terça-feira, 25 de janeiro de 2022

Leitura litúrgica da Primeira Carta aos Coríntios (1)

“Todas as vezes, pois, que comeis desse pão e bebeis desse cálice, anunciais a morte do Senhor até que Ele venha” (1Cor 11,26)

Em nossa série sobre a leitura litúrgica dos livros da Sagrada Escritura, após analisar as duas Cartas de São Paulo aos Tessalonicenses em 2020, entramos no bloco das quatro “grandes cartas paulinas” com a Carta aos Gálatas em 2021.

Agora damos continuidade a esta proposta com a Primeira Carta de São Paulo aos Coríntios, Πρὸς Κορινθίους (1Cor), um dos mais importantes escritos paulinos e, como veremos, um dos textos mais lidos nas celebrações litúrgicas do Rito Romano.

São Paulo (Claude Vignon)

1. Breve introdução à Primeira Carta aos Coríntios

De acordo com o testemunho dos Atos dos Apóstolos (At 18,1-18), a cidade de Corinto (Κόρινθος), na Grécia, foi visitada por Paulo em sua 2ª viagem missionária (anos 50-52). O Apóstolo permaneceu em Corinto por cerca de um ano e meio, evangelizando tanto judeus como gentios, ajudado por Silas e Timóteo e sendo acolhido pelo casal Priscila e Áquila, que se tornaram seus grandes colaboradores.

Corinto era uma cidade cosmopolita, capital da província romana da Acaia, com dois importantes portos. Neste contexto, a Igreja nascente teve muitas dificuldades com a questão moral, sobretudo sexual, o que teria levado Paulo a escrever-lhe uma carta, que infelizmente se perdeu, mencionada em 1Cor 5,9.

A Carta que se conservou com o nome de 1Cor teria sido redigida por Paulo em Éfeso (1Cor 16,8), provavelmente entre os anos 56 e 57, após receber notícias dos problemas da comunidade, que tinha dúvidas sobre pontos concretos da ética evangélica (1Cor 1,11; 7,1; 11,18).

A Carta é considerada autêntica (protopaulina) e sua estrutura é bem definida: quatro partes centrais, além de uma introdução e uma conclusão:
a) 1Cor 1,1-9: Introdução: saudação e ação de graças;
b) 1Cor 1,10–4,21: O problema das divisões na comunidade;
c) 1Cor 5,1–11,34: Os problemas morais;
d) 1Cor 12,1–14,40: A questão dos carismas e da caridade;
e) 1Cor 15,1-58: A Ressurreição de Cristo e a ressurreição dos mortos;
f) 1Cor 16,1-18: Conclusão: recomendações finais e a saudação.

Alguns autores, por sua vez, propõem uma subdivisão na 2ª parte: os capítulos 5–7 sobre a santidade (moral sexual); e os capítulos 8–11 sobre as reuniões da comunidade (moral social).

A Primeira Carta aos Coríntios, com efeito, é o escrito paulino que mais dedica espaço ao tema da moral. O primeiro problema enfrentado é o das divisões na comunidade, com vários partidos (de Paulo, de Apolo, de Cefas...). O Apóstolo responde recordando o “Evangelho da cruz” e exortando à unidade.

Em seguida nos deparamos com os problemas de moral sexual (incesto, fornicação...) e social. Aqui se insere o tema da Eucaristia, com o testemunho mais antigo da narrativa da instituição (1Cor 11,23-26). Paulo adverte aos coríntios de que não é possível participar da Eucaristia e das refeições aos ídolos (cap. 10), e, durante o ágape (refeição festiva ligada à celebração), não poderia haver acepção de pessoas, já que os ricos comiam a “sua ceia” sem preocupar-se com os pobres (cap. 11).

Ruínas do templo de Apolo em Corinto

As divisões na comunidade voltam à cena nos capítulos 12–14 com a disputa a respeito dos carismas. Paulo recorda então que todos os carismas servem à unidade e que o maior deles é a caridade, à qual entoa o célebre “hino” (cap. 13).

