quinta-feira, 5 de setembro de 2019

Leitura litúrgica da Primeira Carta de João (1)

“Deus é amor: quem permanece no amor, permanece com Deus, e Deus permanece com ele” (1Jo 4,16)

Desde 1971 a Igreja no Brasil celebra em setembro o “Mês da Bíblia”, propondo aos fiéis a leitura e o estudo de um livro da Sagrada Escritura a cada ano. Para 2019 o livro escolhido foi a Primeira Carta de João (1Jo), um dos mais importantes escritos do Novo Testamento.

Assim como já fizemos com Joel e Sabedoria, gostaríamos de contribuir para a reflexão deste Mês com uma análise da leitura litúrgica da 1Jo. Apesar de ser um escrito relativamente breve (05 capítulos, totalizando 105 versículos), possui grande importância nas celebrações do Rito Romano.

1. Breve introdução à Primeira Carta de João

A Primeira Carta de João faz parte de dois blocos de escritos do Novo Testamento: as cartas católicas e os escritos joaninos. As cartas católicas (do grego katholikós, universal) são sete cartas que não possuem como destinatário uma comunidade específica (como as cartas paulinas), sendo, portanto, dirigidas a toda a Igreja.

Os escritos joaninos, por sua vez, são aqueles atribuídos ao Apóstolo João ou por ele influenciados: o Evangelho, as Cartas e, com maiores dificuldades, o Apocalipse. Embora a 1Jo não possua identificação de autoria, são notáveis as semelhanças, tanto temáticas quanto de vocabulário, com o Quarto Evangelho.

Discute-se, porém, se 1Jo deveria realmente deve ser classificada como carta, uma vez que lhe faltam os atributos deste gênero literário (saudação inicial, recomendações finais, etc). Este escrito estaria mais próximo de uma exortação moral (parênese).

De toda forma, sua redação deu-se muito provavelmente entre o final do século I e o início do século II (entre os anos 100 e 110), após o Quarto Evangelho, na Ásia Menor, uma vez que nesta região era forte a influência da escola joanina.

Há relativo consenso quanto à “moldura” da carta, isto é, que possui um prólogo (1,1-4) e um epílogo (5,13-21, inclusive os vv. 14-21 sendo um acréscimo posterior). Há várias hipóteses, porém, sobre o corpo da carta.

Alguns autores a dividem em três partes: a primeira (1,5–2,17) mostra como a comunhão e o conhecimento de Deus só são possíveis através do amor aos irmãos; a segunda (2,18–3,24) traz o tema dos opositores, com o convite à fidelidade; e, por fim, a terceira parte (4,1–5,12) estabeleceria a relação necessária entre amor e fé.

Para outros autores, porém, a estrutura da carta deveria ser considerada em paralelo ao Evangelho de João, dividido em duas partes (o “livro dos sinais” e o “livro da glória”). Assim, a primeira parte da carta (1,5–3,10) traria o tema da luz (“Deus é luz”), enquanto que a segunda parte (3,11–5,12) teria como centro o amor (“Deus é amor”).

De toda forma, este escrito serviu para reforçar a fé das primeiras comunidades cristãs contra alguns grupos que negavam verdades fundamentais da fé, tais como a Encarnação e o sacrifício redentor de Cristo. Estes mesmos grupos postulavam não ter pecado, tendo sido tornados “perfeitos” pelo Batismo. Contra tais “anticristos” o autor reforça a importância da mediação salvífica de Cristo, enquanto convida seus leitores a perseverarem no amor.

Para saber mais, confira a bibliografia indicada no final da postagem [1].

São João, Apóstolo e Evangelista

2. Leitura litúrgica da 1Jo: Composição harmônica

Nesta primeira parte da nossa análise consideraremos as celebrações nas quais a leitura foi escolhida pelo critério da composição harmônica, conforme proposto no n. 66 do Elenco das Leituras da Missa [2]. A escolha reside aqui na sintonia do texto com a espiritualidade do tempo ou da festa litúrgica.

a) Celebração Eucarística

Nas celebrações dos domingos e festas do Ano Litúrgico há cinco ocasiões onde se lê a 1Jo, sendo duas no Tempo do Natal:

Primeiramente o texto de 1Jo 3,1-2.21-24 aparece como 2ª leitura à escolha para o ano C na Festa da Sagrada Família [3]. Segundo o Elenco das Leituras da Missa, as leituras desta festa “falam das virtudes da vida doméstica” [4]: por isso a exortação ao amor é especialmente adequada como fundamento da vida familiar.

