sexta-feira, 30 de agosto de 2024

Congresso Eucarístico 2024: Texto base (3)

De 08 a 15 de setembro de 2024 se celebra em Quito (Equador) o 53º Congresso Eucarístico Internacional, com o tema «Fraternidade para curar o mundo: “Todos vós sois irmãos” (Mt 23,8)».

Como fizemos com o Congresso Eucarístico de Budapeste (Hungria) em 2021, publicamos aqui no blog o texto base, dividido em três partes. Após a primeira postagem com a Introdução (nn. 1-11) e o Capítulo I (nn. 12-21) e a segunda postagem com o Capítulo II (nn. 22-39), confira o Capítulo III (nn. 40-53) e a Conclusão (nn. 54-58).

Para saber mais, confira nossa postagem sobre a história dos Congressos Eucarísticos Internacionais.

53° Congresso Eucarístico Internacional - Quito (Equador)
08-15 de setembro de 2024
Texto base: Fraternidade para curar o mundo
«Todos vós sois irmãos» (Mt 23,8)

3. Fraternidade para curar o mundo
«Dai-lhes vós mesmos de comer» (Lc 9,13)

40. No texto da multiplicação dos pães que nos oferece o evangelista Lucas, não só acontece o milagre do alimento abundante para todos, até a saciedade e mais, mas também o de uma comunidade que, constituída em assembleia em torno do seu Mestre, recebe o mandamento da caridade. Assim, partilhando o que possui e o próprio esforço físico, sai de si mesma para alimentar a multidão faminta. Sinal eucarístico profético de um povo que não se fecha no intimismo dos seus templos, mas que é enviado pelo seu Senhor a ser também ele pão partido para a vida e a fraternidade do mundo de hoje.


A reconciliação e a violência
41. A ação curadora de Cristo sobre o mundo enfrenta as dramáticas realidades da nossa história, na qual a violência generalizada nos tornou todos vítimas e verdugos ao mesmo tempo. No Equador, país de maioria católica, por exemplo, falar de fraternidade reconciliada pode conter um sabor de incredulidade ao recordar o que aconteceu nas nossas prisões e nas nossas ruas, onde inocentes e culpados, sem distinção, perderam a vida, fazendo dos últimos anos os mais violentos da nossa história recente.
Somos conscientes de que a redenção é real, mas esta tem que alcançar sua consumação definitiva. O mundo foi curado, no seu coração e no seu destino, embora descubramos realidades onde esta cura ainda não se manifestou plenamente. A indignação diante da violência e o desejo de solucioná-la nos falam da certeza da cura. Podemos comprová-lo no testemunho de muitos homens e mulheres que, a partir do testemunho de Cristo, tornando-se seus discípulos missionários [44], souberam responder de maneira evangelicamente nova à crescente violência que aflige nossa maneira “natural” de nos relacionarmos uns com os outros.

O perdão: O exemplo de Cristo
42. Estamos diante de uma constatação e uma busca: o mundo está ferido, é urgente encontrar caminhos de fraternidade e não nos deixarmos vencer pela violência que degrada a pessoa humana e toda a criação. Desde que temos memória como humanidade, sempre existiram sociedades em conflito, que confluíram em fratricídio: o irmão mata o seu irmão em uma multiplicidade de formas. A própria Escritura conta a mesma história, mas atravessada pela certeza de que Deus não está do lado do verdugo, mas da vítima.
A revelação cristã desarma o enigma do desejo violento, não porque anula o dinamismo de imitação que constrói as sociedades, mas porque o canaliza para a verdadeira imitação, a saber: não a do verdugo, nem a da vítima rancorosa, mas a imitação da vítima que perdoa, que é Cristo, o Filho de Deus, o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo. Cada domingo, na Celebração Eucarística, nós, cristãos, colocamo-nos diante do Crucificado, d’Aquele que oferece a vida por amor, d’Aquele que se parte e se partilha, d’Aquele que perdoa os seus verdugos. Nem uma palavra de vingança, nem um gesto de maldição.