Por fim, a parte mais “teológica” da Carta é o capítulo 15, no qual Paulo defende a fé na “ressurreição dos mortos” (dimensão escatológica). Com efeito, a obra termina com uma expressão litúrgica em aramaico na expectativa da parusia: “Maranatha!” (cf. Ap 22,17.20), que pode ser traduzida tanto como afirmação (o Senhor vem) quanto como súplica (Vem, Senhor!).

O Apóstolo fundamenta sua escatologia na Ressurreição de Cristo, isto é, no querigma, o anúncio fundamental da Igreja primitiva, centrado no Mistério Pascal:

Transmiti-vos, em primeiro lugar, aquilo que eu mesmo tinha recebido, a saber: que Cristo morreu por nossos pecados, segundo as Escrituras; que foi sepultado; que, ao terceiro dia, ressuscitou, segundo as Escrituras; e que apareceu a Cefas e, depois, aos Doze...” (1Cor 15,3-5).

Para saber mais, confira a bibliografia indicada no final da postagem.

2. Leitura litúrgica de 1Cor: Composição harmônica

O n. 66 do Elenco das Leituras da Missa apresenta os dois critérios de seleção dos textos bíblicos para as celebrações litúrgicas, a partir dos quais analisaremos a presença da Primeira Carta aos Coríntios no Rito Romano: a composição harmônica e a leitura semicontínua [1].

Iniciamos pela composição harmônica, que consiste na escolha do texto por sua sintonia com o tempo ou a festa litúrgica.

a) Celebração Eucarística

Seguindo o ciclo do Ano Litúrgico, começamos nossa análise pelo Tempo do Advento, em cujos domingos, como indica o Elenco das Leituras da Missa (n. 93) “as leituras do Apóstolo contêm exortações e ensinamentos relativos às diversas características deste tempo” [2].

Assim, em sintonia com a índole escatológica desse tempo, no I Domingo do Advento do ano B lemos 1Cor 1,3-9 [3], a ação de graças da Carta, na qual Paulo recorda que Deus nos dará o dom da perseverança até a vinda de Jesus Cristo.

Catedral de São Paulo em Corinto

Na sequência, encontramos a nossa Carta em dois domingos do Tempo da Quaresma, quando “as leituras do Apóstolo foram escolhidas de tal forma que tenham relação com as leituras do Evangelho e do Antigo Testamento e haja, na medida do possível, uma adequada conexão entre as mesmas” (Elenco das Leituras da Missa, n. 97) [4].

A primeira dessas leituras encontra-se no III Domingo da Quaresma do ano B1Cor 1,22-25 [5], trecho no qual se recorda o “Evangelho da cruz”: “nós pregamos Cristo crucificado... poder de Deus e sabedoria de Deus”. Esta leitura está em sintonia sobretudo com o Evangelho quando, no contexto da “purificação do Templo”, Jesus anuncia simbolicamente sua Paixão (Jo 2,13-25).

No III Domingo da Quaresma do ano C, por sua vez, lemos 1Cor 10,1-6.10-12 [6]. Recordando a caminhada do povo de Israel pelo deserto, o texto complementa a 1ª leitura, o episódio da sarça ardente (Ex 3,1-8a.13-15); exortando contra o pecado - “Quem julga estar de pé tome cuidado para não cair” (1Cor 10,12) -, ilumina a parábola evangélica da figueira estéril (Lc 13,1-9).

No coração do Ano Litúrgico, isto é, no Tríduo Pascal do Senhor Crucificado, Sepultado e Ressuscitado, também temos duas leituras da Primeira Carta aos Coríntios. Primeiramente na Missa da Ceia do Senhor, cuja 2ª leitura é o célebre texto de 1Cor 11,23-26 [7], a mais antiga narrativa da instituição da Eucaristia.

