domingo, 8 de junho de 2025

Homilia do Papa Bento XVI: Pentecostes (2005)

Nesta Solenidade de Pentecostes recordamos a homilia proferida pelo Papa Bento XVI (†2022) há 20 anos, na Missa com a Ordenação de 21 novos presbíteros para a Diocese de Roma [1]:

Ordenações Presbiterais na Solenidade de Pentecostes
Homilia do Papa Bento XVI
Basílica de São Pedro
Domingo, 15 de maio de 2005

Queridos irmãos no Episcopado e no Sacerdócio,
Caríssimos ordenandos,
Amados irmãos e irmãs!
A 1ª leitura e o Evangelho do Domingo de Pentecostes apresentam-nos duas grandes imagens da missão do Espírito Santo. A leitura dos Atos dos Apóstolos narra como, no dia de Pentecostes, o Espírito Santo, sob os sinais de um vento poderoso e de fogo, irrompe na comunidade orante dos discípulos de Jesus e, assim, dá origem à Igreja. Para Israel, o Pentecostes, de festa da semeadura, tornou-se a festa que recordava a conclusão da aliança no Sinai. Deus demonstrou a sua presença ao povo através do vento e do fogo e depois ofereceu-lhe a sua lei, a lei dos 10 mandamentos. Só assim a obra de libertação, que começara com o êxodo do Egito, tinha se cumprido plenamente:  a liberdade humana é sempre uma liberdade partilhada, um conjunto de liberdades.


Só em uma ordenada harmonia das liberdades, que abre para cada um o seu âmbito, se pode ter uma liberdade comum. Por isso o dom da lei no Sinai não foi uma restrição ou uma abolição da liberdade, mas o fundamento da verdadeira liberdade. E dado que um justo ordenamento humano pode reger-se apenas se provém de Deus e se une os homens na perspectiva de Deus, para uma disposição ordenada das liberdades humanas não podem faltar os mandamentos que o próprio Deus dá. Assim Israel tornou-se plenamente “povo” precisamente através da aliança com Deus no Sinai. O encontro com Deus no Sinai poderia ser considerado como o fundamento e a garantia da sua existência como povo. O vento e o fogo, que atingiram a comunidade dos discípulos de Cristo reunida no Cenáculo, constituíram um ulterior desenvolvimento do acontecimento do Sinai e lhe conferiram uma nova amplitude. Naquele dia encontravam-se em Jerusalém, segundo referem os Atos dos Apóstolos, “judeus devotos de todas as nações do mundo” (At 2,5). E eis que se manifesta o dom característico do Espírito Santo:  todos compreenderam as palavras dos Apóstolos - “Cada um ouvia os discípulos falar em sua própria língua” (v. 6). O Espírito Santo concede o dom da compreensão. Ultrapassa a ruptura que teve início em Babel - a confusão dos corações, que nos coloca uns contra os outros - e abre as fronteiras. O povo de Deus que tinha encontrado no Sinai a sua primeira configuração agora é ampliado a ponto de já não conhecer fronteira alguma.

O novo povo de Deus, a Igreja, é um povo que provém de todos os povos. A Igreja desde o início é católica, esta é a sua essência mais profunda. São Paulo explica e realça isto na 2ª leitura, quando diz: “De fato, todos nós, judeus ou gregos, escravos ou livres, fomos batizados em um único Espírito, para formarmos um único corpo, e todos nós bebemos de um único Espírito” (1Cor 12,13). A Igreja deve se tornar sempre de novo aquilo que ela já é: deve abrir as fronteiras entre os povos e romper as barreiras entre as classes e as raças. Nela não pode haver esquecidos nem desprezados. Na Igreja existem unicamente irmãos e irmãs livres em Jesus Cristo. Vento e fogo do Espírito Santo devem infatigavelmente abater aquelas barreiras que nós homens continuamos a erguer entre nós; devemos sempre de novo passar de Babel, do fechamento em nós mesmos, ao Pentecostes. Por isso, devemos continuamente pedir que o Espírito Santo nos abra, nos conceda a graça da compreensão, de modo que possamos nos tornar o povo de Deus proveniente de todos os povos - mais ainda, nos diz São Paulo: em Cristo, que como único pão a todos alimenta na Eucaristia e nos atrai para si no seu corpo martirizado na cruz, nós devemos nos tornar um só corpo e um só espírito.

