“Sede praticantes da
Palavra e não meros ouvintes” (Tg 1,22)
Após analisar as três Cartas de João no ano de 2019, em nossa série de postagens sobre a leitura dos livros da Sagrada Escritura retornamos ao bloco das Cartas Católicas com a Carta de Tiago (Tg).
1. Breve introdução à
Carta de Tiago
As Cartas Católicas (do grego katholikós, universal) são sete epístolas do Novo Testamento (NT) que
não possuem um destinatário específico, como as Cartas Paulinas, sendo dirigidas,
portanto, a toda a Igreja.
A Carta de Tiago é
tradicionalmente atribuída a Tiago, chamado “o Justo”, o irmão do Senhor,
considerado o primeiro Bispo de Jerusalém, martirizado no ano 62. Enquanto a
tradição romana o identifica com o Apóstolo Tiago, filho de Alfeu, as tradições
ortodoxa e protestante e a maioria dos estudiosos defendem que são pessoas
distintas.
O autor da carta foi, provavelmente, um discípulo de Tiago (um
homem culto, dado seu domínio do grego, com rico vocabulário), recorrendo à sua
autoridade como “coluna” da igreja de Jerusalém (Gl 2,9) para escrever aos
cristãos de origem judaica, como demonstra a breve saudação epistolar: “Tiago, servo de Deus e do Senhor Jesus
Cristo, às doze tribos da Diáspora, saudações” (Tg 1,1).
Ícone de Tiago, o "irmão do Senhor" |
É uma carta prática, com forte teor social, uma exortação
parenética (moral), com elementos sapienciais. Por não aprofundar tanto a
reflexão teológica, alguns autores consideram-na um escrito judaico ao qual
foram acrescentadas algumas referências a Jesus para “cristianizá-la”. Não
obstante, esta tese não é muito aceita, dados a proximidade da Carta de Tiago, por exemplo, com os
ensinamentos de Jesus no Sermão da Montanha (Mt 5–7).
A estrutura da Carta é bastante difícil de definir, dado que,
após a breve saudação no primeiro versículo, sucedem-se uma série de temas e
exortações de caráter moral. François Vouga propõe uma divisão em três partes:
a) Tg 1,2-19a: A
provação da fé, com a exortação contra o acúmulo de riquezas;
b) Tg 1,19b–3,18: A
obediência da fé, com a exortação contra a discriminação de pessoas;
c) Tg 4,1–5,20: A fidelidade
da fé, com uma série de advertências: aos ricos, aos que creem, aos
doentes...
A grande questão no estudo da Carta de Tiago é sua aparente contradição com o pensamento de Paulo
sobre a justificação pela fé. É importante ter presente, antes de tudo, que as Cartas
Paulinas e Tg foram escritas em
contextos diferentes.
Paulo escreve para cristãos de origem grega, aos quais
alguns grupos de judaizantes querem impor a observância da Lei de Moisés,
muitas vezes desvinculada da adesão do coração. Assim, o Apóstolo esclarece que
não é a prática das obras da Lei que nos salva, mas sim a adesão sincera ao
Evangelho de Jesus Cristo (cf. Gl 2,15-21;
Rm 3,21-31).
A Carta de Tiago,
por sua vez, é destinada aos cristãos de origem judaica, alguns dos quais
acreditavam que bastava uma adesão formal a Cristo, sem impacto em sua vida.
Assim, o autor recorda que a fé comporta também a vivência da caridade (Tg
2,14-26), como ensina o Evangelho (cf.
Mt 7,21-23). O próprio Paulo reconhece a caridade como a maior das virtudes
(1Cor 13). Os dois autores, portanto, não se opõem, mas sim se completam.
Fé, Esperança e Caridade: virtudes "irmãs" (Heinrich Maria von Hess, séc. XIX) |
Ainda sobre a Carta vale ressaltar o tema da parusia, isto é, da última vinda de
Cristo, na espera da qual o autor exorta à paciência (Tg 5,7-11). O tema da
demora da parusia era importante no
final do século I, entre os anos 80 a 100, permitindo-nos datar a carta neste
período.