A voz das vítimas
43. A voz dos vencidos é, portanto, a condição possível para que a violência cesse de uma vez por todas. Esta foi, por exemplo, a experiência do Papa Francisco com as vítimas de abuso dentro da Igreja [45] e com tantas outras vítimas da iniquidade humana [46]. Suas vozes foram um grito de esperança. Enquanto a história mostra que aparentemente os verdugos continuam triunfando, devemos reconhecer que há outra constante nessa mesma história: ainda existem justos, santos anônimos, que dão sua vida pelos outros. Aí reside a força transformadora do Evangelho e, em particular, da Eucaristia: os fiéis vivenciam, experimentam e realizam a ação de comungar com o caminho aberto por Jesus Cristo, a saber, o ato de amar à custa da própria vida.

Uma fraternidade restaurada: A gratuidade
44. Os relatos pascais das aparições de Jesus abrem a possibilidade de construir uma comunidade já não em termos de rivalidade, mas de gratuidade. As chagas da Paixão são apresentadas pelo Ressuscitado não para vingar a humilhação sofrida e perseguir os assassinos, mas para convocar todas as nações a crer na Boa Nova do perdão e da misericórdia. Assim, o Ressuscitado torna possível celebrar a Eucaristia não no pranto do sepulcro, mas na alegria de um mundo novo, onde é possível celebrar a reconciliação como dom que transforma as relações fratricidas em comunidades de irmãos.
Graças a esse ato de absoluta gratuidade do Cordeiro imolado, que é o Cristo Jesus, é possível passar da infeliz memória das vítimas, cujo sangue clama ao céu, à feliz memória que integra o clamor de fraternidade em um ato universal que reconcilia todos. Não se trata de um simples indulto para os culpados, nem da triste cumplicidade que afasta a vítima, mas da reconciliação como capacidade de fazer nossa a aflição do outro em um ato de perdão, condição necessária para uma nova história e uma nova criação.

“Dai-lhes vós mesmos de comer” (Lc 9,13)
(Vitral da Basílica do Voto Nacional, Quito)

O Cordeiro de Deus é a expressão plena da lógica eucarística do dom que salva, como já havia anunciado Isaías: «Por suas chagas fomos curados» (Is 53,5). O convite de Jesus: «Dai-lhes vós mesmos de comer» (Lc 9,13), e o convite do Cristo pascal no memorial eucarístico: «Fazei isto em memória de mim» (Lc 22,19), nos asseguram que não há outro caminho para reconstruir a fraternidade que dar a vida e dá-la até o fim, como fiéis discípulos missionários d’Aquele que é alimento de vida eterna. Uma vida que se parte e se partilha até saciar a fome de fraternidade de todos os povos e culturas. «Que belo seria se todos pudessem admirar como nos preocupamos uns pelos outros; como mutuamente nos animamos e fazemos companhia. É o dom de si que estabelece a relação interpessoal, que não se gera dando “coisas”, mas dando-se a si mesmo. Em qualquer doação é a própria pessoa que se oferece. “Dar-se” significa deixar agir em si mesmo toda a força do amor que é o Espírito de Deus e, assim, dar lugar à sua força criadora» [47].

Criação e fraternidade universal
45. No final da Segunda Guerra Mundial, conscientes da barbárie produzida por aquela guerra fratricida, os povos redigiram a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), que pretendia pôr fim à violência homicida entre os povos da Terra. Mas os acontecimentos históricos vividos desde então nos fazem constatar que a sede de poder paira sobre a humanidade como uma maldição, dando origem a muitas formas de violência que parecem invencíveis. Como controlar o desejo de poder que habita em nós? Onde encontrar o remédio?

