segunda-feira, 20 de setembro de 2021

Leitura litúrgica da Carta aos Gálatas (1)

“É para a liberdade que Cristo nos libertou” (Gl 5,1)

Em nossa série de postagens sobre a leitura litúrgica dos livros da Sagrada Escritura, em sintonia com o tema do “Mês da Bíblia” da Igreja no Brasil neste ano de 2021, analisaremos aquela que, embora seja a menor em extensão das quatro “grandes Cartas Paulinas”, segundo alguns estudiosos é a que melhor exprime o pensamento do Apóstolo: a Carta aos Gálatas, Πρὸς Γαλάτας (Gl).

1. Breve introdução à Carta aos Gálatas

De acordo com os Atos dos Apóstolos, Paulo visitou o sul da província da Galácia (na região central da atual Turquia) durante sua 1ª viagem missionária (anos 46-49), passando pelas cidades de Antioquia da Pisídia, Icônio, Listra e Derbe (At 13–14). Na 2ª viagem (anos 50-52), visitou novamente a Galácia, talvez indo à região norte (At 16).

Após a passagem do Apóstolo, pregadores judaizantes geraram confusão nas comunidades, afirmando que os cristãos de origem grega deveriam se submeter às leis judaicas, incluindo a circuncisão. Assim, Paulo escreve a Carta para resolver esta questão, provavelmente entre os anos 54-55, quando estava em Éfeso.

"São Paulo estigmatizado" - Vittore Carpaccio
(O livro aberto traz os textos de Gl 2,20; 6,17)

Há unanimidade entre os estudiosos sobre a autenticidade da Carta (protopaulina), na qual se vê inclusive a personalidade de Paulo: ele é rígido com as comunidades, pois abandonaram seus ensinamentos - “Ó gálatas insensatos...” (Gl 3,1); mas, ao mesmo tempo, demonstra seu amor, chamando os gálatas de “filhos” (Gl 4,19) e irmãos (Gl 4,12; 5,11; 6,19).

A estrutura da Carta também é bem definida:

a) Gl 1,1-10: Introdução, formada pela saudação, na qual Paulo reforça sua autoridade de Apóstolo (vv. 1-5) e por um exórdio, no qual repreende os gálatas por darem ouvidos a “outro evangelho” (vv. 6-10);

b) Gl 1,11–2,14: Apologia pessoal, recordando sua conversão, o “Concílio de Jerusalém” (At 15) e o encontro com Pedro;

c) Gl 2,15-21: Tese central de Paulo: a justificação pela fé e não pelas obras da Lei;

d) Gl 3,1–4,31: Argumentos da Escritura a favor da justificação pela fé, recorrendo sobretudo à figura de Abraão;

e) Gl 5,1–6,10: Parênese (exortação moral) sobre a liberdade e a vida no Espírito;

f) Gl 6,11-18: Conclusão, recapitulando o tema da circuncisão.

É importante ter presente que o pensamento de Paulo sobre a justificação pela fé não é contraditório com a postura da Carta de Tiago, que defende também a importância das obras. Os dois autores não se opõem, mas se completam, uma vez que foram escritos em contextos diferentes.

Paulo escreve para cristãos de origem grega, aos quais os grupos judaizantes queriam impor a observância da Lei de Moisés, muitas vezes desvinculada da adesão do coração. A Carta de Tiago, por sua vez, é escrita para cristãos de origem judaica que pensavam que bastava uma adesão formal a Cristo, sem impacto em sua vida. Tiago recorda, pois, que a verdadeira fé se manifesta na vivência da caridade, como o próprio Paulo confirma em Gl 5,6: “a fé agindo pela caridade”.

Além disso, assim como Tg condena a discriminação entre ricos e pobres, Gl condena a discriminação entre judeus e gregos: “Todos vós sois um só em Cristo Jesus” (Gl 3,28).

Para acessar nossa postagem sobre a leitura litúrgica da Carta de Tiago, clique aqui.

Para saber mais, confira a bibliografia indicada no final da postagem.

