O Patriarcado de Lisboa, buscando pôr em prática as
conclusões do Sínodo Diocesano, realizado em 2016, dedica o Ano Pastoral de
2018-2019, iniciado no último dia 01 de setembro, ao tema da Liturgia.
Confira a Carta do Patriarca, Cardeal Manuel José Macário do Nascimento Clemente, na
qual apresenta esta nova etapa de aplicação da Constituição Sinodal de Lisboa
(CSL) e reflete sobre a importância da Liturgia à luz do Concílio Vaticano II:
Carta aos diocesanos
de Lisboa
no início do Ano Pastoral 2018-2019
1. Saúdo-vos a todos com muita estima no início de mais um
ano dedicado à recepção da Constituição Sinodal de Lisboa. Mantendo o objetivo
transversal de “Fazer da Igreja uma rede de relações fraternas” (CSL, 60), para
reforçar a participação e a corresponsabilidade comunitárias a todos os níveis
da vida paroquial e diocesana, incidiremos especialmente no nº 47: “Viver a
Liturgia como lugar de encontro com Deus e também da comunidade cristã enquanto
Povo de Deus que celebra”.
Como, entretanto, o Papa Francisco destinou o mês de outubro
de 2019 à intensificação missionária da vida eclesial e a Conferência Episcopal
Portuguesa alargou esse objetivo a todo o ano antecedente, teremos muito em
conta o que o Santo Padre nos diz no nº 142 da Exortação Apostólica Gaudete et Exsultate sobre o chamamento
à santidade no mundo atual: «Partilhar a Palavra e celebrar juntos a Eucaristia
torna-nos mais irmãos e vai-nos transformando pouco a pouco em comunidade santa
e missionária».
É uma feliz síntese sobre a comunidade que escuta, partilha
e celebra, assim mesmo crescendo em fraternidade, santidade e missão. Bem
podemos tomar este trecho como lema do nosso ano pastoral, unindo todos os seus
motivos.
Ao longo do ano muito se fará decerto em termos de formação
orante e litúrgica. Peço às comunidades que aproveitem para tal todas as
ocasiões pastorais: iniciação cristã, catequese, celebrações – tudo é espaço e
tempo para formação sobre o modo cristão e eclesial de rezar e celebrar. O
Departamento de Liturgia realizará ações formativas nas Vigararias, contando
com boa participação de todos, mormente dos que têm especiais funções
litúrgicas. Também o Instituto Diocesano de Formação Cristã oferece o seu
valioso contributo nesse sentido. Assim cresceremos em santidade e missão, pois
Deus chama para enviar.
2. O número 47 da nossa Constituição Sinodal, depois da
frase citada, continua assim: «Além da beleza dos espaços e dos ritos, da
música e do canto, a celebração da fé é chamada a educar para a interioridade,
para a comunhão e para o silêncio, criando momentos que disponham à escuta de
Deus. É necessário cuidar sempre da formação litúrgica das comunidades, para
que tanto os que exercem ministérios, como toda a assembleia, entrem em diálogo
com o Senhor. É, por isso, de grande utilidade uma permanente catequese
mistagógica que introduza toda a comunidade na vivência dos tempos litúrgicos e
na compreensão dos seus símbolos e ritos».
Podemos tomar este trecho como um conjunto de alíneas
programáticas:
A) Qualidade do espaço e da celebração.
B) Comunidade que escuta realmente o seu Deus.
C) Formação e mistagogia para entender o que se celebra.
Temos de progredir em todos estes pontos. A qualidade da
celebração liga-se ao respeito pela sua natureza, como a Igreja a dispõe nos
livros litúrgicos, que condensam séculos de experiência orante, com várias
possibilidades e aplicações concretas. Vale pela oportunidade e o estímulo que
dá a todos e a cada um para acolher a Deus, na Palavra escutada e na oblação de
Cristo, por nós e para nós. Desdobra a sua Páscoa num ciclo anual que a prepara
e repercute na vida da Igreja e para a vida do mundo.