Nas pegadas de Jesus: Humildade e ternura
46. A história de Jesus nos indica o caminho: o abaixamento na humildade radical e a delicadeza absoluta da “ternura” diante do outro. A humildade implica reconhecer o “húmus” da nossa humanidade: nesse barro todos nos encontramos e reconhecemos como irmãos e irmãs, porque todos somos feitos do mesmo húmus. A partir desse húmus estamos ligados ternamente a toda a criação. Por isso é necessário e urgente despojarmo-nos de toda forma de superioridade, resíduos de um antropocentrismo sem Deus que destruiu a casa comum [48].
Deixando de lado todos os interesses que se interpõem entre o outro e eu, devemos nos fazer pobres para nos encontrarmos face a face, para nos olharmos nos olhos, para nos abraçarmos fraternalmente. Para além de toda diferença, somos irmãos e irmãs. Conscientes da nossa pobreza, seremos mais irmãos da terra, do fogo, do ar, da água e dos animais, respeitando todas as formas de vida. A fraternidade humana passa por esta fraternidade cósmica.
Essa atitude consiste em regressar a um estilo de vida simples, vencendo a tentação do consumismo que nos afoga no supérfluo, nos torna prisioneiros das coisas e cria desigualdades e barreiras em relação aos outros, destruindo a fraternidade, não só com os homens, mas com todas as criaturas. Se não cultivarmos esse estilo de fraternidade universal, a fraternidade humana permanecerá uma ilusão em constante perigo.

A fraternidade universal é possível
47. É possível uma fraternidade universal? Sim, esta deve ser vivida como um estilo contracultural no seio das comunidades cristãs, reunidas em torno da vítima que perdoa, que é Cristo. Isso gera ondas de expansão no mar da história que podem recriar o mundo a partir de baixo e de dentro. O cristianismo primitivo é a prova segura da capacidade da fé cristã de reinventar a sociedade e a cultura na força d’Aquele que nos reúne ao redor da mesma mesa, fazendo-se alimento no seu Evangelho e no seu Corpo e Sangue.
Precisamente a Celebração Eucarística, como grande ação de graças, une o céu e a terra, e nos torna artesãos de fraternidade e sábios guardiões da casa comum. Por isso, a Eucaristia é também fonte de luz e de motivação para nossas preocupações com o meio ambiente, e nos orienta a ser guardiões de toda a criação. Não podemos rejeitar essa opção: é uma exigência para a continuidade da comunidade humana neste planeta [49].

A Igreja: Testemunho da cura do mundo
48. «A Igreja vive da Eucaristia» [50] e a Eucaristia cura o mundo; por isso, devemos necessariamente dirigir o nosso olhar para a comunidade cristã, a Igreja, comunidade de homens e mulheres reunidos pelo Senhor para estar com Ele e levar o pão da sua Palavra e do seu Corpo a todas as nações. É a experiência humilde e amorosa do «dai-lhes vós mesmos de comer» (Lc 9,13) de Jesus. Homens e mulheres que, a partir da própria vocação, são enviados como sal e luz, como fermento na massa, chamados a ser memória e fermento desta cura no meio do mundo. A força curadora da Eucaristia se manifesta no testemunho dos cristãos, no ser essa comunidade fraterna, essa Igreja em saída que vive o mandato de Cristo.

Missa na Arquidiocese de Quito, Equador

Em cada Celebração Eucarística ressoam as palavras de Jesus: «Fazei isto em memória de mim» (1Cor 11,24). A que se refere o Senhor? De que devemos fazer memória? Trata-se da memória do amor. Devemos fazer memória do fato de que Jesus nos amou até o fim, entregando-nos seu Corpo e seu Sangue, toda a sua vida. A memória do seu amor renova nossa fé e desperta nosso amor, nos faz entrar na lógica escandalosa de Deus que abala nosso egoísmo: quem quiser salvar a sua vida vai perdê-la e quem quiser ser o primeiro seja o último (cf. Mt 16,25).
Isto transforma a vida quotidiana, abre-a à partilha, responde às exigências de justiça e de paz que se agitam no coração do mundo, impele a proteger a criação. Cada domingo, no Dia do Senhor (cf. Ap 1,10), há homens e mulheres de todas as raças, línguas, povos e nações (cf. Ap 7,9) que, em todas as latitudes, reúnem-se em assembleia em torno do altar do Senhor, para ser juntos o Corpo de Cristo no coração do nosso mundo.

