terça-feira, 1 de março de 2022

Leitura litúrgica da Segunda Carta aos Coríntios (1)

“Bendito seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai das misericórdias e Deus de toda consolação!” (2Cor 1,3).

Nas postagens anteriores da série sobre a leitura litúrgica dos livros da Sagrada Escritura, após analisar as duas Cartas aos Tessalonicenses e a Carta aos Gálatas, começamos a estudar a correspondência de Paulo com a comunidade de Corinto, identificando a presença da Primeira Carta aos Coríntios, Πρὸς Κορινθίους (1Cor) nas celebrações do Rito Romano.

Aqui gostaríamos de dar continuidade a esta proposta com a Segunda Carta de São Paulo aos Coríntios (2Cor).

Vitral representando Paulo e seus dois grandes colaboradores, Timóteo e Tito
(Celebrados no dia 26 de janeiro, logo após a Festa da Conversão de Paulo)

1. Breve introdução à Segunda Carta aos Coríntios

Após Paulo ter escrito a Primeira Carta aos Coríntios entre os anos 56 e 57, seu discípulo Timóteo visitou a comunidade (At 19,22; 1Cor 16,10-11). Ele a teria encontrado em péssima situação, devido à pregação de “falsos apóstolos”. Após ser informado por Timóteo, Paulo realizou sua “dolorosa” segunda visita a Corinto, não sendo bem recebido (2Cor 2,1).

Após deixar a comunidade, o Apóstolo teria escrito uma carta “em meio a muitas lágrimas” (2Cor 2,3-4), que se perdeu (ou, segundo alguns autores, é parte da 2Cor). Essa carta foi levada por Tito, o qual foi bem recebido pelos coríntios (2Cor 7,6-7.13-15).

Após encontrar-se com Tito na Macedônia (2Cor 7,5-6), Paulo escreveu outra parte da Carta, provavelmente na metade do ano de 57, promovendo a coleta em favor de Jerusalém. Assim, o Apóstolo visitaria Corinto uma terceira vez entre o final de 57 e o início de 58 para recolher as doações (2Cor 12,14; 13,1).

A Carta pode ser assim estruturada:
a) 2Cor 1,1-11: Introdução, com a saudação e a ação de graças;
b) 2Cor 1,12–7,16: As relações de Paulo com os coríntios (exceto 6,14–7,1);
c) 2Cor 8,1–9,15: A coleta para a igreja de Jerusalém;
d) 2Cor 10,1–13,10: Resposta de Paulo a questionamentos sobre sua autoridade;
e) 2Cor 13,11-13: Conclusão, com recomendações finais e saudação trinitária.

A maioria dos estudiosos, embora não questionem a autoria paulina, defende que 2Cor é a junção de duas ou mais cartas, dada a mudança de tom entre os capítulos 1–9, marcados por certo otimismo, e os cap. 10–13, de um crescente pessimismo.

Para alguns, 2Cor 10–13 seria a carta “entre lágrimas” mencionada no capítulo 2. A perícope de 2Cor 6,14–7,1 - uma advertência contra a idolatria -, por sua vez, seria uma interpolação, uma vez que interrompe o discurso.

Não obstante, 2Cor é um dos escritos mais eloquentes do Apóstolo, no qual este faz a sua apologia, isto é, a sua defesa diante das incompreensões e acusações. Além disso, Paulo faz uma leitura teológica das suas tribulações, exortando à reconciliação e a buscar a consolação em Deus.

Alguns estudiosos indicam que o “tema” central da Carta é “o ministério apostólico, com as suas grandezas e as suas misérias”, como bem sintetiza a célebre expressão de 2Cor 4,7: um “tesouro em vasos de barro”.

Paulo confia seus escritos a Timóteo e Tito
(Mosaico da Catedral de Monreale, Itália)

Além de sua unidade, a grande questão aberta da Carta é a identidade dos “falsos apóstolos” que Paulo combate nos capítulos 10–13, chamando-os ironicamente de “eminentes apóstolos” (2Cor 11,5; 12,11). Na Carta aos Gálatas fica claro que o problema são os grupos judaizantes, mas aqui, salvo a acusação de soberba, nada é dito sobre os erros doutrinais dos opositores.

Para saber mais, confira a bibliografia indicada no final da postagem.

2. Leitura litúrgica de 2Cor: Composição harmônica

Como fizemos com 1Cor e com os demais livros da Sagrada Escritura, analisaremos a leitura litúrgica da Segunda Carta aos Coríntios a partir dos critérios indicados no Elenco das Leituras da Missa, n. 66: a composição harmônica e a leitura semicontínua [1].