Na Missa do Domingo da Páscoa na Ressurreição do Senhor, por sua vez, a Igreja nos propõe como opção de 2ª leitura o texto de 1Cor 5,6b-8 [8], no qual Paulo exorta a lançar fora o “fermento da maldade” para celebrar a festa com os “pães ázimos da sinceridade e verdade”, em comunhão com Cristo, “nosso cordeiro pascal”.

Se encontramos uma leitura de 1Cor no primeiro domingo do Tempo Pascal, também encontramos no último: na Solenidade de Pentecostes lê-se 1Cor 12,3b-7.12-13 como 2ª leitura própria no ano A e facultativa nos outros dois anos [9].

Esse texto nos recorda que a diversidade dos carismas está a serviço da unidade da Igreja: “Há diversidade de dons, mas um mesmo é o Espírito” (v. 4). Todos, com efeito, formamos um só corpo, vivificado pelo Espírito Santo.

No Tempo Comum, ainda como um “eco” do Tempo Pascal, celebramos a Solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo (Corpus Christi) na quinta-feira da II semana após o Pentecostes.

A 2ª leitura dessa Solenidade é tomada da nossa Carta em dois dos três anos do ciclo dominical e festivo:
- no ano A1Cor 10,16-17 [10], a comunhão no mesmo pão e no mesmo cálice nos une em um só corpo;
- no ano C1Cor 11,23-26 [11], a narrativa da instituição da Eucaristia, como na Quinta-feira Santa.

Instituição da Eucaristia (Nicolas Poussin)

Por fim, concluindo o Tempo Comum, na Solenidade de Jesus Cristo, Rei do universo, a Igreja nos propõe no ano A o texto de 1Cor 15,20-26.28 [12], dando à realeza de Cristo um alcance escatológico, relacionando-a com sua Ressurreição e consequente glorificação junto ao Pai.

Passando às celebrações dos Santos, encontramos primeiramente duas leituras do nosso escrito na Solenidade da Assunção de Nossa Senhora (15 de agosto).

Por ser a mais importante das celebrações da Virgem Maria, esta Solenidade possui uma Missa da Vigília, celebrada na tarde do dia 14. Nessa Missa da Vigília da Assunção lemos 1Cor 15,54-57 [13], que proclama a vitória de Cristo sobre a morte, da qual faz participante também sua Mãe.

Na Missa do Dia da Assunção, por sua vez, lemos 1Cor 15,20-26 [14], perícope na qual Paulo defende a ressurreição dos mortos, fundamentando-a na Ressurreição de Cristo: “em primeiro lugar Cristo, como primícias; depois, os que pertencem a Cristo” (v. 23). Como ninguém “pertence” tanto a Cristo como Maria, é natural que ela tenha sido a primeira a “ressuscitar” com Ele.

Quanto às celebrações dos demais santos, na Festa de São Filipe e São Tiago, Apóstolos (03 de maio) lemos a perícope de 1Cor 15,1-8 [15]. Trata-se do querigma paulino, atestando que o Ressuscitado apareceu aos Doze (v. 5) e a Tiago (v. 7). Este Tiago é identificado na tradição romana com o Apóstolo, filho de Alfeu, enquanto outras tradições defendem que esse Tiago, o “irmão do Senhor”, é uma pessoa distinta.

Vale aqui também uma menção à Memória de Santo Inácio de Loyola, Presbítero (31 de julho), na qual consta como leitura apropriada 1Cor 10,31–11,1 [16], da qual deriva o lema da Companhia de Jesus (jesuítas), Ordem religiosa por ele fundada: “Ad maiorem Dei gloriam” - “Fazei tudo para a glória de Deus” (1Cor 10,31).

Na Comemoração de Todos os Fiéis Defuntos (02 de novembro), por fim, para a qual se propõem várias opções de textos bíblicos, temos dois textos de 1Cor como 2ª leitura ad libitum (à escolha): 1Cor 15,20-24a.25-28 (forma breve: 1Cor 15,20-23) e 1Cor 15,51-57 [17].