Ícone representando o "Concílio de Jerusalém"
(Ao centro, Tiago, o "irmão do Senhor", ladeado por Pedro e Paulo)

2. Leitura litúrgica da Carta aos Gálatas: Composição harmônica

Cumpre lembrar que são dois os critérios de escolha das leituras propostos no Elenco das Leituras da Missa (n. 66): a composição harmônica e a leitura semicontínua [1]. Iniciamos nossa análise da leitura litúrgica de Gálatas pelo critério da composição harmônica: a escolha do texto por sua sintonia com o tempo ou a festa litúrgica.

a) Celebração Eucarística

A primeira ocorrência da Carta no ciclo do Ano Litúrgico é no Tempo do Natal, como 2ª leitura da Solenidade de Santa Maria, Mãe de Deus (01 de janeiro). Aqui lemos o importantíssimo texto de Gl 4,4-7 [2], do qual se destaca neste contexto a menção mais antiga do Novo Testamento a Maria (embora sem citar seu nome): “Deus enviou o seu Filho, nascido de uma mulher, nascido sujeito à Lei” (v. 4).

O texto também está em sintonia com o mistério da Circuncisão de Jesus (Lc 2,21), que se recorda nessa data, oito dias após o Natal. Jesus é submetido à circuncisão, conforme a Lei, tornando-se assim participante da aliança feita por Deus com Abraão (Gn 17).

Passando ao Tempo Pascal, encontramos nosso livro na Solenidade de Pentecostes, como leitura à escolha para o ano B. A perícope aqui é Gl 5,16-25 [3], na qual Paulo exorta a viver segundo o Espírito, elencando os seus frutos: “caridade, alegria, paz...”.

Nas celebrações dos santos também há uma leitura de Gálatas: na Vigília da Solenidade de São Pedro e São Paulo, Apóstolos, celebrada na tarde do dia 28 de junho [4], lemos Gl 1,11-20 [5], quando Paulo descreve seu encontro com Pedro.

Na América Latina, o dia 12 de dezembro é a Festa de Nossa Senhora de Guadalupe (celebrada como memória facultativa no resto do mundo). A leitura indicada para essa Festa é Gl 4,4-7 [6], sobre a qual já falamos acima.

A mesma perícope de Gl 4,4-7 encontra-se entre os textos ad libitum (à escolha) do Comum de Nossa Senhora [7].

"Deus enviou o seu Filho, nascido de uma mulher" (Gl 4,4)
(Mosaico do Mosteiro de Hosios Lukas - Grécia) 

Além do Comum de Nossa Senhora, temos outros dois textos de Gl propostos ad libitum para o Comum dos Santos:
- Gl 2,19-20: Paulo atesta sua comunhão com Cristo - “é Cristo que vive em mim”;
- Gl 6,14-16: Paulo exorta a gloriar-se apenas na cruz de nosso Senhor [98].

Vale recordar que Gl 6,14 é também a célebre antífona de entrada da Missa da Ceia do Senhor e, por conseguinte, de todo o Tríduo Pascal: “A cruz de nosso Senhor Jesus Cristo deve ser a nossa glória: n’Ele está nossa vida e ressurreição; foi Ele que nos salvou e libertou” [9].


Quanto às Missas para diversas necessidades, temos uma mesma perícope indicada em duas ocasiões: Gl 5,17-26, uma exortação contra as obras da carne (ira, discórdias...), às quais o Apóstolo contrapõe os frutos do Espírito: “caridade, alegria, paz...”.

Essa perícope pode ser proferida à escolha nas Missas pela pátria, pelos governantes, por um encontro de chefes de Estado, pelo chefe de Estado e pelo progresso dos povos (que compartilham as mesmas leituras) e na Missa em tempo de guerra ou calamidade [10].