A segunda imagem do envio do Espírito, que encontramos no Evangelho, é muito mais discreta. Mas precisamente por isso faz compreender toda a grandeza do acontecimento de Pentecostes. O Senhor Ressuscitado entra através das portas fechadas no lugar onde os discípulos se encontravam e os saúda duas vezes dizendo: “A paz esteja convosco!” (Jo 20,19.21). Nós continuamente fechamos as nossas portas; continuamente queremos nos colocar em segurança e não ser incomodados pelos outros e por Deus. Portanto, podemos suplicar continuamente o Senhor apenas por isso, para que Ele venha ao nosso encontro vencendo os nossos fechamentos e trazendo-nos a sua saudação. “A paz esteja convosco”:  esta saudação do Senhor é uma ponte que Ele lança entre céu e terra. Ele desce por esta ponte até nós e nós podemos subir, por esta ponte de paz, até Ele. Nesta ponte, sempre juntamente com Ele, também nós devemos alcançar o próximo, alcançar aquele que tem necessidade de nós. Precisamente descendo com Cristo, nos elevamos até Ele e até Deus: Deus é Amor e por isso a descida, o abaixamento, que o amor nos pede, é ao mesmo tempo a verdadeira subida. Precisamente assim, abaixando-nos, saindo de nós mesmos, nós alcançamos a altura de Jesus Cristo, a verdadeira altura do ser humano.

À saudação de paz do Senhor seguem-se dois gestos decisivos para o Pentecostes: o Senhor deseja que a sua missão continue nos discípulos - “Como o Pai me enviou, também Eu vos envio” (v. 21). Depois disso sopra sobre eles e diz: “Recebei o Espírito Santo. A quem perdoardes os pecados, eles lhes serão perdoados; a quem os não perdoardes, eles lhes serão retidos” (vv. 22-23). O Senhor sopra sobre os discípulos, e assim lhes doa o Espírito Santo, o seu Espírito. O sopro de Jesus é o Espírito Santo. Reconhecemos aqui, antes de tudo, uma alusão ao relato da criação do homem no Gênesis: “O Senhor Deus formou o homem do pó da terra, soprou-lhe nas narinas o sopro da vida” (Gn 2,7). O homem é esta criatura misteriosa, que provém totalmente da terra, mas no qual foi posto o sopro de Deus. Jesus sopra sobre os Apóstolos e lhe doa de modo novo, maior, o sopro de Deus. Nos homens, apesar de todas as suas limitações, há agora algo absolutamente novo: o sopro de Deus. A vida de Deus habita em nós. O sopro do seu amor, da sua verdade e da sua bondade. Podemos ver aqui também uma alusão ao Batismo e à Confirmação, a esta nova pertença a Deus, que o Senhor nos concede. O texto do Evangelho convida-nos a isto: a viver sempre no espaço do sopro de Jesus Cristo, a receber d’Ele a vida, de modo que Ele inspire em nós a vida autêntica, a vida que nenhuma morte pode tirar. Ao seu sopro, ao dom do Espírito Santo, o Senhor relaciona o poder de perdoar. Ouvimos anteriormente que o Espírito Santo une, abate as fronteiras, guia uns para os outros. A força, que abre e faz superar Babel, é a força do perdão. Jesus pode conceder o perdão e o poder de perdoar porque Ele mesmo sofreu as consequências da culpa e as dissolveu na chama do seu amor. O perdão vem da cruz; Ele transforma o mundo com o amor que se doa. O seu coração aberto na cruz é a porta pela qual entra no mundo a graça do perdão. E unicamente esta graça pode transformar o mundo e edificar a paz.

Se comparamos os dois acontecimentos de Pentecostes, o vento poderoso do 50º dia e o leve sopro de Jesus na tarde da Páscoa, podemos recordar o contraste entre dois episódios que aconteceram no Sinai, dos quais nos fala o Antigo Testamento. Por um lado, encontra-se a narração do fogo, do trovão e do vento que precedem a promulgação dos 10 mandamentos e a conclusão da aliança (cf. Ex 19ss); por outro lado, a misteriosa narração de Elias no Monte Horeb. Depois dos dramáticos acontecimentos do Monte Carmelo, Elias fugiu da ira de Acab e Jezabel. Portanto, seguindo o mandamento de Deus, peregrinou até o Monte Horeb. O dom da aliança divina, da fé no Deus único, parecia ter desaparecido em Israel. Elias, de certa forma, deve reacender a chama da fé no monte de Deus e reconduzi-la a Israel. Ele experimenta, naquele lugar, vento, terremoto e fogo. Mas Deus não está presente em tudo isto. Então ele percebe um murmúrio doce e leve. E Deus lhe fala com essa brisa ligeira (cf. 1Rs 19,11-18). Não foi talvez precisamente o que aconteceu na tarde da Páscoa, quando Jesus apareceu aos seus Apóstolos para lhes ensinar o que dizer? Não podemos talvez ver aqui uma prefiguração do servo de Yahweh, do qual Isaías diz: “Ele não clama nem levanta a voz, nem se faz ouvir pelas ruas” (Is 42,2)? Não sobressai talvez assim a humilde figura de Jesus como a verdadeira revelação na qual Deus se manifesta a nós e nos fala? Não são porventura a humildade e a bondade de Jesus a verdadeira epifania de Deus? Elias, no Monte Carmelo, tinha procurado combater o afastamento de Deus com o fogo e com a espada, matando os profetas de Baal. Mas desta forma não pôde restabelecer a fé. No Horeb ele deve aprender que Deus não está no vento, no terremoto, no fogo; Elias deve aprender a compreender a voz leve de Deus e, assim, a reconhecer antecipadamente Aquele que venceu o pecado não com a força, mas com a sua Paixão; Aquele que, com o seu sofrimento, nos doou o poder do perdão. Esta é a forma com a qual Cristo vence.