Começaremos pelo critério da composição harmônica: a escolha do texto em sintonia com o tempo ou a festa litúrgica.

a) Celebração Eucarística

Nos diversos tempos que compõem o Ano Litúrgico encontramos três leituras da nossa Carta em composição harmônica, sendo duas na Quaresma e uma no Tempo Comum.

Primeiramente, como 2ª leitura da Quarta-feira de Cinzas temos 2Cor 5,20–6,2 [2], exortando, ou melhor, suplicando: “Deixai-vos reconciliar com Deus” (v. 20), pois o “momento favorável” para que Deus nos ouça, o “dia da salvação”, é agora!

Confira também nossa postagem sobre o Livro de Joel, do qual é tomada a 1ª leitura dessa celebração, clicando aqui.

Como vimos em nossas postagens sobre a 1Cor, nos domingos da Quaresma “as leituras do Apóstolo foram escolhidas de tal forma que tenham relação com as leituras do Evangelho e do Antigo Testamento e haja, na medida do possível, uma adequada conexão entre as mesmas” (Elenco das Leituras da Missa, n. 97) [3].

Assim, no IV Domingo da Quaresma do ano C proclama-se 2Cor 5,17-21 [4], os versículos que antecedem a leitura da Quarta-feira de Cinzas, que também exortam à reconciliação, pois “em Cristo Deus reconciliou o mundo consigo” (v. 19). Essa perícope ilumina particularmente o Evangelho: a parábola do “pai misericordioso”, mais conhecida como parábola do “filho pródigo” (Lc 15,1-3.11-32).

Quanto ao Tempo Comum, nosso escrito é lido na Solenidade da Santíssima Trindade do ano A, celebrada no domingo após o Pentecostes. O texto indicado aqui é 2Cor 13,11-13 [5], com a saudação trinitária que se tornou uma das fórmulas mais usadas na Celebração Eucarística: “A graça do Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus e a comunhão do Espírito Santo estejam com todos vós” [6].

Mosaico representando o abraço do “pai misericordioso” (Lc 15)

Passando às celebrações dos santos, é preciso distinguir entre o Próprio, com textos específicos para os principais santos, e os Comuns, formulários com várias opções de textos conforme as “categorias” de santos.

Começando pelo Próprio dos Santos, identificamos a ocorrência de cinco textos:

- na Festa de Santa Maria Madalena (22 de julho) a 2ª opção de leitura é 2Cor 5,14-17 [7], que começa com a célebre expressão “o amor de Cristo nos impele”, que resume a vida de Maria Madalena. A leitura atesta ainda que a Morte e a Ressurreição de Cristo, das quais nossa santa foi testemunha, nos tornam “novas criaturas”.

- na Festa de São Tiago, Apóstolo (25 de julho) lemos 2Cor 4,7-15 [8], texto no qual Paulo fala do martírio: “somos entregues à morte por causa de Jesus...”. Tiago “o Maior”, filho de Zebedeu, foi, com efeito, o primeiro Apóstolo a ser martirizado, entre os anos 42-43 (cf. At 12,1-2).

- na Festa de São Lourenço, Diácono e Mártir (10 de agosto) lê-se 2Cor 9,6-10 [9], que neste contexto destaca-se pela citação do Sl 112,9: “Distribuiu generosamente, deu aos pobres; a sua justiça permanece para sempre”. Durante a perseguição do imperador Valeriano, entre 257-258, o diácono Lourenço foi martirizado por recusar entregar os “tesouros” da Igreja, uma vez que ele era o responsável por atender os pobres de Roma.

Caridade de São Lourenço (Fra Angelico)

- por fim, na Comemoração de Todos os Fiéis Defuntos (02 de novembro), para a qual se propõem várias opções de textos bíblicos ad libitum (à escolha), são sugeridos dois textos de 2Cor: 2Cor 4,14–5,1 e 2Cor 5,1.6-10 [10]. Em ambos, o Apóstolo Paulo, em meio às tribulações, professa sua esperança na vida eterna.

Vale recordar que as mesmas leituras da Comemoração dos Fiéis Defuntos são indicadas para o sacramental das Exéquias.

Quanto aos Comuns dos Santos, temos seis textos ad libitum em quatro formulários.

Primeiramente, para o Comum dos Mártires são propostos dois textos:
2Cor 4,7-15: sobre a morte por causa de Cristo, como na Festa de São Tiago;
2Cor 6,4-10: exortação sobre a paciência nas tribulações [11].

