“Bendito seja o Deus e
Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai das misericórdias e Deus de toda
consolação!” (2Cor 1,3).
Nas postagens anteriores da série sobre a leitura litúrgica dos livros da Sagrada Escritura, após analisar as duas Cartas aos Tessalonicenses e a Carta aos Gálatas, começamos a estudar a correspondência de Paulo com a
comunidade de Corinto, identificando a presença da Primeira Carta aos Coríntios, Πρὸς Κορινθίους (1Cor) nas celebrações do Rito Romano.
Aqui gostaríamos de dar continuidade a esta proposta com a Segunda Carta de São Paulo aos
Coríntios (2Cor).
Vitral representando Paulo e seus dois grandes colaboradores, Timóteo e Tito (Celebrados no dia 26 de janeiro, logo após a Festa da Conversão de Paulo) |
1. Breve introdução à
Segunda Carta aos Coríntios
Após Paulo ter escrito a Primeira Carta aos Coríntios entre os anos 56 e 57, seu discípulo Timóteo visitou a
comunidade (At 19,22; 1Cor 16,10-11). Ele a teria encontrado
em péssima situação, devido à pregação de “falsos apóstolos”. Após ser
informado por Timóteo, Paulo realizou sua “dolorosa” segunda visita a Corinto,
não sendo bem recebido (2Cor 2,1).
Após deixar a comunidade, o Apóstolo teria escrito uma carta
“em meio a muitas lágrimas” (2Cor
2,3-4), que se perdeu (ou, segundo alguns autores, é parte da 2Cor). Essa carta foi levada por Tito, o qual foi bem recebido pelos coríntios (2Cor
7,6-7.13-15).
Após encontrar-se com Tito na Macedônia (2Cor 7,5-6), Paulo escreveu outra parte
da Carta, provavelmente na metade do ano de 57, promovendo a coleta em favor de
Jerusalém. Assim, o Apóstolo visitaria Corinto uma terceira vez entre o final
de 57 e o início de 58 para recolher as doações (2Cor 12,14; 13,1).
A Carta pode ser assim estruturada:
a) 2Cor 1,1-11: Introdução, com a saudação e a ação de
graças;
b) 2Cor 1,12–7,16:
As relações de Paulo com os coríntios (exceto 6,14–7,1);
c) 2Cor 8,1–9,15:
A coleta para a igreja de Jerusalém;
d) 2Cor 10,1–13,10:
Resposta de Paulo a questionamentos sobre sua autoridade;
e) 2Cor 13,11-13: Conclusão, com recomendações finais e
saudação trinitária.
A maioria dos estudiosos, embora não questionem a autoria
paulina, defende que 2Cor é a junção
de duas ou mais cartas, dada a mudança de tom entre os capítulos 1–9, marcados
por certo otimismo, e os cap. 10–13, de um crescente pessimismo.
Para alguns, 2Cor 10–13
seria a carta “entre lágrimas” mencionada no capítulo 2. A perícope de 2Cor 6,14–7,1 - uma advertência contra a
idolatria -, por sua vez, seria uma interpolação, uma vez que interrompe o
discurso.
Não obstante, 2Cor
é um dos escritos mais eloquentes do Apóstolo, no qual este faz a sua apologia, isto é, a sua defesa diante das incompreensões e acusações. Além
disso, Paulo faz uma leitura teológica das suas tribulações, exortando à
reconciliação e a buscar a consolação em Deus.
Alguns estudiosos indicam que o “tema” central da Carta é “o
ministério apostólico, com as suas grandezas e as suas misérias”, como bem
sintetiza a célebre expressão de 2Cor
4,7: um “tesouro em vasos de barro”.
Paulo confia seus escritos a Timóteo e Tito (Mosaico da Catedral de Monreale, Itália) |
Além de sua unidade, a grande questão aberta da Carta é a
identidade dos “falsos apóstolos” que Paulo combate nos capítulos 10–13,
chamando-os ironicamente de “eminentes apóstolos” (2Cor 11,5; 12,11). Na Carta aos Gálatas fica claro que o problema são os grupos judaizantes, mas aqui,
salvo a acusação de soberba, nada é dito sobre os erros doutrinais dos
opositores.
Para saber mais, confira a bibliografia indicada no final da
postagem.
2. Leitura litúrgica
de 2Cor: Composição harmônica
Como fizemos com 1Cor
e com os demais livros da Sagrada Escritura, analisaremos a leitura litúrgica
da Segunda Carta aos Coríntios a partir dos critérios indicados no Elenco das Leituras da Missa, n. 66: a
composição harmônica e a leitura semicontínua [1].
