“A
Sabedoria é um espírito amigo dos homens” (Sb 1,6)
Em abril publicamos aqui no blog
uma análise sobre a leitura litúrgica do Livro do Profeta Joel, identificando sua presença nas celebrações do Rito Romano.
Agora gostaríamos de dar continuidade a esta proposta, analisando o que
provavelmente foi o último livro do Antigo Testamento (AT) a ser escrito: o Livro da Sabedoria (Sb), que foi tema do “Mês da Bíblia” promovido pela Igreja no
Brasil em 2018.
1. Breve introdução ao Livro da
Sabedoria
Este livro pertence ao grupo dos livros
“deuterocanônicos” (“da segunda lista”), que por terem sido escritos em grego
não foram aceitos na Bíblia hebraica (e posteriormente excluídos pelos cristãos
protestantes).
Seu nome original é Σοφία Σαλωμῶνος,
Sabedoria de Salomão, posteriormente
traduzido para o latim por São Jerônimo simplesmente como “Liber Sapientiae”, Livro da
Sabedoria. Com efeito, a autoria de Salomão é simbólica: sendo um escrito
de caráter sapiencial, era natural associá-lo a Salomão, considerado como
modelo de homem sábio. O mesmo acontece nos livros dos Provérbios, Cântico dos
Cânticos e Qohélet (Eclesiastes).
O livro foi escrito em grego,
provavelmente por um judeu sábio (a obra demonstra seu profundo conhecimento da
história de Israel), em Alexandria (dada a ênfase ao Egito na obra). A maioria
dos especialistas situa sua redação na segunda metade do século I a. C. (em
torno do ano 150 a. C.), sendo, portanto, o último livro do AT a ser escrito.
Possui 19 capítulos que costumam
ser divididos em três grandes blocos:
a) Sb 1–5: Seção “ética” - O
destino dos ímpios e dos justos e a vitória da justiça divina;
b) Sb 6–9: Seção “filosófica” - O
elogio da sabedoria e sua busca por Salomão;
c) Sb 10–19: Seção “teológica” - A sabedoria
na história da salvação.
Para saber mais, confira a
bibliografia indicada no final da postagem [1].
Salomão segurando o Livro da Sabedoria (Liber Sapientiae) (Vitral da igreja de São Miguel e Todos os Anjos em Ledbury - Inglaterra) |
2. Leitura litúrgica
de Sb: Composição harmônica
Para analisar as ocorrências do Livro da Sabedoria nas celebrações
litúrgicas, consideraremos aqui os dois critérios de escolha dos textos
propostos no Elenco das Leituras da
Missa, n. 66: a composição harmônica e a leitura semicontínua [2].
Começamos pela composição harmônica,
que consiste na escolha dos textos em sintonia com a espiritualidade do tempo
ou da festa litúrgica.
a) Celebração
Eucarística
Dentre os diversos tempos do Ano
Litúrgico, Sb aparece primeiramente uma
vez durante a Quaresma, mais
especificamente na sexta-feira da IV
semana da Quaresma. A perícope escolhida aqui é Sb 2,1a.12-22 [3], que
descreve os planos dos ímpios contra o homem justo, chegando a tramar sua
morte. Em uma chave de leitura cristológica deste texto, oferecida pelo
Evangelho do dia (Jo 7,1-2.10.25-30), Jesus é este justo perseguido. Há
diversos textos dos relatos da Paixão paralelos a essa perícope.
Durante os domingos do Tempo Comum são
oito as aparições de Sabedoria. O
critério de escolha das leituras aqui é sua afinidade temática com o Evangelho
[4].
No Ano A, durante o qual se lê o Evangelho
de Mateus, Sb aparece duas vezes,
nos Domingos XVI e XXIII.
No XVI Domingo do Tempo Comum do ano A se lê Sb 12,13.16-19 [5]: é um
elogio à moderação de Deus, que embora onipotente, age com clemência. Aqui o
texto complementa o tema da paciência de Deus descrita nas parábolas (Mt
13,24-43), especialmente a do joio e do trigo (vv. 24-30).
O XXXII Domingo do Tempo Comum do ano A oferece-nos, por sua vez, o
texto de Sb 6,12-16 [6], que narra como a sabedoria se deixa encontrar e inclusive
sai ao encontro de quem a busca. O tema da busca e do encontro aparece
magistralmente no Evangelho através da parábola das dez virgens (Mt 25,1-13).
Interpretada na chave escatológica própria dos últimos domingos do Tempo Comum,
esta perícope identifica Jesus, o noivo da parábola, como esta sabedoria que
vem ao nosso encontro. Os justos e os ímpios estão representados,
respectivamente, pelas virgens prudentes e imprudentes.
No Ano B, dedicado à
leitura do Evangelho de Marcos, a
Igreja nos propõe o Livro da Sabedoria
durante os Domingos XIII, XXV e XXVIII.
Comecemos com o XIII Domingo do Tempo Comum do ano B, com
a leitura de Sb 1,13-15; 2,23-24 [7]. Esta perícope, que recolhe dois trechos
de Sb, proclama o poder de Deus sobre
a morte, manifesto em seguida no Evangelho pela ressurreição da filha de Jairo,
intercalada pela cura da hemorroísa (Mc 5,21-43).
No XXV Domingo do Tempo Comum
do ano B lemos Sb 2,12.17-20 [8], uma versão mais breve da perícope já
proclamada na Quaresma, na qual vemos a trama dos iníquos contra o justo. Este
tema aparece no Evangelho através do segundo anúncio da Paixão, seguido da
discussão dos discípulos sobre quem é o maior (Mc 9,30-37).