No Comum dos Pastores, por sua vez, encontramos três opções de textos, uma vez que, como vimos, a apologia do ministério é um tema fundamental na Carta:
2Cor 3,1-6a: Deus capacita os ministros da nova aliança;
2Cor 4,1-2.5-7: os ministros não pregam a si mesmos, mas a Jesus Cristo;
2Cor 5,14-20: Deus confiou-nos o ministério da reconciliação [12].

Para o Comum das Virgens é sugerido o texto de 2Cor 10,17–11,2 [13]. Aqui a tônica recai sobre o último versículo da perícope, no qual Paulo fala da comunidade como uma “virgem pura” que desposa a Cristo.

Por fim, para o Comum dos Santos também é indicado 2Cor 10,17–11,2 [14]. A ênfase neste contexto recai no primeiro versículo, com uma expressão que já havia aparecido em 1Cor: “quem se gloria, glorie-se no Senhor”, indicando que honramos os santos porque eles nos ensinam a render glória a Deus.

O encontro de Santa Maria Madalena com o Ressuscitado

Encerramos assim a primeira parte do nosso estudo sobre a presença da Segunda Carta aos Coríntios nas celebrações litúrgicas do Rito Romano. Na próxima postagem (a ser publicada na terça-feira, 08 de março) continuaremos a analisar sua leitura em composição harmônica nas Missas para diversas necessidades e votivas, nos demais sacramentos e sacramentais e na Liturgia das Horas.

[Atualização: Para acessar a segunda parte da pesquisa, publicada no dia 08 de março de 2022, clique aqui]

Breve bibliografia sobre a Primeira Carta aos Coríntios usada para esta postagem:

BARBAGLIO, Giuseppe. À comunidade de Corinto: Segunda Carta. in: As Cartas de Paulo I: Tradução e comentários. São Paulo: Loyola, 1989, pp. 379-507. Coleção: Bíblica Loyola, v. 4.

BOSCH, Jordi Sánchez. A segunda carta aos Coríntios. in: Escritos paulinos. 2ª ed. São Paulo: Ave Maria, 2008, pp. 201-227. Coleção: Introdução ao Estudo da Bíblia, v. 7.

BROWN, Raymond. Segunda carta aos Coríntios. in: Introdução ao Novo Testamento. 2ª ed. São Paulo: Paulinas, 2012, pp. 715-736.

GARCÍA, Miguel Salvador. Segunda Carta aos Coríntios. in: OPORTO, Santiago Guijarro; GARCÍA, Miguel Salvador [org.]. Comentário ao Novo Testamento. São Paulo: Ave Maria, 2006, pp. 477-497.

MURPHY-O’CONNOR, Jerome. Segunda Carta aos Coríntios. in: BROWN, Raymond E.; FITZMYER, Joseph A.; MURPHY, Roland E. [org.] Novo Comentário Bíblico São Jerônimo: Novo Testamento e artigos sistemáticos. São Paulo: Academia Cristã; Paulus, 2011, pp. 487-513.

VOUGA, François. A segunda epístola aos Coríntios. in: MARGUERAT, Daniel [org.]. Novo Testamento: História, escritura e teologia. 3ª ed. São Paulo: Loyola, 2015, pp. 259-275.

Notas:
[1] ALDAZÁBAL, José. A Mesa da Palavra I: Elenco das Leituras da Missa - Texto e Comentário. São Paulo: Paulinas, 2007, p. 76.
[2] LECIONÁRIO I: Dominical A-B-C. Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1994, p. x.
[3] ALDAZÁBAL, op. cit., p. 97. Os Evangelhos dos domingos da Quaresma trazem diversos “temas”, enquanto as leituras do Antigo Testamento recordam uma série de eventos da história da salvação.
[4] LECIONÁRIO I, p. x. A 1ª leitura desse domingo, por sua vez, traz o relato da primeira Páscoa celebrada na terra prometida (Js 5,9a.10-12).
[5] ibid., p. x.
[6] cf. MISSAL ROMANO. Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1991, p. 389.
[7] LECIONÁRIO III: Para as Missas dos Santos, dos Comuns, para Diversas Necessidades e Votivas. Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1997, p. x. A outra opção de leitura para essa Festa é Ct 3,1-4a
[8] ibid., p. x.
[9] ibid., p. x.
[10] LECIONÁRIO I, p. x.
[11] LECIONÁRIO III, p. x
[12] ibid., p. x.
[13] ibid., p. x. Para a celebração de Santa Rosa de Lima (23 de agosto), que no calendário próprio do Brasil, em sintonia com a América Latina, possui o grau de Festa, é indicada esta leitura.
[14] ibid., p. x.

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