Na esteira de nossa última postagem sobre a música litúrgica na Assembleia da CNBB, gostaríamos de propor aqui um texto de Peter Kwasniewski, traduzido pela Equipe Christo Nihil Praeponere e publicado no último dia 29 de abril no site do Padre Paulo Ricardo de Azevedo Júnior.
O texto, intitulado "São Bento, o poder do silêncio e a ditadura do ruído", reflete sobre a importância do silêncio em nossas vidas e como a música litúrgica deve servir como "moldura" para o silêncio, recorrendo às contribuições de São Bento neste sentido.
Segue o texto na íntegra:
São Bento, o poder do silêncio e a ditadura do ruído
Quando nem as igrejas
e liturgias respeitam mais a profunda necessidade humana de recolher-se em
silêncio na presença do Deus vivo, só o que nos pode salvar é a sabedoria dos
santos.
A Igreja recorda no dia 21 de março o dies natalis, isto é, o dia do nascimento para o céu, de São Bento
de Núrsia, o grande pai do monasticismo ocidental e co-padroeiro da Europa
(n.d.t.: no novo calendário litúrgico, sua memória litúrgica é celebrada em 11
de julho). Mas pode um monge que viveu 1500 anos atrás ter algo de relevante a
nos ensinar hoje?
Não só tem ele muito a nos ensinar, como o próprio fato de
ter vivido há tanto tempo lhe dá uma vantagem especial nessa matéria. Pois,
como diz C. S. Lewis em seu prefácio ao livro de Santo Atanásio sobre a
Encarnação, as pessoas modernas - ou seja, nossas contemporâneas - tendem a
ficar aprisionadas em todo um conjunto de suposições sobre como as coisas são
ou deveriam ser, tomando-as por certas sem sequer terem ciência de outras
alternativas, ao passo que os antigos, trabalhando a partir de um conjunto de
pressupostos completamente diferentes dos nossos, estão em condições de
confrontar, questionar, enfraquecer e até mesmo reduzir a pó as nossas
suposições.
O autor anglicano conclui que, quanto mais entrarmos em
contato com livros antigos, tanto maior será a possibilidade de nos
conhecermos, criticarmos e aperfeiçoarmos. A ironia é que só as coisas antigas
podem nos tornar “novos”, enquanto as completas novidades só o que farão é
envelhecer-nos em nossas tolices.
Um exemplo admirável desse fenômeno é a campanha moderna
contra o silêncio. O Cardeal Sarah, como sabemos, tem falado com eloquência - e
(o que é bem mais difícil de encontrar) a partir de uma fé e um espírito de
adoração profundos - sobre a ditadura do ruído na vida secular e também, cada
vez mais, no domínio do sagrado.
Está se tornando cada vez mais difícil encontrar um único
lugar tranquilo que seja no mundo: bares e restaurantes tocam música tão alto
que mal se pode ouvir a pessoa do outro lado da mesa; lojas, escritórios e
instalações de todos os tipos parecem estar agindo sob uma lei cósmica para
evitar o silêncio a todo custo; se o ruído ambiente for inadequado, os
onipresentes fones de ouvido garantirão um fluxo ininterrupto; até mesmo muitos
parques e áreas de recreação têm sua doce paz perturbada pelo som do tráfego de
automóveis e aviões cruzando o céu.
Não fosse tudo isso desafiador o bastante para a saúde
mental, raramente se pode encontrar uma igreja ou uma liturgia católica que
respeite a profunda necessidade humana de recolher-se em silêncio na presença
do Deus vivo, que fala com ternura aos corações que lhe são dóceis.
Um amigo e eu discutíamos certa vez o que era melhor na
Missa, se o silêncio ou a meditação, e ele escreveu-me o seguinte:
O silêncio pode assumir várias formas. Há um silêncio de
desespero; há o silêncio repentino em um belo pôr do sol; há um silêncio de
admiração; há um silêncio de confusão e de perplexidade; há um silêncio de
intimidade e de proximidade. Das muitas formas de silêncio, algumas são
adequadas à Missa e outras não.
