Nesta Solenidade de Pentecostes recordamos a homilia proferida pelo Papa Bento XVI (†2022) há 20 anos, na Missa com a Ordenação de 21 novos presbíteros para a Diocese de Roma [1]:
Ordenações Presbiterais na Solenidade de Pentecostes
Homilia do Papa Bento XVI
Basílica de São Pedro
Domingo, 15 de maio de 2005
Queridos irmãos no Episcopado e no Sacerdócio,
Caríssimos ordenandos,
Amados irmãos e irmãs!
A 1ª leitura e o
Evangelho do Domingo de Pentecostes apresentam-nos duas grandes imagens da
missão do Espírito Santo. A leitura dos Atos dos Apóstolos narra como,
no dia de Pentecostes, o Espírito Santo, sob os sinais de um vento poderoso e
de fogo, irrompe na comunidade orante dos discípulos de Jesus e, assim, dá origem
à Igreja. Para Israel, o Pentecostes, de festa da semeadura, tornou-se a festa
que recordava a conclusão da aliança no Sinai. Deus demonstrou a sua presença
ao povo através do vento e do fogo e depois ofereceu-lhe a sua lei, a lei dos
10 mandamentos. Só assim a obra de libertação, que começara com o êxodo do Egito,
tinha se cumprido plenamente: a liberdade humana é sempre uma liberdade
partilhada, um conjunto de liberdades.
Só em uma
ordenada harmonia das liberdades, que abre para cada um o seu âmbito, se pode
ter uma liberdade comum. Por isso o dom da lei no Sinai não foi uma restrição
ou uma abolição da liberdade, mas o fundamento da verdadeira liberdade. E dado
que um justo ordenamento humano pode reger-se apenas se provém de Deus e se une
os homens na perspectiva de Deus, para uma disposição ordenada das liberdades
humanas não podem faltar os mandamentos que o próprio Deus dá. Assim Israel
tornou-se plenamente “povo” precisamente através da aliança com Deus no Sinai.
O encontro com Deus no Sinai poderia ser considerado como o fundamento e a
garantia da sua existência como povo. O vento e o fogo, que atingiram a
comunidade dos discípulos de Cristo reunida no Cenáculo, constituíram um
ulterior desenvolvimento do acontecimento do Sinai e lhe conferiram uma nova
amplitude. Naquele dia encontravam-se em Jerusalém, segundo referem os Atos
dos Apóstolos, “judeus devotos de todas as nações do mundo” (At 2,5). E eis que se manifesta o dom
característico do Espírito Santo: todos compreenderam as palavras dos Apóstolos
- “Cada um ouvia os discípulos falar em sua própria língua” (v. 6). O Espírito Santo concede o dom
da compreensão. Ultrapassa a ruptura que teve início em Babel - a confusão dos
corações, que nos coloca uns contra os outros - e abre as fronteiras. O povo de
Deus que tinha encontrado no Sinai a sua primeira configuração agora é ampliado
a ponto de já não conhecer fronteira alguma.
O novo povo de
Deus, a Igreja, é um povo que provém de todos os povos. A Igreja desde o início
é católica, esta é a sua essência mais profunda. São Paulo explica e realça
isto na 2ª leitura, quando diz: “De fato, todos nós, judeus ou gregos,
escravos ou livres, fomos batizados em um único Espírito, para formarmos um
único corpo, e todos nós bebemos de um único Espírito” (1Cor 12,13). A Igreja deve se tornar sempre
de novo aquilo que ela já é: deve abrir as fronteiras entre os povos e romper
as barreiras entre as classes e as raças. Nela não pode haver esquecidos nem
desprezados. Na Igreja existem unicamente irmãos e irmãs livres em Jesus
Cristo. Vento e fogo do Espírito Santo devem infatigavelmente abater aquelas
barreiras que nós homens continuamos a erguer entre nós; devemos sempre de novo
passar de Babel, do fechamento em nós mesmos, ao Pentecostes. Por isso, devemos
continuamente pedir que o Espírito Santo nos abra, nos conceda a graça da
compreensão, de modo que possamos nos tornar o povo de Deus proveniente de
todos os povos - mais ainda, nos diz São Paulo: em Cristo, que como único pão a
todos alimenta na Eucaristia e nos atrai para si no seu corpo martirizado na
cruz, nós devemos nos tornar um só corpo e um só espírito.