Ainda no Tempo do Natal, lê-se nossa carta na Festa do Batismo do Senhor como 2ª leitura à escolha para o ano B. Trata-se aqui do texto de 1Jo 5,1-9 [5], no qual o autor afirma que o próprio Deus dá testemunho a respeito do seu Filho através do Espírito e da água (presentes no Batismo), além do sangue (referência à Paixão).

Durante o Tempo Comum encontramos três celebrações com leituras da 1Jo. Primeiramente na Solenidade do Sagrado Coração de Jesus do ano A, quando se lê 1Jo 4,7-16 [6]. Aqui se proclama a vinda de Cristo ao mundo e o seu sacrifício como provas do amor de Deus para conosco (contestados pelos opositores na carta), bem como a exortação a permanecer neste amor.

Na Solenidade de Todos os Santos (01 de novembro - no Brasil transferida para o domingo), lemos 1Jo 3,1-3 [7]. Neste contexto, a santidade é lida sob a perspectiva do dom da filiação divina.

Por fim, na Comemoração dos Fiéis Defuntos (02 de novembro), encontramos duas leituras da 1Jo que podem ser proferidas ad libitum (à escolha), uma vez que para este dia são propostas várias opções de leituras, também indicadas para as Exéquias [8]:
- 1Jo 3,1-2: esses dois versículos trazem, além do tema da filiação divina, como vimos acima, uma perspectiva escatológica, expressa através da chamada visão beatífica: “o veremos tal como Ele é”.
- 1Jo 3,14-16: aqui, por sua vez, recorda-se que quem ama passa da morte para a vida.

Nas Missas dos Santos, tanto no Próprio quanto nos Comuns, temos quatro leituras da 1Jo, sempre ad libitum.

Primeiramente temos a Memória de Santo Hilário de Poitiers, Bispo e Doutor da Igreja (13 de janeiro), na qual aparece como leitura apropriada o texto de 1Jo 2,18-25 [9]. O tema dos opositores, que negavam a divindade do Filho no final do século I, é particularmente adequado a Santo Hilário, que combateu os arianos, que negavam a divindade do Filho no século IV.

Na Memória de Santa Catarina de Sena, Virgem e Doutora da Igreja (29 de abril), por sua vez, consta como leitura apropriada 1Jo 1,5–2,2 [10]. O tema da comunhão uns com os outros, como “filhos da luz”, recorda a atuação desta santa pela unidade da Igreja durante o conturbado “Cisma do Ocidente” no século XIV.

"Se caminhamos na luz, estamos em comunhão uns com os outros" (1Jo 1,7)

Passando aos Comuns dos Santos temos, ao celebrar o Comum dos Mártires, a opção de proclamar a leitura de 1Jo 5,1-5 [11], a qual declara vencedores aqueles que creem em Jesus, Filho de Deus. Uma afirmação especialmente verdadeira se tratando dos mártires, vitoriosos ao dar a vida pelo Evangelho.

No Comum dos Santos, por sua vez, temos três opções de leitura tomadas da nossa Carta [12]:
1Jo 3,14-18 (para santos que se dedicaram às obras de caridade): exortação a dar a vida pelos irmãos a exemplo de Cristo, amando não apenas com palavras, mas também com as ações;
1Jo 4,7-16: exortação ao amor aos irmãos como resposta ao amor de Deus;
1Jo 5,1-5: como vimos acima, a proclamação a vitória dos santos por sua fé em Jesus.

Em quatro das Missas para diversas circunstâncias, nas quais se rezam por determinadas necessidades da vida cristã, encontramos textos da 1Jo que podem ser proferidos ad libitum.

Na Missa pela unidade dos cristãos a leitura de 1Jo 4,9-15 [13] coloca, aplicada ao contexto, o amor mútuo como fundamento de todo esforço pela unidade tão necessária: “Se nos amamos uns aos outros, Deus permanece conosco” (v. 12).