Por fim, quanto às Missas votivas, encontramos novamente o texto de Gl 4,4-7 em três celebrações marianas:
- na Missa votiva do Santíssimo Nome de Maria, como 1ª opção de leitura [11];
- na Missa de Maria, Mãe de Deus, formulário n. 4 da Coletânea de Missas de Nossa Senhora, para o Tempo do Natal [12];
- e na Missa de Maria de Nazaré, formulário n. 8 da Coletânea, que pode ser utilizado no Tempo do Natal e no Tempo Comum. Aqui Gl 4,4-7 é a 1ª opção de leitura [13].

b) Sacramentos e sacramentais

Além da Celebração Eucarística, encontramos textos da Carta aos Gálatas nos outros dois sacramentos da Iniciação Cristã e nos dois sacramentos de cura.

Primeiramente, no contexto da Iniciação Cristã de adultos, o texto de Gl 4,4-7 é indicado como 2ª opção de 2ª leitura na Entrega do Pai-nosso, um dos ritos em preparação ao Batismo [14].

A ênfase aqui, porém, não é mariana, mas trinitária: Paulo recorda a filiação divina que recebemos em Cristo: Ele nos envia o Espírito, pelo qual podemos chamar a Deus “Abbá, Pai” (v. 6).

"Deus enviou aos nossos corações o Espírito do seu Filho, que clama: 'Abbá, ó Pai'" (Gl 4,6)

Quanto à celebração do sacramento do Batismo propriamente dita, tanto de adultos como de crianças, propõe-se dentre os textos à escolha Gl 3,26-28 [15].

Nesta perícope temos o que provavelmente era parte de um cântico batismal da Igreja primitiva: “Vós todos que fostes batizados em Cristo, vos revestistes de Cristo” (v. 27). Este versículo, com efeito, é entoado como refrão pascal na Liturgia bizantina [16].


Para o sacramento da Confirmação, por sua vez, o texto sugerido é Gl 5,16-17.22-23a.24-25 [17], com o elenco dos frutos do Espírito Santo, como vimos anteriormente.

Uma versão mais longa desta perícope é indicada ad libitum para a celebração do sacramento da Reconciliação: Gl 5,16-24 [18]. Aqui, além de elencar os frutos do Espírito, o texto exorta contra as obras da carne.

Por fim, para a celebração do sacramento da Unção dos Enfermos sugere-se o texto de Gl 4,12-19 [19], no qual Paulo recorda uma doença que sofreu enquanto estava na Galácia. Esse período de doença foi, para o Apóstolo, ocasião para evangelizar as pessoas que cuidaram dele.

Passando aos sacramentais, encontramos dois textos da nossa Carta indicados à escolha para as bênçãos:

- na Bênção de objetos e vestes litúrgicas: Gl 3,26-27 [20], mais adequado para as vestes, com a referência ao “revestir-se de Cristo”;

- na Bênção de objetos devocionais: Gl 1,1.3-5; 2,19b-20 [21], especialmente para crucifixos ou imagens de Jesus Cristo, dada a referência central a Ele no texto: “Com Cristo eu fui pregado na cruz... É Cristo que vive em mim”.

"Vós que fostes batizados em Cristo, vos revestistes de Cristo" (Gl 3,27)
(Mosaico do Batismo de Cristo no Mosteiro de Hosios Lukas - Grécia)

Concluímos aqui a primeira parte do nosso estudo sobre presença da Carta aos Gálatas nas celebrações litúrgicas do Rito Romano. Na próxima parte concluiremos a análise da sua leitura em composição harmônica com a Liturgia das Horas, além de analisarmos sua leitura semicontínua.

[Atualização: Para acessar a segunda parte desta pesquisa clique aqui]

Breve bibliografia sobre a Carta aos Gálatas usada para esta postagem:

BARBAGLIO, Giuseppe. Às comunidades da Galácia. in: As Cartas de Paulo II: Tradução e comentários. São Paulo: Loyola, 1991, pp. 09-114. Coleção: Bíblica Loyola, v. 5.

BOSCH, Jordi Sánchez. A Carta aos Gálatas. in: Escritos paulinos. 2ª ed. São Paulo: Ave Maria, 2008, pp. 229-254. Coleção: Introdução ao Estudo da Bíblia, v. 7.