A segunda imagem
do envio do Espírito, que encontramos no Evangelho, é muito mais discreta. Mas
precisamente por isso faz compreender toda a grandeza do acontecimento de
Pentecostes. O Senhor Ressuscitado entra através das portas fechadas no lugar
onde os discípulos se encontravam e os saúda duas vezes dizendo: “A paz
esteja convosco!” (Jo 20,19.21). Nós continuamente fechamos as nossas
portas; continuamente queremos nos colocar em segurança e não ser incomodados
pelos outros e por Deus. Portanto, podemos suplicar continuamente o Senhor apenas
por isso, para que Ele venha ao nosso encontro vencendo os nossos fechamentos e
trazendo-nos a sua saudação. “A paz esteja convosco”: esta saudação do
Senhor é uma ponte que Ele lança entre céu e terra. Ele desce por esta ponte
até nós e nós podemos subir, por esta ponte de paz, até Ele. Nesta ponte,
sempre juntamente com Ele, também nós devemos alcançar o próximo, alcançar
aquele que tem necessidade de nós. Precisamente descendo com Cristo, nos
elevamos até Ele e até Deus: Deus é Amor e por isso a descida, o abaixamento,
que o amor nos pede, é ao mesmo tempo a verdadeira subida. Precisamente assim,
abaixando-nos, saindo de nós mesmos, nós alcançamos a altura de Jesus Cristo, a
verdadeira altura do ser humano.
À saudação de
paz do Senhor seguem-se dois gestos decisivos para o Pentecostes: o Senhor
deseja que a sua missão continue nos discípulos - “Como o Pai me enviou,
também Eu vos envio” (v. 21).
Depois disso sopra sobre eles e diz: “Recebei o Espírito Santo. A quem
perdoardes os pecados, eles lhes serão perdoados; a quem os não perdoardes,
eles lhes serão retidos” (vv. 22-23).
O Senhor sopra sobre os discípulos, e assim lhes doa o Espírito Santo, o seu
Espírito. O sopro de Jesus é o Espírito Santo. Reconhecemos aqui, antes de tudo,
uma alusão ao relato da criação do homem no Gênesis: “O Senhor Deus
formou o homem do pó da terra, soprou-lhe nas narinas o sopro da vida” (Gn 2,7). O homem é esta criatura
misteriosa, que provém totalmente da terra, mas no qual foi posto o sopro de
Deus. Jesus sopra sobre os Apóstolos e lhe doa de modo novo, maior, o sopro de
Deus. Nos homens, apesar de todas as suas limitações, há agora algo
absolutamente novo: o sopro de Deus. A vida de Deus habita em nós. O sopro do
seu amor, da sua verdade e da sua bondade. Podemos ver aqui também uma alusão
ao Batismo e à Confirmação, a esta nova pertença a Deus, que o Senhor nos
concede. O texto do Evangelho convida-nos a isto: a viver sempre no espaço do
sopro de Jesus Cristo, a receber d’Ele a vida, de modo que Ele inspire em nós a
vida autêntica, a vida que nenhuma morte pode tirar. Ao seu sopro, ao dom do
Espírito Santo, o Senhor relaciona o poder de perdoar. Ouvimos anteriormente
que o Espírito Santo une, abate as fronteiras, guia uns para os outros. A
força, que abre e faz superar Babel, é a força do perdão. Jesus pode conceder o
perdão e o poder de perdoar porque Ele mesmo sofreu as consequências da culpa e
as dissolveu na chama do seu amor. O perdão vem da cruz; Ele transforma o mundo
com o amor que se doa. O seu coração aberto na cruz é a porta pela qual entra
no mundo a graça do perdão. E unicamente esta graça pode transformar o mundo e
edificar a paz.
Se comparamos os
dois acontecimentos de Pentecostes, o vento poderoso do 50º dia e o leve sopro
de Jesus na tarde da Páscoa, podemos recordar o contraste entre dois episódios
que aconteceram no Sinai, dos quais nos fala o Antigo Testamento. Por um lado, encontra-se
a narração do fogo, do trovão e do vento que precedem a promulgação dos 10 mandamentos
e a conclusão da aliança (cf. Ex 19ss); por outro lado, a misteriosa narração
de Elias no Monte Horeb. Depois dos dramáticos acontecimentos do Monte Carmelo,
Elias fugiu da ira de Acab e Jezabel. Portanto, seguindo o mandamento de Deus,
peregrinou até o Monte Horeb. O dom da aliança divina, da fé no Deus único,
parecia ter desaparecido em Israel. Elias, de certa forma, deve reacender a
chama da fé no monte de Deus e reconduzi-la a Israel. Ele experimenta, naquele
lugar, vento, terremoto e fogo. Mas Deus não está presente em tudo isto. Então
ele percebe um murmúrio doce e leve. E Deus lhe fala com essa brisa ligeira (cf. 1Rs 19,11-18). Não foi talvez precisamente
o que aconteceu na tarde da Páscoa, quando Jesus apareceu aos seus Apóstolos
para lhes ensinar o que dizer? Não podemos talvez ver aqui uma prefiguração do
servo de Yahweh, do qual Isaías diz: “Ele não clama nem levanta a voz,
nem se faz ouvir pelas ruas” (Is 42,2)? Não sobressai talvez assim a
humilde figura de Jesus como a verdadeira revelação na qual Deus se manifesta a
nós e nos fala? Não são porventura a humildade e a bondade de Jesus a
verdadeira epifania de Deus? Elias, no Monte Carmelo, tinha procurado combater
o afastamento de Deus com o fogo e com a espada, matando os profetas de Baal.