O que define um silêncio são os ruídos em torno dele, assim
como um batente delimita uma porta. O silêncio que se ouve logo depois de um
estrondo e pouco antes de um grito é definido pelo estrondo e pelo grito. Da
mesma forma, o silêncio que vem depois do canto gregoriano e antes da
proclamação do Santo Evangelho é definido pela música que lhe antecede e pelas
palavras que lhe seguem. Portanto, no fim das contas, não se pode escolher
entre a música e o silêncio, porque é a música o que define o silêncio como
este tipo de silêncio, ao invés de outro. É como se alguém perguntasse se
deveríamos preferir o papel ao contorno que o define.
Quando estou em uma Missa show com guitarras e performances
musicais, o silêncio entre os sons têm uma característica clara e definida:
trata-se de um tempo morto. É o silêncio que ouvimos entre os atos. A música
propriamente sacra na Missa - o canto gregoriano, a polifonia, os hinos clássicos
e o órgão - atua como uma moldura em torno do silêncio e define-o como um
silêncio sagrado, densamente significativo, pronto para ser preenchido pela
oração. O silêncio na Missa, por sua vez, age como uma direção ou um peso
interno para a música, mantendo-a ancorada na quietude eterna, a “Palavra sem
palavras”.
S. Bento entendeu muito bem todas essas coisas, como podemos
deduzir de sua Santa Regra, na qual ele fala em muitos lugares da necessidade e
importância do silêncio. São particularmente dignas de nota suas palavras sobre
o oratório ou a capela: “Terminado o Ofício Divino, saiam todos com sumo
silêncio e tenha-se reverência para com Deus, de modo que, se acaso um irmão
quiser rezar em particular, não seja impedido pela imoderação de outro” (Regra,
52). S. Bento entende que a liturgia existe para criar dentro de nós um espaço
para Deus e um espaço para o silêncio, que façam florescer a nossa oração, como
uma conversa de amigos que se amam.
O patriarca dos monges também nos diz: “Os monges devem, em
todo tempo, esforçar-se por guardar o silêncio” (Regra, 42). Isso pode parecer,
inicialmente, um exagero, se consideramos quantas horas por dia os monges
dedicam a cantar em conjunto os louvores divinos na Missa e no Ofício Divino, e
o quanto a recreação ou a hospitalidade deles podem chamá-los a falar com os
outros. Como os monges podem manter silêncio “em todos os momentos”? Após uma
reflexão mais profunda, a Regra nos inclina a ver a oração vocal e o diálogo de
caridade, feitos no espírito correto, como se originando de e sendo preenchidos
pelo silêncio de um coração recolhido na presença de Deus e que aspira a
servi-lo. Eles são, noutras palavras, uma tradução em cânticos e palavras desse
silêncio interior; eles compartilham a paz de Deus e aumentam-na ao redor.
S. Bento insiste, contudo, no silêncio literal durante toda
a noite e, sempre que possível, durante o dia. Para tanto, no riquíssimo
capítulo 4 da Regra, relativo aos “instrumentos das boas obras” (que podem
servir de base para um excelente exame de consciência), ele nos fornece uma
razão negativa baseada na natureza humana decaída e uma razão positiva, com
base no objetivo elevado da vida cristã.
S. Bento reconhece que, pecadores como somos, com frequência
somos “entregues a murmúrios”, detrações, “fala maligna ou depravada”, conversa
excessiva - e que essas coisas tornam difícil para nós “ouvir com boa vontade a
leitura sagrada” e “estar frequentemente ocupado em oração”. Embora ele não
mencione isso, a mesma dificuldade surge de qualquer ruído inútil, frívolo ou
perturbador em nosso ambiente.
Mas por que deveríamos “ouvir a leitura sagrada” e “estar
ocupados em oração”? O mesmo capítulo estabelece o objetivo: para que nos
possamos “tornar estranhos às coisas mundanas”, colocar nossa esperança em Deus
e “nada antepor ao amor de Cristo” (Christo
nihil praeponere).
Para muitos dos que vivemos no mundo, essas frases
estabelecem um ideal brilhante, sempre realizado de modo imperfeito. Ainda
assim, não se pode chegar a um destino distante sem dar passos, pequenos ou
grandes, para alcançá-lo. Um coração tranquilo e recolhido, cheio de amor
silencioso, bebendo o cálice do Senhor e provando a doçura da sua vitória na
amargura do sofrimento - é aqui que queremos terminar. Se queremos chegar a
este termo, devemos começar aqui, agora, hoje, com mais tempo, mais espaço para
o silêncio em nossas vidas.
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