Enfim, o XXVIII Domingo do Tempo Comum do ano B traz-nos o texto de Sb
7,7-11 [9], um trecho da busca de Salomão pela sabedoria, durante a qual ele
afirma que prefere a sabedoria a todas as riquezas. A leitura estabelece uma
antítese com a história do homem que não é capaz de deixar suas riquezas para
seguir Jesus (Mc 10,17-30).
Concluindo o ciclo trienal dos
domingos, no Ano C, o ano do Evangelho de
Lucas, o Livro da Sabedoria
aparece também três vezes, nos Domingos XIX, XXIII e XXXI.
Começando com o XIX Domingo do Tempo Comum do ano C,
ouviremos na 1ª leitura Sb 18,6-9 [10], um trecho da sexta das antíteses do
êxodo: para os ímpios egípcios, foi uma noite trágica, enquanto que para o povo
de Deus foi a noite da libertação. A antítese complementa a exortação de Jesus
à vigilância no Evangelho, representada pela vinda do senhor no meio da noite
(Lc 12,32-48).
O êxodo: tema importante na 3ª sessão de Sabedoria (Frédéric Schopin - séc. XIX) |
Passando ao XXIII Domingo do Tempo Comum do ano C, refletimos sobre o texto de
Sb 9,13-18 [11], a conclusão da oração de Salomão pedindo a sabedoria. Neste
trecho este afirma que apenas com nosso esforço não conseguiremos alcançar a
sabedoria: por isso, Jesus exorta os discípulos a abandonar tudo e segui-lo (Lc
14,25-33).
Por fim, no XXXI Domingo do Tempo Comum do ano C lemos Sb 11,23–12,2 [12], um
elogio à misericórdia de Deus para com aqueles que se arrependem. Este texto
complementa o encontro de Jesus com Zaqueu e a sua conversão (Lc 19,1-10).
Prosseguimos nossa análise pelo Próprio dos Santos, com duas leituras do
nosso livro:
Primeiramente, na Memória de São Maximiliano Maria Kolbe (14
de agosto) é proposta como leitura adequada Sb 3,1-9 [13], perícope que proclama
o destino escatológico dos justos, sendo utilizada, como veremos, também nas
celebrações dos fiéis defuntos e dos mártires.
Na Comemoração de Todos os Fiéis Defuntos (02 de novembro), há duas
perícopes do Livro da Sabedoria que
podem ser escolhidas ad libitum (à
escolha) entre as opções para a 1ª leitura [14]:
- Sb 3,1-9: trecho que, como
afirmamos acima, narra o destino final dos justos;
- Sb 4,7-15: a morte do justo,
ainda que prematura, não é uma desgraça.
Vale lembrar que as leituras desse
dia são previstas também para as Exéquias.
Após o Próprio, passando aos Comuns
dos Santos, igualmente com várias opções de leituras ad libitum, isto é, à escolha, dentre as quais dois textos de Sb:
Comum dos Mártires: já citado texto de Sb 3,1-9 [15] sobre o
destino dos justos;
Comum dos Doutores da Igreja: Sb 7,7-10.15-16 [16], parte do elogio
de Salomão à sabedoria. Como o rei Salomão, os Doutores da Igreja (grupo
formado atualmente por 36 santos e santas) se destacaram por sua busca da
sabedoria.
Por fim, dentre as Missas votivas, celebradas por devoção,
há uma leitura de Sabedoria à escolha
na Missa votiva da Santa Cruz: Sb
2,1a.12-22 [17]. Trata-se da trama dos iníquos contra o justo, como vimos acima
na Quaresma e no Tempo Comum.
Jesus conduz os justos do Antigo Testamento para o céu (cf. Sb 3,1-9) |
Concluímos assim a primeira parte do
nosso estudo sobre a leitura litúrgica do Livro
da Sabedoria, texto que “encerra com chave-de-ouro” o Antigo Testamento. Na
segunda parte dessa pesquisa continuaremos a análise sob o critério da
composição harmônica com os demais sacramentos, os sacramentais e a Liturgia
das Horas.
Atualizações:
Para acessar a segunda parte dessa pesquisa, publicada no dia 08 de agosto, clique aqui.
Para acessar a terceira parte dessa pesquisa, publicada no dia 15 de agosto, clique aqui.
Notas:
[1] ASENSIO, Víctor Morla. Livros sapienciais e outros escritos. 3ª
ed. São Paulo: Ave Maria, 2008, pp. 227-250. Coleção: Introdução ao Estudo da Bíblia, v. 5.
LEGRAND, Thierry. Sabedoria de Salomão. in: RÖMER, Thomas;
MACCHI, Jean-Daniel; NIHAN, Christophe [org.]. Antigo Testamento: História, Escritura e Teologia. 2ª ed. São
Paulo: Loyola, 2015, pp. 787-796.
[2] ALDAZÁBAL, José. A Mesa
da Palavra I: Elenco das Leituras da Missa - Texto e Comentário. São Paulo:
Paulinas, 2007, p. 76.
[3] LECIONÁRIO II: Semanal.
Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1995,
p. 230.
[4] cf. ALDAZÁBAL, op. cit., pp. 103-104.
[5] LECIONÁRIO I: Dominical A-B-C. Tradução portuguesa da
2ª edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1994, p. 296.
[6] ibid., p. 351.
[7] ibid., p. 605.
[8] ibid., p. 649.
[9] ibid., p. 659.
[10] ibid., p. 946.
[11] ibid., p. 960.
[12] ibid., p. 990.
[13] LECIONÁRIO III: Para as Missas
dos Santos, dos Comuns, para Diversas Necessidades e Votivas. Tradução
portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1997, p. 153.
[14] LECIONÁRIO I, pp. 1052-1053.
[15] LECIONÁRIO III, p. 280.
[16] ibid., p. 330.
[17] ibid., p. 734.
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