Mas desta forma não pôde restabelecer a fé. No Horeb ele deve aprender que Deus
não está no vento, no terremoto, no fogo; Elias deve aprender a compreender a
voz leve de Deus e, assim, a reconhecer antecipadamente Aquele que venceu o
pecado não com a força, mas com a sua Paixão; Aquele que, com o seu sofrimento,
nos doou o poder do perdão. Esta é a forma com a qual Cristo vence.
Queridos
ordenandos! Desta forma a mensagem do Pentecostes dirige-se agora diretamente a
vós. A cena do Pentecostes do Evangelho de João fala a vós e de vós. A
cada um de vós, de modo muito pessoal, o Senhor diz: “A paz esteja convosco!”
- “A paz esteja contigo!”. Quando o Senhor diz isto, não doa uma coisa qualquer,
mas doa-se a si mesmo. De fato, Ele mesmo é a paz (cf. Ef 2,14). Nesta saudação do Senhor
podemos entrever também uma referência ao grande mistério da fé, à Eucaristia,
na qual Ele se doa a nós continuamente e, desta forma, doa a verdadeira paz.
Esta saudação situa-se no centro da vossa missão sacerdotal: o Senhor vos confia
o mistério desse sacramento. Em seu nome vós podereis dizer: “Isto é o meu
Corpo... Isto é o meu Sangue...”. Deixai-vos atrair sempre de novo pela
Eucaristia, na comunhão de vida com Cristo. Considerai como centro de cada um
dos vossos dias poder celebrá-la de modo digno. Conduzi os homens sempre de
novo a este mistério. Ajudai-os, a partir dela, a levar a paz de Cristo ao mundo.
Ressoa depois,
no Evangelho que acabamos de escutar, uma segunda palavra do
Ressuscitado: “Como o Pai me enviou, também Eu vos envio” (Jo 20,21). Cristo diz isto, de modo muito
pessoal, a cada um de vós. Com a Ordenação sacerdotal vos inseristes na missão
dos Apóstolos. O Espírito Santo veio, mas não é amorfo. É um Espírito ordenado.
E manifesta-se precisamente ordenando a missão, no sacramento do sacerdócio,
com o qual continua o ministério dos Apóstolos. Através deste ministério vós
sois inseridos na grande multidão daqueles que, a partir do Pentecostes,
receberam a missão apostólica. Vós sois inseridos na comunhão do presbitério,
na comunhão com o Bispo e com o Sucessor de São Pedro, que aqui em Roma é
também o vosso Bispo. Todos nós somos inseridos na rede da obediência à palavra
de Cristo, à palavra d’Aquele que dá a verdadeira liberdade, porque nos conduz
nos espaços livres e nos horizontes amplos da verdade. Precisamente neste
vínculo comum com o Senhor nós podemos e devemos viver o dinamismo do Espírito.
Como o Senhor saiu do Pai e nos doou luz, vida e amor, assim a missão deve
continuamente nos colocar em movimento, nos tornar inquietos, para levar a quem
sofre, a quem está em dúvida, e também a quem hesita, a alegria de Cristo.
Por fim, há o
poder do perdão. O Sacramento da Penitência é um dos tesouros preciosos da
Igreja, porque só no perdão se realiza a verdadeira renovação do mundo. Nada
pode melhorar no mundo se o mal não for vencido. E o mal pode ser vencido
unicamente com o perdão. Sem dúvida, deve ser um perdão eficaz. Mas este
perdão, só o Senhor pode dar. Um perdão que não afasta o mal só com palavras,
mas realmente o destrói. Isto pode acontecer unicamente com o sofrimento e
aconteceu realmente com o amor sofredor de Cristo, do qual nós haurimos o poder
do perdão.
Por fim,
queridos ordenandos, recomendo-vos o amor à Mãe do Senhor. Fazei como São João,
que o acolheu no íntimo do próprio coração. Deixai-vos renovar continuamente
pelo seu amor materno. Aprendei dela a amar Cristo. O Senhor abençoe o vosso
caminho sacerdotal! Amém.
![]() |
Pentecostes (Duccio di Buoninsegna) |
Fonte: Santa Sé.
[1] Na Diocese de Roma as Ordenações Presbiterais geralmente têm lugar no IV Domingo da Páscoa, o “Domingo do Bom Pastor”. Em 2005, porém, após a morte de São João Paulo II, essas foram adiadas, sendo celebradas pelo novo Papa no Domingo de Pentecostes.
Nenhum comentário:
Postar um comentário