«Ide em paz»: Um envio missionário
49. Uma vez celebrada a Missa, as assembleias litúrgicas se dissolvem lentamente e se dispersam como sementes nos sulcos da terra. Depois de escutar a Palavra, de partilhar o mesmo Pão e beber do mesmo Cálice, os cristãos regressam às suas casas, escolas, escritórios, lojas, locais de lazer, traçando novos caminhos que, através da rede da fraternidade, constroem o Reino. É justamente por isso que a oração coleta da segunda-feira da Oitava da Páscoa reza: «Concedei que por toda a sua vida esses vossos servos sejam fiéis ao sacramento que receberam professando a fé».
Assim, depois de comer o Corpo “entregue”, os cristãos se tornam o «corpo oferecido pelas multidões», servindo o Evangelho nos lugares de fragilidade e de cruz, partilhando e cuidando. É nas provações, muitas vezes desumanas, das migrações, dos extremismos opostos, dos problemas laborais, que os cristãos prolongam a celebração do memorial da Cruz, e assim tornam vivo e presente o Evangelho do Servo que, entregando-se por amor, curou o pecado do mundo e construiu a fraternidade.

A vida, uma Missa prolongada
50. A verdadeira celebração da Ceia do Senhor é aquela que vai transformando nossa vida em Eucaristia para que o mundo tenha vida [51]. Na Eucaristia, Jesus convida toda a comunidade dos discípulos a entrar nesse ato de imitação da dinâmica da sua vida, isto é, a “tomar-se”, a “partir-se” e a “repartir-se”, fazendo-se pão para a humanidade. Para fazer memória da sua entrega, devemos fazer o mesmo que Ele fez com seus discípulos e com cada um de nós: lavar os pés, isto é, abaixar-se e servir os nossos irmãos. Lavar seus pés, lavar seus rostos, lavar seus corações com nosso amor e misericórdia. Por isso, fazer memória do amor de Jesus não é apenas recordar, mas viver hoje este amor por Ele nos nossos irmãos. A memória do amor se transforma em tarefa de amor e assim nos abre ao futuro, à esperança da Páscoa, à esperança da felicidade plena. Não basta participar na Missa “para nos sentirmos bem com Deus”, mas esse amor arriscado de Jesus precisa ir tomando forma na nossa vida.
Quantas mães, quantos pais, junto com o pão de cada dia cortado na mesa de casa, “rompem as costas” para criar seus filhos? Quantos cristãos, enquanto cidadãos responsáveis, multiplicam seus esforços em defesa da dignidade de todos, especialmente dos mais pobres, marginalizados e discriminados? Onde encontram a força para fazer tudo isso? Precisamente na Eucaristia: na vítima que perdoa, na força do amor do Senhor Ressuscitado, que também hoje parte o pão por nós e nos repete: «Fazei isto em memória de mim» (Lc 22,29).