É fundamental compreendermos e exercitarmos tudo isto e
antes de tudo o mais. Ainda bem, se dispomos de bons espaços, de bons leitores
e cantores, de ministros bem formados e competentes. Mas é imprescindível que
em cada celebração a Palavra seja realmente escutada e assimilada e os ritos
sejam entendidos como gestos de Cristo no seu corpo eclesial. A Liturgia não é
ocasião para protagonismos que nos distraiam da ação essencial de Cristo, que
acolhe a vontade do Pai e a isso nos leva, pelo Espírito.
Bem celebrada, a Liturgia tem resultados precisos. Se, por
exemplo, levarmos muito a sério o ato penitencial com que começa a Santa Missa,
pedindo convictamente o perdão de Deus para os nossos pecados “por pensamentos
e palavras, atos e omissões”, cresceremos muito mais em verdadeira conversão
evangélica, como sempre urge e particularmente hoje em dia. Se ouvirmos
atentamente as leituras bíblicas, perceberemos muito melhor as aclamações
“Palavra do Senhor” e “Palavra da salvação”, bem como a sua necessária
repercussão na nossa vida. Se, no início da Oração Eucarística, cantarmos
“Santo, Santo, Santo…” com sentimento e melodia correspondentes à profunda
reverência com que o profeta tal ouviu diante de Deus (cf. Is 6,3), estaremos
mais preparados para o memorial da morte e ressurreição de Cristo, que a seguir
se faz. Se nos saudarmos realmente “na paz de Cristo”, entenderemos melhor que
só desta se trata, naquele momento essencial de comunhão com Ele e a partir
dele. Se assim celebrarmos a Santa Missa, melhor efetivaremos o “Ide!”
missionário com que ela nos envia a alargar a “paz” que recebemos.
Estas e outras concretizações litúrgicas podem ser
aprofundadas ao longo deste ano pastoral, comunidade a comunidade. Também os
vários Rituais são excelente base de aprendizagem e ensino, com as respetivas
introduções e notas. Ganharemos muito se o fizermos, porque a Liturgia
devidamente preparada e celebrada é uma grande escola de oração e vida em
Cristo.
3. A 4 de dezembro de 1963 o Concílio Vaticano II aprovou a
Constituição Sacrosanctum Concilium, documento
base de toda a reforma litúrgica que recebemos. É tempo de a reler atentamente,
recolhendo os seus propósitos e disposições, hoje tão atuais como então.
A Constituição apresenta-nos a Liturgia como revelação e
exercício do quanto somos como Igreja de Cristo, «que tem como caraterística
ser, simultaneamente, humana e divina, visível e dotada de realidades
invisíveis, empenhada na ação e dedicada à contemplação, presente no mundo e
todavia peregrina, mas de forma que o que nela é humano se deve ordenar e
subordinar ao divino, o visível ao invisível, a ação à contemplação, e o
presente à cidade futura que buscamos» (SC, 2).
Faz-nos bem retomar este trecho para compreendermos o lugar
central da Liturgia na vida da Igreja e vivermos coerentemente com o que nela
ouvimos e celebramos. Compartilhamos a vida de todos os seres humanos e da
criação no seu conjunto. Mas sabemos também que na Páscoa de Cristo a criação
passa a nova criação, onde tudo se renova e culmina. A Liturgia cristã faz-nos
viver intensamente esta passagem, onde os elementos naturais se transcendem e a
eternidade repassa o tempo que a anseia. Se não a compreendermos assim para a
celebrarmos melhor, pouco teremos para receber e oferecer que seja realmente
novo, definitivamente novo.
O Concílio quis concretizar nos seus dias - que basicamente
continuam a ser os nossos - a “forma” essencial da Igreja, como a apresentam os
textos neotestamentários. É assim que podemos falar de “reforma”, algo de
cíclico em dois milênios cristãos, para que a forma original nunca se perca no
desenvolvimento que ela própria induz e garante.