Queridos ordenandos! Desta forma a mensagem do Pentecostes dirige-se agora diretamente a vós. A cena do Pentecostes do Evangelho de João fala a vós e de vós. A cada um de vós, de modo muito pessoal, o Senhor diz: “A paz esteja convosco!” - “A paz esteja contigo!”. Quando o Senhor diz isto, não doa uma coisa qualquer, mas doa-se a si mesmo. De fato, Ele mesmo é a paz (cf. Ef 2,14). Nesta saudação do Senhor podemos entrever também uma referência ao grande mistério da fé, à Eucaristia, na qual Ele se doa a nós continuamente e, desta forma, doa a verdadeira paz. Esta saudação situa-se no centro da vossa missão sacerdotal: o Senhor vos confia o mistério desse sacramento. Em seu nome vós podereis dizer: “Isto é o meu Corpo... Isto é o meu Sangue...”. Deixai-vos atrair sempre de novo pela Eucaristia, na comunhão de vida com Cristo. Considerai como centro de cada um dos vossos dias poder celebrá-la de modo digno. Conduzi os homens sempre de novo a este mistério. Ajudai-os, a partir dela, a levar a paz de Cristo ao mundo.

Ressoa depois, no Evangelho que acabamos de escutar, uma segunda palavra do Ressuscitado: “Como o Pai me enviou, também Eu vos envio” (Jo 20,21). Cristo diz isto, de modo muito pessoal, a cada um de vós. Com a Ordenação sacerdotal vos inseristes na missão dos Apóstolos. O Espírito Santo veio, mas não é amorfo. É um Espírito ordenado. E manifesta-se precisamente ordenando a missão, no sacramento do sacerdócio, com o qual continua o ministério dos Apóstolos. Através deste ministério vós sois inseridos na grande multidão daqueles que, a partir do Pentecostes, receberam a missão apostólica. Vós sois inseridos na comunhão do presbitério, na comunhão com o Bispo e com o Sucessor de São Pedro, que aqui em Roma é também o vosso Bispo. Todos nós somos inseridos na rede da obediência à palavra de Cristo, à palavra d’Aquele que dá a verdadeira liberdade, porque nos conduz nos espaços livres e nos horizontes amplos da verdade. Precisamente neste vínculo comum com o Senhor nós podemos e devemos viver o dinamismo do Espírito. Como o Senhor saiu do Pai e nos doou luz, vida e amor, assim a missão deve continuamente nos colocar em movimento, nos tornar inquietos, para levar a quem sofre, a quem está em dúvida, e também a quem hesita, a alegria de Cristo.

Por fim, há o poder do perdão. O Sacramento da Penitência é um dos tesouros preciosos da Igreja, porque só no perdão se realiza a verdadeira renovação do mundo. Nada pode melhorar no mundo se o mal não for vencido. E o mal pode ser vencido unicamente com o perdão. Sem dúvida, deve ser um perdão eficaz. Mas este perdão, só o Senhor pode dar. Um perdão que não afasta o mal só com palavras, mas realmente o destrói. Isto pode acontecer unicamente com o sofrimento e aconteceu realmente com o amor sofredor de Cristo, do qual nós haurimos o poder do perdão.

Por fim, queridos ordenandos, recomendo-vos o amor à Mãe do Senhor. Fazei como São João, que o acolheu no íntimo do próprio coração. Deixai-vos renovar continuamente pelo seu amor materno. Aprendei dela a amar Cristo. O Senhor abençoe o vosso caminho sacerdotal! Amém.

Pentecostes (Duccio di Buoninsegna)

Fonte: Santa Sé.

[1] Na Diocese de Roma as Ordenações Presbiterais geralmente têm lugar no IV Domingo da Páscoa, o “Domingo do Bom Pastor”. Em 2005, porém, após a morte de São João Paulo II, essas foram adiadas, sendo celebradas pelo novo Papa no Domingo de Pentecostes.

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