Começaremos pelo critério da composição harmônica: a escolha
do texto em sintonia com o tempo ou a festa litúrgica.
a) Celebração
Eucarística
Nos diversos tempos que compõem o Ano Litúrgico encontramos três leituras da nossa Carta em
composição harmônica, sendo duas na Quaresma
e uma no Tempo Comum.
Primeiramente, como 2ª leitura da Quarta-feira de Cinzas temos 2Cor
5,20–6,2 [2], exortando, ou melhor, suplicando: “Deixai-vos reconciliar com Deus” (v. 20), pois o “momento favorável” para que Deus nos
ouça, o “dia da salvação”, é agora!
Confira também nossa postagem sobre o Livro de Joel, do qual é tomada a 1ª leitura dessa celebração, clicando aqui.
Como vimos em nossas postagens sobre a 1Cor, nos domingos da Quaresma “as leituras do Apóstolo foram
escolhidas de tal forma que tenham relação com as leituras do Evangelho e do
Antigo Testamento e haja, na medida do possível, uma adequada conexão entre as
mesmas” (Elenco das Leituras da Missa,
n. 97) [3].
Assim, no IV Domingo
da Quaresma do ano C proclama-se 2Cor
5,17-21 [4], os versículos que antecedem a leitura da Quarta-feira de Cinzas,
que também exortam à reconciliação, pois “em
Cristo Deus reconciliou o mundo consigo” (v. 19). Essa perícope ilumina particularmente
o Evangelho: a parábola do “pai misericordioso”, mais conhecida como parábola
do “filho pródigo” (Lc 15,1-3.11-32).
Quanto ao Tempo Comum,
nosso escrito é lido na Solenidade da
Santíssima Trindade do ano A, celebrada no domingo após o Pentecostes. O texto
indicado aqui é 2Cor 13,11-13 [5],
com a saudação trinitária que se tornou uma das fórmulas mais usadas na
Celebração Eucarística: “A graça do
Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus e a comunhão do Espírito Santo estejam com
todos vós” [6].
Mosaico representando o abraço do “pai misericordioso” (Lc 15) |
Passando às celebrações
dos santos, é preciso distinguir entre o Próprio, com textos específicos para os principais santos, e os Comuns, formulários com várias opções de
textos conforme as “categorias” de santos.
Começando pelo Próprio
dos Santos, identificamos a ocorrência de cinco textos:
- na Festa de Santa
Maria Madalena (22 de julho) a 2ª opção de leitura é 2Cor 5,14-17 [7], que começa com a célebre expressão “o amor de Cristo nos impele”, que resume
a vida de Maria Madalena. A leitura atesta ainda que a Morte e a Ressurreição
de Cristo, das quais nossa santa foi testemunha, nos tornam “novas criaturas”.
- na Festa de São
Tiago, Apóstolo (25 de julho) lemos 2Cor
4,7-15 [8], texto no qual Paulo fala do martírio: “somos entregues à morte por causa de Jesus...”. Tiago “o Maior”,
filho de Zebedeu, foi, com efeito, o primeiro Apóstolo a ser martirizado, entre
os anos 42-43 (cf. At 12,1-2).
- na Festa de São
Lourenço, Diácono e Mártir (10 de agosto) lê-se 2Cor 9,6-10 [9], que neste contexto destaca-se pela citação do Sl 112,9: “Distribuiu generosamente, deu aos pobres; a sua justiça permanece para
sempre”. Durante a perseguição do imperador Valeriano, entre 257-258, o diácono
Lourenço foi martirizado por recusar entregar os “tesouros” da Igreja, uma vez
que ele era o responsável por atender os pobres de Roma.
Caridade de São Lourenço (Fra Angelico) |
- por fim, na Comemoração
de Todos os Fiéis Defuntos (02 de novembro), para a qual se propõem várias
opções de textos bíblicos ad libitum
(à escolha), são sugeridos dois textos de 2Cor:
2Cor 4,14–5,1 e 2Cor 5,1.6-10 [10]. Em ambos, o Apóstolo Paulo, em meio às
tribulações, professa sua esperança na vida eterna.
Vale recordar que as mesmas leituras da Comemoração dos
Fiéis Defuntos são indicadas para o sacramental das Exéquias.
Quanto aos Comuns dos Santos, temos seis textos ad libitum em quatro formulários.
Primeiramente, para o Comum dos Mártires são propostos dois textos:
- 2Cor 4,7-15: sobre a morte por causa de Cristo, como na Festa de São Tiago;
- 2Cor 6,4-10: exortação sobre a paciência nas tribulações [11].