Na Missa pela reconciliação, a leitura de 1Jo 2,1-5 [14] proclama Cristo como vítima em favor dos nossos pecados por seu sacrifício e exorta à vivência dos mandamentos. Na mesma linha, a Missa pelo perdão dos pecados traz o texto de 1Jo 1,5–2,2 [15], que convida a reconhecer os próprios pecados e caminhar na luz.

Por fim, na Missa para pedir a caridade se propõe o texto de 1Jo 3,14-18 [16], já sugerido para as celebrações dos santos que se dedicaram às obras de caridade. Trata-se de uma exortação a amar não apenas com palavras, mas também com as ações.

Nas Missas votivas, celebradas para promover a devoção dos fiéis, temos três formulários em honra dos mistérios do Senhor nos quais consta a 1Jo como leitura à escolha.

A perícope de 1Jo 5,4-8 aparece como opção na Missa Votiva da Santíssima Eucaristia e na Missa Votiva do Preciosíssimo Sangue do Senhor [17]. Esta leitura fala do tríplice testemunho a respeito de Cristo: o Espírito, a água e o sangue, sendo naturalmente este último destacado nesse contexto.

Por fim, na Missa votiva do Sagrado Coração de Jesus pode ser retomada a leitura da Solenidade para o ano A, como vimos acima: 1Jo 4,7-16 [18]. Aqui a vinda de Cristo e seu sacrifício na cruz são aclamados como provas do amor de Deus para conosco.

As mesmas leituras das Missas votivas da Santíssima Eucaristia e do Sagrado Coração são indicadas ad libitum para o Culto Eucarístico fora da Missa [19].

"Três são os que testemunham: o Espírito, a água e o sangue" (1Jo 5,7-8)

Concluímos assim a primeira parte do nosso estudo sobre a leitura litúrgica da Primeira Carta de João, a grande proclamação do Deus-Amor. Em breve publicaremos aqui sua segunda parte, continuando a análise com os demais sacramentos, os sacramentais e a Liturgia das Horas.

Notas:
[1] BROWN, Raymond. Primeira epístola (carta) de João. in: Introdução ao Novo Testamento. 2ª ed. São Paulo: Paulinas, 2012, pp. 519-533.
SILVANO, Zuleica. Primeira Carta de João: Crer em Jesus Cristo e amar uns aos outros. São Paulo: Paulinas, 2019.
TUÑI, Josep-Oriol. As cartas de São João. in: ALEGRE, Xavier; TUÑI, Josep-Oriol. Escritos joaninos e cartas católicas. 2ª ed. São Paulo: Ave Maria, 2007, pp. 155-189. Coleção: Introdução ao Estudo da Bíblia, v. 8.
ZUMSTEIN, Jean. As epístolas joaninas. in: MARGUERAT, Daniel [org.]. Novo Testamento: História, escritura e teologia. 3ª ed. São Paulo: Loyola, 2015, pp. 471-487.
[2] ALDAZÁBAL, José. A Mesa da Palavra I: Elenco das Leituras da Missa - Texto e Comentário. São Paulo: Paulinas, 2007, p. 76.
[3] LECIONÁRIO I: Dominical A-B-C. Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1994, p. 721.
[4] Elenco das Leituras da Missa, n. 95, in: ALDAZÁBAL, op. cit., p. 95.
[5] LECIONÁRIO I, p. 422
[6] ibid., p. 243.
[7] LECIONÁRIO I, p. 1048; LECIONÁRIO III: Para as Missas dos Santos, dos Comuns, para Diversas Necessidades e Votivas. Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1997, p. 200.
[8] LECIONÁRIO I, p. 1078.
[9] LECIONÁRIO III, p. 47. A leitura apropriada, de caráter facultativo, difere-se da leitura própria, que é obrigatória.
[10] LECIONÁRIO III, p. 83.
[11] ibid., p. 292
[12] ibid., pp. 385-386
[13] ibid., p. 523.
[14] ibid., p. 608.
[15] ibid., p. 704.
[16] ibid., p. 715.
[17] ibid., pp. 776.809.
[18] ibid., p. 825.
[19] SAGRADA COMUNHÃO e o culto do Mistério Eucarístico fora da Missa. Edição típica em tradução portuguesa para o Brasil. São Paulo: Paulus, 2000, pp. 74.103.

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