BROWN, Raymond. Carta aos Gálatas. in: Introdução ao Novo Testamento. 2ª ed. São Paulo: Paulinas, 2012, pp. 621-640.

FITZMYER, Joseph A. A Carta aos Gálatas. in: BROWN, Raymond E.; FITZMYER, Joseph A.; MURPHY, Roland E. [org.] Novo Comentário Bíblico São Jerônimo: Novo Testamento e artigos sistemáticos. São Paulo: Academia Cristã; Paulus, 2011, pp. 421-440.

VOUGA, François. A epístola aos Gálatas. in: MARGUERAT, Daniel [org.]. Novo Testamento: História, escritura e teologia. 3ª ed. São Paulo: Loyola, 2015, pp. 277-295.

Recomendamos também as Catequeses do Papa Bento XVI proferidas durante o Ano Paulino, de 02 de julho de 2008 a 04 de fevereiro de 2009, particularmente as Catequeses nn. 13 e 14 sobre a justificação pela fé.
Cabe recordar ainda que o Papa Francisco iniciou um ciclo de Catequeses sobre a Carta aos Gálatas no dia 23 de junho de 2021.

Notas:
[1] ALDAZÁBAL, José. A Mesa da Palavra I: Elenco das Leituras da Missa - Texto e Comentário. São Paulo: Paulinas, 2007, p. 76.
[2] LECIONÁRIO I: Dominical A-B-C. Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1994, p. x.
[3] ibid., p. x.
[4] No Brasil a Solenidade de São Pedro e São Paulo é transferida para o domingo mais próximo. Assim, a Missa da Vigília é celebrada na tarde do sábado.
[5] LECIONÁRIO I, p. x.
[6] LECIONÁRIO III: Para as Missas dos Santos, dos Comuns, para Diversas Necessidades e Votivas. Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1997, p. x.
[7] ibid., p. x.
[8] ibid., p. x.
[9] MISSAL ROMANO, Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1991, p. 247.
[10] LECIONÁRIO III, p. x.
[11] ibid., p. x. A outra opção de leitura aqui é Ef 1,3-6.11-12.
[12] LECIONÁRIO para Missas de Nossa Senhora. Brasília: Edições CNBB, 2016, p. 28.
[13] ibid., p. 39. A outra opção de leitura à escolha aqui é Cl 3,12-17.
[14] RITUAL DA INICIAÇÃO CRISTÃ DE ADULTOS. Tradução portuguesa para o Brasil da edição típica. São Paulo: Paulus, 2001, p. 60. A 1ª opção de leitura é Rm 8,14-17.26-27.
[15] ibid., p. 248; RITUAL DO BATISMO DE CRIANÇAS. Tradução portuguesa para o Brasil da segunda edição típica. São Paulo: Paulus, 1999, p. 132.
[16] “Nas festas do Natal e da Teofania, no Sábado da Ressurreição de Lázaro, no Domingo de Ramos, no Sábado Santo, na Semana da Ressurreição do Senhor e no dia de Pentecostes, em vez do Triságion, canta-se: ‘Vós que fostes batizados em Cristo, de Cristo vos revestistes. Aleluia!’” (SPERANDIO, João Manoel; TAMANINI, Paulo Augusto (org.). Hieratikon: Pequeno Missal Bizantino. Teresina: Editora da Universidade Federal do Piauí, 2015, p. 35).
[17] LECIONÁRIO IV: Lecionário do Pontifical Romano. Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 2000, p. 17.
[18] RITUAL DA PENITÊNCIA. Tradução portuguesa para o Brasil da segunda edição típica. São Paulo: Paulus: 1999, p. 140.
[19] RITUAL DA UNÇÃO DOS ENFERMOS E SUA ASSISTÊNCIA PASTORAL. Tradução portuguesa da edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 2000, p. 109.
[20] RITUAL DE BÊNÇÃOS. Tradução portuguesa da edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1990, p. 395.
[21] ibid., p. 431. 

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