Aliás, isto mesmo aconteceu em anteriores “reformas”, como a
da “grande Igreja” (dos séculos IV e V), a “pastoral” (do Papa Gregório Magno,
séculos VI-VII), a “carolíngia” (do tempo de Carlos Magno, séc. VIII-IX), a
“gregoriana” (do Papa Gregório VII, séc. XI), a “mendicante” (do século XIII),
a “tridentina” (do Concílio de Trento, séc. XVI): todas elas procuraram retomar
e relançar a “forma” cristã essencial nos tempos próprios de cada uma, com as
respetivas repercussões litúrgicas. Assim aconteceu também com o Concílio Vaticano
II, que tanto esteve atento aos “sinais dos tempos” como recuperou e aprofundou
fontes antigas. E assim continuará a ser decerto, numa Tradição viva que não se
contradiz, mas apura.
Retenhamos estas elucidativas palavras do Papa Montini – São
Paulo VI em outubro próximo - sobre o novo Missal, proferidas na Basílica de
São Pedro a 19 de novembro de 1969: «Nada é mudado na substância da nossa Missa
tradicional. […] A unidade entre a Ceia do Senhor e o Sacrifício da Cruz, a
renovação representativa de uma e de outro na Missa é inviolavelmente afirmada
e celebrada no novo ordenamento, tanto como era no precedente». Concluindo com
palavras que se podem alargar a toda a reforma conciliar, da Missa à missão:
«Não digamos, pois, “nova Missa”, mas antes, “nova época da vida da Igreja”»
(in Enquirídio dos documentos da reforma litúrgica (EDREL), Fátima,
Secretariado Nacional da Liturgia, 2014, p. 418-419).
No mesmo sentido se pronunciou várias vezes São João Paulo
II. Por exemplo, neste trecho da sua Carta Apostólica Vicesimus quintus annus (4 de dezembro de 1988), referindo-se aos
ritos e livros litúrgicos, como foram sendo publicados: «Esse trabalho foi
feito seguindo o princípio conciliar: fidelidade à tradição e abertura ao
progresso legítimo; assim, pode dizer-se que a reforma litúrgica é
rigorosamente tradicional, atendo-se “às normas dos Santos Padres”» (in EDREL,
p. 1136).
O Papa Bento XVI, na Exortação Apostólica Pós-sinodal Sacramentum Caritatis, publicada a 22 de
fevereiro de 2007, salientou: «O Sínodo dos Bispos pôde avaliar o acolhimento
que a mesma [reforma litúrgica] teve depois da assembleia conciliar; inúmeros
foram os elogios; como lá se disse, as dificuldades e alguns abusos assinalados
não podem ofuscar a excelência e a validade da referida renovação litúrgica,
que contém riquezas ainda não plenamente exploradas. Trata-se, em concreto, de
ler as mudanças queridas pelo Concílio dentro da unidade que caracteriza o
desenvolvimento histórico do próprio rito, sem introduzir rupturas artificiais»
(SC, 3, in EDREL, p. 2210).
Mais recentemente, no seu Discurso aos participantes na 68ª
Semana Litúrgica Nacional italiana, a 24 de agosto de 2017, o Papa Francisco
insistiu na necessidade de conhecermos melhor a reforma e as suas fontes, bem
como de interiorizarmos os seus princípios e observarmos a sua disciplina,
concluindo que «após este longo caminho, podemos afirmar com segurança e com
autoridade magisterial que a reforma litúrgica é irreversível».
Destes trechos pontifícios devemos tirar conclusões de
doutrina e de prática. De doutrina, salientando continuidades e não rupturas,
pois é o tempo de Cristo que se revive e celebra em cada época que o
concretiza. De prática, porque no corpo eclesial de Cristo não prevalece o
arbítrio de cada um, mas o respeito pelo que é de todos para todos.