A fonte da vida
51. Na Eucaristia somos incorporados ao Mestre e reconhecemos que todo testemunho vem d’Ele. Já que Ele é a testemunha suprema, nosso testemunho é sempre participação no seu, que assume a forma de anúncio do Reino e de serviço ao próximo no dom de si mesmo. Isto é o que nos recorda a eclesiologia de comunhão do Concílio Vaticano II: «A Eucaristia é a fonte e, ao mesmo tempo, o ápice de toda a evangelização..., centro e ápice da vida da Igreja» [52]. É verdade que permanece a tentação constante de fugir dessa realidade, escondendo-nos em ritualidades e espiritualidades intimistas, mas se somos sinceros com o que celebramos, devemos rejeitar imediatamente esta ameaça.
No Crucificado contemplamos o maior amor e o desprezo mais atroz, mas a fé quis centrar seus olhos no amor, de modo que o ódio já não tem a última palavra, mas o Amor: «Pai, perdoa-lhes, eles não sabem o que fazem» (Lc 23,34). Embora a lança do soldado romano queira selar o crime com a estocada final da violência homicida, Deus faz brotar vida e salvação: sangue e água (Jo 19,34). Um testemunho que se torna profecia e ação. «Sejamos profetas de esperança que anunciam o amor de Deus nestes momentos de crise, que denunciam as ideologias e estruturas de pecado, e que renunciam a toda vontade de domínio, posse ou manipulação do rebanho de Deus. Sabemos que o profeta não é um vidente do futuro, mas aquele homem de Deus que sabe ler e interpretar a história do seu povo como uma história de salvação» [53].

Arcebispo de Quito celebra a Missa no Congresso Eucarístico de Budapeste

52. Este testemunho permeia a vida das nossas comunidades cristãs em todos os tempos e lugares. Em 1954, o Padre Leônidas Proaño Villalba foi nomeado Bispo da Diocese de Riobamba (Equador), território com a maior população indígena do país. Seguindo a inspiração do Concílio Vaticano II, centrou sua missão pastoral na opção preferencial pelos pobres, que eram os rostos concretos de centenas de comunidades indígenas exploradas, marginalizadas e excluídas do direito à educação, à saúde, ao trabalho, à terra, a serem reconhecidos na sua língua, cultura e tradições.
Taita (“pai” em quechua) Leônidas começou a promover uma Igreja-comunidade enraizada no encontro com Jesus Cristo, marcada pela fraternidade e centrada na Eucaristia: «Fui visitar uma comunidade... o povo preparou a Liturgia, as leituras da Palavra de Deus, que iam pelo sentido comunitário, falavam das primeiras comunidades cristãs. Então lhes perguntei: “E vocês, formam uma comunidade cristã?”. “Sim”, me responderam. Pedi-lhes que me explicassem as características que os faziam uma comunidade cristã. (...) Começaram a contar-me o que faziam como comunidade e, de repente, uma senhora pobremente vestida, levantando a mão, pediu a palavra e chorando me disse: “Sim, Monsenhor, a comunidade cristã aqui está viva e ativa, eu sou testemunha do que ela fez. Meu marido ficou gravemente enfermo e, como somos pobres, não tínhamos como ir a Riobamba, como pagar um médico, como comprar remédios, não tínhamos nada, mas a comunidade cuidou de nós, vieram ver o meu marido, fizeram uma coleta, contrataram um médico, trouxeram-no de táxi, pagaram os remédios, que eram muito caros. Graças a todos eles, à comunidade, eu não sou viúva”» [54].

53. Se ouvirmos o silêncio após o tiro que matou Dom Óscar Romero, se ouvirmos a voz de Montesinos que continua nos questionando, se contemplarmos em cada uma das nossas comunidades o testemunho de tantos homens e mulheres que deram a vida pela fraternidade para curar o mundo, então esta é a prova de que o Crucificado-Ressuscitado continua nos unindo a Ele e ao seu Pai, porque n’Ele «todos vós sois irmãos» (Mt 23,8).