Outro testemunho a favor desta datação é a existência de
ministérios organizados, como o dos presbíteros, a quem o autor confia a unção
dos enfermos (Tg 5,14-16).
Para saber mais, confira a bibliografia indicada no final da
postagem [1].
2. Leitura litúrgica
da Carta de Tiago: Composição
harmônica
A escolha dos textos bíblicos proclamados nas celebrações
litúrgicas obedece a dois critérios, indicados no n. 66 do Elenco das Leituras da Missa: a composição harmônica e a leitura
semicontínua [2]. Iniciaremos nosso estudo da leitura de Tg pela composição harmônica: a escolha do texto por sua sintonia
com o tempo ou a festa litúrgica.
a) Celebração
Eucarística
No ciclo ordinário do Ano
Litúrgico encontramos nossa carta em composição harmônica apenas uma vez,
como 2ª leitura do III Domingo do
Advento do ano A. O texto proclamado aqui é Tg 5,7-10 [3], anunciando que “a
vinda do Senhor está próxima”.
Detalhe do "Juízo final" de Marten de Vos (séc. XVI) |
Nos Comuns dos Santos,
por sua vez, temos outros dois textos, propostos ad libitum (à escolha), uma vez que esses formulários trazem várias
opções de leituras para cada "categoria" de santos:
- no Comum dos
mártires propõe-se Tg 1,2-4.12 [4], que proclama "bem-aventurados" aqueles
que suportam as provações na fé;
- no Comum dos santos,
por sua vez, sugere-se Tg 2,14-17 [5], o célebre texto no qual o autor exorta a
viver a fé através das boas obras.
O maior número de textos da Carta de Tiago em composição harmônica encontra-se nas Missas para diversas necessidades, celebrações nas quais se rezam por intenções específicas, onde
encontramos seis perícopes do nosso escrito.
Primeiramente há cinco formulários que compartilham as
mesmas leituras: as Missas pela pátria,
pelos governantes, por um encontro de chefes de Estado, pelo chefe de Estado e
pelo progresso dos povos. Aqui se propõem dois textos:
- Tg 3,13-18, exortando a buscar a “verdadeira sabedoria”
que gera a justiça e a paz;
- Tg 4,1-10, exortando a não promover a discórdia [6].
As duas leituras acima constam ainda cada uma em mais um
formulário:
- Tg 3,13-18, naturalmente, na Missa pela conservação da paz e da justiça [7];
- Tg 4,1-10 na Missa
em tempo de guerra ou calamidade [8], uma vez que o autor da Carta, exortando
a fugir das discórdias, recorda que estas geram as guerras.
Na Missa no início do
ano civil, por sua vez, propõe-se como leitura à escolha Tg 4,13-15 [9], na
qual o autor ensina a confiar o amanhã (e, por conseguinte, o ano que se
inicia) à Providência de Deus: “Se o
Senhor quiser...”.
Na Missa para a
sementeira sugere-se a perícope de Tg 5,7-8.16c-18 [10], na qual, ao exortar
à paciência na espera pela vinda do Senhor, o autor da Carta usa a imagem do
agricultor que, após lançar a semente na terra, espera pela chuva.
O célebre texto de Tg 5,13-16, exortando a ungir os enfermos
com óleo, é indicado para a Missa pelos
doentes [11], formulário que também pode ser usado para a Unção dos
Enfermos na Missa.
Sacramento da Unção dos Enfermos |
Por fim, na Missa em qualquer necessidade propõe-se ad libitum o texto de Tg 1,2-4.12 [12], com a exortação a suportar com paciência as provações.
b) Sacramentos e
sacramentais
A Carta de Tiago
aparece como leitura ad libitum (pois
também aqui são propostos vários textos) nos dois sacramentos de cura: a Reconciliação e, naturalmente, a Unção dos
Enfermos.