4. A oração cristã repercute pessoal e comunitariamente em
nós, por ação do Espírito, o que existe em Cristo, como Filho de Deus. É
essencial este ponto, e devemos tê-lo muito em conta na catequese, na
celebração e no acompanhamento espiritual. Tanto mais quanto algumas palavras
como “oração”, “espiritualidade”, “meditação” e similares podem transportar
conteúdos que não correspondem à prática pessoal e ao ensinamento evangélico de
Cristo.
A oração filial de Cristo sustentou todo o seu percurso na
terra, como há de sustentar o nosso: «A sua atividade quotidiana vemo-la
estreitamente ligada à oração, como que nasce da oração. […] Aquilo que Jesus
fez, isso mesmo ordenou que fizéssemos nós. “Orai” – diz repetidas vezes –
“rogai”, “pedi”, “em meu nome”. E até nos deixou, na oração dominical [Pai
Nosso], um modelo de oração. Inculca a necessidade da oração, oração humilde,
vigilante, perseverante e cheia de confiança na bondade do Pai, feita com
pureza de intenção, consentânea com a natureza de Deus» (Instrução Geral sobre
a Liturgia das Horas, in EDREL, p. 476-477).
Este documento citado é excelente guia para a oração, que
podemos aproveitar no presente ano pastoral. Creio que, progredindo neste
sentido, pessoal e comunitariamente, das famílias às catequeses, lugar a lugar,
muito contribuiremos para o crescimento espiritual e ativo da nossa Igreja
diocesana. E também para a missão, pois tudo o que nos aproxima de Deus nos
projeta para os outros. Cristo, que nos leva ao Pai, é o mesmo Cristo que nos
espera em cada um.
Por sua vez, o Catecismo da Igreja Católica dedica à oração
cristã toda a sua quarta parte, plena também de considerações doutrinais e
sugestões práticas. No seu número 2698, por exemplo, elenca-nos os ritmos tradicionais
da oração cristã – diária, dominical e no ciclo anual: «Alguns são quotidianos:
a oração da manhã e da noite, antes e depois das refeições, a Liturgia das
Horas. O Domingo, centrado na Eucaristia, é santificado principalmente pela
oração. O ciclo do ano litúrgico e as suas grandes festas constituem os ritmos
fundamentais da vida de oração dos cristãos». E o número 2679 lembra-nos que a
nossa ligação a Cristo inclui a sua Mãe: «Como o discípulo amado, nós acolhemos
em nossa casa a Mãe de Jesus que se tornou Mãe de todos os viventes. Podemos
orar com Ela e orar-Lhe a Ela. A oração da Igreja é como que sustentada pela
oração de Maria. Está-lhe unida na esperança».
Muitos dos nossos templos – que foram de antigos mosteiros,
conventos e colegiadas - conservam cadeirais onde noutros tempos se rezavam
publicamente as Horas litúrgicas. Seria muito bom que, por toda a Diocese, se
formassem grupos de oração que, em várias igrejas e com ritmo certo, as
rezassem também, oferecendo a quem viesse idêntica oportunidade. Sei que assim
vai acontecendo já, mas este ano é boa ocasião para acontecer muito mais.
Também porque, como lembra o mesmo documento, «a oração comunitária possui uma
dignidade especial, baseada nestas palavras de Cristo: “Onde estiverem dois ou três
reunidos em meu nome, Eu estou no meio deles”» (in EDREL, p. 479).
Estou certo de que a Mãe de Jesus, presente na primeira
comunidade reunida em oração (cf. At 1,14), nos guiará neste caminho, para nos
retomarmos como Igreja santa e missionária. O que é inteiramente para Deus
projeta-nos inteiramente para os outros.
Quero ainda pedir-vos, caríssimos diocesanos, comunhão
profunda e orante com o Santo Padre, que com tanta coragem e lucidez guia a
Igreja neste momento de purificação espiritual e prática. Estamos com o Papa
Francisco, como ele está com Cristo e o Evangelho.
Convosco, em oração e missão,
+ Manuel,
Cardeal-Patriarca
Lisboa, 1 de setembro de 2018
Fonte: Patriarcado de Lisboa
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