Conclusão: Eucaristia, um salmo de fraternidade
«Todos vós sois irmãos» (Mt 23,8)

54. A ferida aberta pelo pecado fez com que Adão rompesse o diálogo com Deus e os laços da fraternidade fossem manchados pelo sangue de Abel. Essa ferida foi curada pelo Filho de Deus com a sua Morte e Ressurreição, cujo memorial celebramos na Eucaristia, ceia pascal da nova e eterna aliança. O Pai amou tanto o mundo que entregou o seu Filho e o Filho se fez dom de amor até a morte e morte de cruz (cf. Fl 2,8). A eternidade do amor entrou na história.
O homem já não precisa se esconder do olhar de Deus com folhas de figueira. O amor de Cristo, com a claridade do meio-dia, restabelece o diálogo e a comunhão de Deus com os homens. A ceia pascal é o novo Éden, onde o homem é por fim verdadeiro filho que se senta à mesa do Reino. E, ao mesmo tempo, a Eucaristia se transforma no cenáculo de fraternidade porque nos une ao Filho que se faz pão e cálice de bênção, tornando-nos irmãos: «Porque há um só pão, todos nós, embora muitos, formamos um só corpo, pois participamos do mesmo pão» (1Cor 10,17).
O egoísmo que envenenou o coração de Adão e manchou de sangue as mãos de Caim foi vencido pelo Filho de Deus feito homem. No banquete eucarístico, Ele, com o pão em suas mãos, dirige sua oração de ação de graças ao Pai, redimindo toda imagem distorcida de Deus como inimigo do homem. E partindo o pão e dando-o aos seus discípulos, cura a fraternidade ferida. A Eucaristia é, na realidade, a cura do nosso amor. Na oração de Cristo todos temos um lugar especial, porque todos somos chamados à comunhão: «Pai, todos sejam um» (Jo 17,21). E, ao mesmo tempo, este novo “nós” da Eucaristia não fica fechado em um cenáculo, mas nos orienta ao serviço do próximo concreto e visível, isto é, o amor eucarístico transborda para curar as feridas do mundo.

Vitral da Basílica do Voto Nacional, Quito

55. Na América Latina, o dinamismo eucarístico das comunidades eclesiais encontrou seu centro vital na escuta “celebrada” da Palavra e na “fração do Pão”. Como Tiago, Pedro e João apertaram a mão de Paulo e Barnabé na assembleia de Jerusalém como sinal de reconhecimento, comunhão e missão, com o pedido «de que nos lembrássemos dos pobres» (Gl 2,10), assim nós o fazemos hoje em cada Eucaristia.
A resposta de Deus Pai ao anseio de fraternidade humana é a pessoa de Jesus Cristo, que se fez Pão da Vida por amor para curar as feridas do mundo. Por isso a Igreja deve estar sempre em saída e renovar a fecundidade da sua ação evangelizadora, reconhecendo o Corpo de Cristo no corpo maltratado do próximo, do último, do pequeno, do que sofre na sua humanidade, e colocando-se a seu serviço com os mesmos gestos e palavras de vida, de proximidade, de amor e de dignidade que Cristo teve pelos pequenos. Só assim a Eucaristia continua sendo Palavra e Pão de vida para curar as feridas dos pequenos e esquecidos deste mundo.

56. O Cardeal Jorge Mario Bergoglio, quando era Arcebispo de Buenos Aires (Argentina), pregava que a Eucaristia é o selo do amor de Deus em nós e, através de nós, para os pequenos: «Que o pão dividido transforme nossas mãos vazias em mãos cheias, com essa medida “calcada, sacudida, transbordante” (Lc 6,38) que o Senhor promete ao que é generoso com seus talentos. Que o doce peso da Eucaristia deixe sua marca de amor nas nossas mãos para que, ungidas por Cristo, se tornem mãos que acolhem e contêm os mais frágeis. Que o calor do pão consagrado arda em nossas mãos com o vivo desejo de partilhar tão grande dom com todos que têm fome de pão, de justiça e de Deus» [55].

57. A Igreja é sacramento universal de salvação na medida em que está unida a Cristo [56]. Se Cristo é comunhão, também a Igreja é comunhão, não só entre os homens, mas «por Cristo, com Cristo e em Cristo» é comunhão com o eterno amor trinitário de Deus. A Igreja, nascida do Coração de Cristo, é enviada para gerar essas novas relações fraternas vividas no amor eucarístico, que inclui a todos e a ninguém deixa de fora. Ao mesmo tempo, a Eucaristia é o altar do mundo, de onde se eleva a boa ação de graças a Deus e se renova a aliança de vida e de cuidado de toda a criação.