No Comum dos Pastores, por sua vez, encontramos três opções de textos, uma vez que, como vimos, a apologia do ministério é um tema fundamental na Carta:
- 2Cor 3,1-6a: Deus capacita os ministros da nova aliança;
- 2Cor 4,1-2.5-7: os ministros não pregam a si mesmos, mas a Jesus Cristo;
- 2Cor 5,14-20: Deus confiou-nos o ministério da reconciliação [12].
Para o Comum das Virgens é sugerido o texto de 2Cor 10,17–11,2 [13]. Aqui a tônica recai sobre o último versículo da perícope, no qual Paulo fala da comunidade como uma “virgem pura” que desposa a Cristo.
Por fim, para o Comum dos Santos também é indicado 2Cor 10,17–11,2 [14]. A ênfase neste contexto recai no primeiro versículo, com uma expressão que já havia aparecido em 1Cor: “quem se gloria, glorie-se no Senhor”, indicando que honramos os santos porque eles nos ensinam a render glória a Deus.
O encontro de Santa Maria Madalena com o Ressuscitado |
Encerramos assim a primeira parte do nosso estudo sobre a
presença da Segunda Carta aos Coríntios nas celebrações
litúrgicas do Rito Romano. Na próxima postagem (a ser publicada na terça-feira, 08 de março) continuaremos a analisar sua
leitura em composição harmônica nas Missas para diversas necessidades e
votivas, nos demais sacramentos e sacramentais e na Liturgia das Horas.
[Atualização: Para acessar a segunda parte da pesquisa, publicada no dia 08 de março de 2022, clique aqui]
Breve bibliografia
sobre a Primeira Carta aos Coríntios
usada para esta postagem:
BARBAGLIO, Giuseppe. À
comunidade de Corinto: Segunda Carta. in: As Cartas de Paulo I: Tradução e
comentários. São Paulo: Loyola, 1989, pp. 379-507. Coleção: Bíblica Loyola, v. 4.
BOSCH, Jordi Sánchez. A
segunda carta aos Coríntios. in: Escritos paulinos. 2ª ed. São Paulo: Ave
Maria, 2008, pp. 201-227. Coleção: Introdução
ao Estudo da Bíblia, v. 7.
BROWN, Raymond. Segunda
carta aos Coríntios. in: Introdução ao Novo Testamento. 2ª ed.
São Paulo: Paulinas, 2012, pp. 715-736.
GARCÍA, Miguel Salvador.
Segunda Carta aos Coríntios. in:
OPORTO, Santiago Guijarro; GARCÍA, Miguel Salvador [org.]. Comentário ao Novo Testamento. São Paulo: Ave Maria, 2006, pp. 477-497.
MURPHY-O’CONNOR, Jerome. Segunda
Carta aos Coríntios. in: BROWN,
Raymond E.; FITZMYER, Joseph A.; MURPHY, Roland E. [org.] Novo Comentário Bíblico São Jerônimo: Novo Testamento e artigos
sistemáticos. São Paulo: Academia Cristã; Paulus, 2011, pp. 487-513.
VOUGA, François. A segunda
epístola aos Coríntios. in:
MARGUERAT, Daniel [org.]. Novo Testamento:
História, escritura e teologia. 3ª ed. São Paulo: Loyola, 2015, pp. 259-275.
Notas:
[1] ALDAZÁBAL, José. A
Mesa da Palavra I: Elenco das Leituras da Missa - Texto e Comentário. São
Paulo: Paulinas, 2007, p. 76.
[2] LECIONÁRIO I: Dominical A-B-C. Tradução portuguesa da 2ª
edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1994, p. x.
[3] ALDAZÁBAL, op.
cit., p. 97. Os Evangelhos dos domingos da Quaresma trazem diversos
“temas”, enquanto as leituras do Antigo Testamento recordam uma série de
eventos da história da salvação.
[4] LECIONÁRIO I, p. x. A 1ª leitura desse domingo, por sua vez, traz o relato
da primeira Páscoa celebrada na terra prometida (Js 5,9a.10-12).
[5] ibid., p. x.
[6] cf. MISSAL
ROMANO. Tradução portuguesa da 2ª edição
típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1991, p. 389.
[7] LECIONÁRIO III: Para as Missas dos Santos, dos Comuns, para
Diversas Necessidades e Votivas. Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o
Brasil. São Paulo: Paulus, 1997, p. x. A
outra opção de leitura para essa Festa é Ct
3,1-4a
[8] ibid., p. x.
[9] ibid., p. x.
[10] LECIONÁRIO I, p. x.
[11] LECIONÁRIO III, p. x
[12] ibid., p. x.
[13] ibid., p. x. Para a celebração de Santa Rosa de
Lima (23 de agosto), que no calendário próprio do Brasil, em sintonia com a
América Latina, possui o grau de Festa, é indicada esta leitura.
[14] ibid., p. x.
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