Tratam-se, naturalmente, de duas profissões de fé na ressurreição dos mortos à luz da Ressurreição do Senhor: “Como em Adão todos morrem, assim também em Cristo todos reviverão” (v. 22). As mesmas leituras são indicadas para o sacramental das Exéquias.

Cristo resgata Adão, Eva e os justos do Antigo Testamento da "mansão dos mortos" (Duccio)

Concluímos aqui a primeira parte do nosso estudo sobre a presença da Primeira Carta aos Coríntios nas celebrações litúrgicas do Rito Romano. Na próxima parte continuaremos analisando sua leitura em composição harmônica nas Missas dos Comuns dos Santos, para diversas necessidades e votivas, assim como nos demais sacramentos.

Breve bibliografia sobre a Primeira Carta aos Coríntios usada para esta postagem:

BARBAGLIO, Giuseppe. À comunidade de Corinto: Primeira Cart. in: As Cartas de Paulo I: Tradução e comentários. São Paulo: Loyola, 1989, pp. 135-376. Coleção: Bíblica Loyola, v. 4.

BOSCH, Jordi Sánchez. A Primeira Carta aos Coríntios. in: Escritos paulinos. 2ª ed. São Paulo: Ave Maria, 2008, pp. 173-200. Coleção: Introdução ao Estudo da Bíblia, v. 7.

BROWN, Raymond. Primeira carta aos Coríntios. in: Introdução ao Novo Testamento. 2ª ed. São Paulo: Paulinas, 2012, pp. 677-713.

GARCÍA, Miguel Salvador. Primeira Carta aos Coríntios. in: OPORTO, Santiago Guijarro; GARCÍA, Miguel Salvador [org.]. Comentário ao Novo Testamento. São Paulo: Ave Maria, 2006, pp. 445-475.

MURPHY-O’CONNOR, Jerome. Primeira Carta aos Coríntios. in: BROWN, Raymond E.; FITZMYER, Joseph A.; MURPHY, Roland E. [org.] Novo Comentário Bíblico São Jerônimo: Novo Testamento e artigos sistemáticos. São Paulo: Academia Cristã; Paulus, 2011, pp. 453-486.

VOUGA, François. A primeira epístola aos Coríntios. in: MARGUERAT, Daniel [org.]. Novo Testamento: História, escritura e teologia. 3ª ed. São Paulo: Loyola, 2015, pp. 233-257.

Notas:
[1] ALDAZÁBAL, José. A Mesa da Palavra I: Elenco das Leituras da Missa - Texto e Comentário. São Paulo: Paulinas, 2007, p. 76.
[2] ibid., p. 94.
[3] LECIONÁRIO I: Dominical A-B-C. Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1994, p. x.
[4] ALDAZÁBAL, op. cit., p. 97. Os Evangelhos dos domingos da Quaresma trazem diversos “temas”, enquanto as leituras do Antigo Testamento recordam uma série de eventos da história da salvação.
[5] LECIONÁRIO I, p. x. A 1ª leitura desse domingo traz o relato da entrega do Decálogo no monte Sinai (Ex 20,1-17).
[6] ibid., p. x.
[7] ibid., p. x.
[8] ibid., p. x. A outra opção de 2ª leitura para o Domingo de Páscoa é Cl 3,1-4.
[9] ibid., p. x. O ano B tem como opção alternativa de 2ª leitura Gl 5,16-25 e o ano C Rm 8,8-17.
[10] ibid., p. x.
[11] ibid., p. x.
[12] ibid., p. x.
[13] ibid., p. x. No Brasil, a Solenidade da Assunção de Maria é transferida para o domingo mais próximo. Assim, a Missa da Vigília celebra-se na tarde do sábado.
[14] ibid., p. x.
[15] LECIONÁRIO III: Para as Missas dos Santos, dos Comuns, para Diversas Necessidades e Votivas. Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1997, p. x.
[16] ibid., p. x.
[17] LECIONÁRIO I, p. x. 

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