Dado o caráter parenético da Carta, para a celebração do sacramento da Reconciliação são
indicados três textos [13]:
- Tg 1,22-27: a exortação a pôr em prática a Palavra de
Deus;
- Tg 2,14-26: a exortação a viver a fé através das boas
obras;
- Tg 3,1-12: a advertência contra os “pecados da língua”.
O Ritual da Penitência
traz ainda modelos de celebrações penitenciais com leituras próprias. Para a Celebração Penitencial com enfermos é
indicada como leitura a perícope de Tg 5,13-16 [14], na qual, além da
referência à unção dos enfermos, há a exortação a confessar os pecados (v. 16).
Como não poderia deixar de ser, o texto de Tg 5,13-16 é
indicado para o sacramento da Unção dos
Enfermos [15], tanto entre as leituras à escolha quanto adaptado como
monição introdutória [16].
Passando aos sacramentais, além da Bênção dos Enfermos, na qual podem tomar-se os textos do Ritual da Unção, como vimos acima, temos uma leitura de Tg indicada para a forma breve da Bênção de idosos. Trata-se de Tg 5,7-8 [17], a exortação à paciência.
"Extrema Unção" (Nicolas Poussin - séc. XVII) |
Encerramos assim a primeira parte do nosso estudo sobre a
presença da Carta de Tiago nas
celebrações litúrgicas do Rito Romano. Na próxima parte concluiremos a análise
da sua leitura em composição harmônica com a Liturgia das Horas e
contemplaremos sua leitura semicontínua.
[Para acessar a segunda parte desta pesquisa, publicada no dia 15 de junho, clique aqui]
Notas:
[1] ALEGRE, Xavier. A Carta de Tiago. in: ALEGRE, Xavier;
TUÑI, Josep-Oriol. Escritos joaninos e
cartas católicas. 2ª ed. São Paulo: Ave Maria, 2007, pp. 263-294. Coleção: Introdução ao Estudo da Bíblia, v. 8.
BROWN, Raymond. Epístola (carta) de Tiago. in: Introdução ao
Novo Testamento. 2ª ed. São Paulo: Paulinas, 2012, pp. 945-972.
VOUGA, François. A epístola de Tiago. in: MARGUERAT, Daniel [org.]. Novo Testamento: História, escritura e
teologia. 3ª ed. São Paulo: Loyola, 2015, pp. 517-532.
[2] ALDAZÁBAL, José. A
Mesa da Palavra I: Elenco das Leituras da Missa - Texto e Comentário. São
Paulo: Paulinas, 2007, p. 76.
[3] LECIONÁRIO I: Dominical A-B-C. Tradução portuguesa da 2ª
edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1994, p. x.
[4] LECIONÁRIO III: Para as Missas dos Santos, dos
Comuns, para Diversas Necessidades e Votivas. Tradução portuguesa da 2ª edição
típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1997, p. x.
[5] ibid., p. x.
[6] ibid., p. x.
[7] ibid., p. x.
[8] ibid., p. x.
[9] ibid., p. x.
[10] ibid., p. x.
[11] ibid., p. x.
[12] ibid., p. x.
[13] RITUAL DA PENITÊNCIA. Tradução portuguesa para o Brasil da segunda
edição típica. São Paulo: Paulus: 1999, pp. 148-149.
[14] ibid., p. 236.
[15] RITUAL DA UNÇÃO DOS ENFERMOS E SUA ASSISTÊNCIA PASTORAL. Tradução portuguesa da edição típica para o
Brasil. São Paulo: Paulus, 2000, p. 112.
[16] ibid., p. 34.
[17] RITUAL DE BÊNÇÃOS. Tradução
portuguesa da edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1990, p. 102.
Nenhum comentário:
Postar um comentário