção de plantações, campos e pastagens” (Ritual, p. 270), “Bênção na apresentação de frutos novos” (p. 277); “Bênção de instrumentos de trabalho” (p. 255); e “Bênção em ação de graças” (p. 454).

Além disso, é possível acrescentar à celebração outros elementos associados à mudança de estações:

- cantos que recordem o louvor da criação ao Senhor, como o cântico do Livro de Daniel (Dn 3,57-88), entoado nas Laudes das solenidades e festas;



- preces adequadas pela criação e pelas plantações na Oração dos Fiéis;

- rezar em voz alta as orações da apresentação das oferendas, que fazem menção aos “frutos da terra” e ao “trabalho do homem”;



Notas:
[1] FRANCISCO, Papa. Carta Encíclica Laudato si’ sobre o cuidado da casa comum. Sôa Paulo: Paulinas, 2015, p. 187. O trecho entre aspas simples é uma citação da Encíclica Ecclesia de Eucharistia do Papa São João Paulo II (n. 8).

[2] Liber Pontificalis - in: CORDEIRO, José de Leão (Org.). Antologia Litúrgica: Textos Litúrgicos, Patrísticos e Canónicos do Primeiro Milénio. Secretariado Nacional de Liturgia: Fatima, 2003, p. 1321. A “profecia” citada parece ser Jl 2,12-19, perícope na qual encontramos, além de duplo convite ao jejum (vv. 12.15), a referência a trigo, vinho e óleo (v. 19).

[3] Leão Magno, Papa. Sermão 8 sobre o jejum do décimo mês. - in: Antologia Litúrgica, p. 1034. O sétimo e o décimo mês são aqui, respectivamente, setembro e dezembro, uma vez que o ano tinha início em 25 de março. A referência às estações, reiteramos, é do hemisfério norte.

[4] idem. Sermão 1 sobre o jejum do sétimo mês. - in: Antologia Litúrgica, p. 1032.

[5] Didaché ou Doutrina dos Doze Apóstolos. - in: Antologia Litúrgica, p. 96.

[6] Normas Universais sobre o Ano Litúrgico e o Calendário.in: Missal Romano. Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 2006, p. 107.

[7] As Missas para diversas necessidades são permitidas nos dias de semana do Tempo Comum e nos dias de semana do Advento até 16 de dezembro a juízo do sacerdote. Nos dias de semana da Quaresma e nos dias 17 a 24 de dezembro são proibidas, salvo por um motivo grave e com permissão especial do Bispo Diocesano (cf. Introdução Geral do Missal Romano, 3ª edição, nn. 373-377).

Referências:
Para a história das Quatro Têmporas, além da supracitada Antologia Litúrgica, utilizamos:

ADAM, Adolf. O Ano Litúrgico: Sua história e seu significado segundo a renovação litúrgica. São Paulo: Loyola, 2019, pp. 137-140.

RIGHETTI, Mario. Historia de la Liturgia, v. I: Introducción general; El año litúrgico; El Breviario. Madrid: BAC, 1945, pp. 669-675.

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