58. Em comunhão com a Virgem Maria, mulher “eucarística” [57], com Santa Marianita de Jesus [58], que ofereceu sua vida em oblação pelo nosso povo, e com o Beato Emílio Moscoso [59], mártir da Eucaristia, unamo-nos a todos os seres humanos e, sendo voz de todas as demais criaturas, elevemos da nossa casa comum este “salmo de fraternidade”:

Nações, povos, territórios, gentes!
Vizinhos, amigos e famílias,
feridos e amargos, divididos e dispersos,
triste pólvora que tantos mata,
drogas que sufocam a vida e o canto...

Perdoa, Senhor, a minha intransigência,
sinal incoerente do meu barro
que me afasta do humano e do divino,
que quebra a fraternidade e te entristece,
discreta presença no pão e no vinho.

Sangue humano derramado por homens
é sangue fraterno de confrontos homicidas.
Olha, Senhor, benevolente e grande
a mente perdida, o coração dilacerado,
os lábios que imploram aceitação:
encontrem refúgio no teu coração que ama.

Perdoa, Senhor, os meus egoísmos,
a ternura que se esconde,
a dor que me acutila
és tu quem a assume na cruz,
discreta presença no pão e no vinho.

Ajuda-nos, Senhor, a ser Igreja,
no caminho sinodal, sempre irmãos
e já sem ódio, egoísmo ou rancor
saboreemos a intimidade do diálogo e do amor,
o teu bálsamo que cura as feridas,
as feridas do mundo que clamam por ti.


Notas:
[44] cf. V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e Caribenho, Documento de Aparecida, nn. 28-29.
[45] cf. Francisco, Discurso na entrega de insígnias da Ordem de Pio IX, 13 de novembro de 2021.
[46] cf. idem, Encontro com as populações indígenas First Nations, Métis e Inuit (Canadá), 25 de julho de 2022; Discurso aos participantes do encontro promovido pela “Strategic Alliance of Catholic Research Universities” (SACRU) e pela Fundação Centesimus Annus Pro Pontifice, 11 de março de 2023.
[47] idem, Homilia na Missa pela evangelização dos povos, Quito, 07 de julho de 2015.
[48] cf. idem, Encíclica Fratelli tutti, n. 194.
[49] cf. idem, Encíclica Laudato si’, nn. 161.236.
[50] João Paulo II, Encíclica Ecclesia de Eucharistia, n. 1.
[51] Francisco, Audiência Geral, 04 de abril de 2018.
[52] Ecclesia de Eucharistia, nn. 22.31.
[53] Alfredo José Espinoza, Carta Pastoral “Profetas de Esperanza”, Quito, 22 de abril 2022.
[54] Luciano Bellini (org.), Palabras de Liberación: Discursos y Homilías de Mons. Proaño, Quito, Abya Yala, 2009, pp. 58-59.
[55] Jorge Mario Bergoglio, El verdadero poder es el servicio, Claretiana, Buenos Aires, 2013, pp. 243-244.
[56] cf. Concílio Vaticano II, Constituição Lumen gentium, nn. 1-2.
[57] Ecclesia de Eucharistia, nn. 53-58.
[58] Marianita de Jesús Paredes Flores (Quito, 1618-1645), o “lírio de Quito”. Primeira santa equatoriana, ofereceu sua vida pela salvação do país, assolado por uma terrível epidemia. Em 1946 o Congresso do Equador lhe outorgou o título de “Heroína da Pátria”.
[59] Salvador Víctor Emilio Moscoso Cárdenas (Cuenca, 1846 - Riobamba, 1897). Sacerdote jesuíta, assassinado por ódio à fé por militares fiéis ao regime revolucionário durante a luta fratricida que ensanguentou Riobamba.


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