“A celebração de hoje
é para nós o começo de todas as festas” (Santo André de Creta).
Iniciamos nossa série de postagens sobre os ícones das festas litúrgicas justamente com a primeira celebração do Ano Litúrgico Bizantino: a Natividade da Santíssima Mãe de Deus, a Virgem Maria, comemorada tanto no Oriente como no Ocidente no dia 08 de setembro [1].
1. História e significado da
festa
As tradições sobre o nascimento da Theotokos (Mãe de Deus) foram compiladas no Protoevangelho de Tiago, texto apócrifo escrito em grego na metade
do século II, atribuído a Tiago, o “Irmão do Senhor” [2].
Segundo a tradição, o local do nascimento de Maria, isto é,
a casa de Joaquim e Ana, encontrava-se junto à Piscina de Betesda, ao norte da
cidade de Jerusalém. Nesse local, com efeito, seria construída uma igreja em
honra da Virgem em meados do século V (a atual igreja de Santa Ana), dedicada
no dia 08 de setembro, razão pela qual essa data foi escolhida para a
celebração da Natividade de Maria.
Ícone da Natividade da Mãe de Deus (sé. XV) |
A partir de Jerusalém, a Festa da Natividade de Nossa
Senhora logo se difundiu entre as demais igrejas orientais e, a partir do
século VII, também entre as igrejas ocidentais. No Ocidente, porém, à luz das
discussões sobre a Imaculada Conceição, a celebração do dia 08 de dezembro
acabou ganhando mais destaque.
Para saber mais, confira nossa postagem sobre a história da Festa da Natividade de Maria.
No Rito Bizantino, como afirmamos anteriormente, a
Natividade da Mãe de Deus é a primeira das 12 Grandes Festas do Ano Litúrgico,
enquanto sua Dormição (15 de agosto) é a última, de modo que a vida de Maria
serve de “moldura” ao mistério de Cristo: ela o precede como Mãe e o segue como
discípula.
São apenas três os nascimentos celebrados pela Igreja: o
Nascimento de nosso Senhor Jesus Cristo (25 de dezembro), o nascimento de São
João Batista, Precursor do Senhor (24 de junho), e o nascimento de Maria. Os dois últimos estão diretamente relacionados ao nascimento do Filho de
Deus, no qual “o Verbo se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1,14).
Enquanto João Batista é o último dos profetas, a Virgem Maria, a “nova Eva”, é de certa forma a última das “matriarcas” do Antigo Testamento. Através dela, com sua maternidade, e de José, com sua adoção, o Filho de Deus se torna também “filho de Davi, filho de Abraão” (Mt 1,1).
Assim, enquanto Santo André de Creta (†740) coloca a Natividade
de Maria como “o começo de todas as festas”, São João Damasceno (†749) vai mais
além e proclama: “Hoje é o começo da salvação do mundo!”.
A Natividade de Maria é, pois, a aurora da nossa salvação,
pois precede o nascimento de Jesus Cristo, sol de justiça (Lc 1,78), como canta o tropárion
da festa, que também é entoado na Liturgia das Horas do Rito Romano, como
antífona do cântico evangélico das Laudes, o Benedictus:
“Tua
natividade, ó Mãe de Deus, anunciou a alegria ao mundo inteiro; pois de ti nasceu
o Sol da justiça, o Cristo nosso Deus, o qual, abolindo a maldição, nos deu a
bênção, e destruindo a morte, deu-nos a vida eterna” [3].
2. O ícone
O ícone da Natividade de Maria, inspirado sobretudo no
relato do Protoevangelho de Tiago,
traça diversos paralelos com o ícone do Natal do Senhor, tanto sintéticos
(destacando suas semelhanças) quanto antitéticos (sublinhando suas diferenças).
Ícone da Natividade da Mãe de Deus (séc. XVII) |
a) O ambiente:
Enquanto o ícone do Natal do Senhor é um grande louvor
cósmico à Encarnação, com os anjos, homens e animais celebrando o nascimento do
Salvador, o ícone da Natividade de Maria retrata uma cena familiar, doméstica,
íntima.
A Igreja, com efeito, não cansa de destacar o valor do
matrimônio e da família, “célula primeira e vital da sociedade” (Concílio Vaticano
II, Decreto Apostolicam actuositatem,
n. 11; cf. João Paulo II, Exortação
Apostólica Familiaris consortio).
O ambiente do ícone é, pois, a casa de Joaquim e Ana, particularmente
o quarto do casal, remetendo-nos ao ventre de Maria como “câmara nupcial” da
união entre Deus e a humanidade, como canta o kondákion da vigília da festa, no dia 07 de setembro:
“Neste dia, Maria, Virgem e Mãe de Deus, intransponível
câmara nupcial do esposo celeste, nasce de uma mãe estéril, segundo a vontade
de Deus, para ser portadora do Verbo de Deus. Para isto foi escolhida para ser
a porta da divindade e Mãe da verdadeira Vida” [4].
Note-se a referência ao simbolismo da porta, já presente no
relato do Protoevangelho no encontro de Joaquim e Ana na Porta Dourada de Jerusalém.
Maria é, pois, “a porta oriental do Templo”, pela qual apenas Cristo passará, segundo
a profecia de Ezequiel (Ez 44,1-3).
Em algumas versões do ícone, ao fundo da cena, encontramos um
véu unindo duas torres que integram a casa: este é um símbolo recorrente nos ícones bizantinos, representando o mistério do amor de
Deus que a todos envolve e que une o Antigo Testamento ao Novo, a primeira à “nova e eterna aliança”
que começará a realizar-se no seio de Maria.
b) Ana e as mulheres:
O centro do ícone geralmente é ocupado por Ana. Ela é
representada deitada em uma cama, logo após de dar à luz a sua filha. Suas
vestes ora possuem as mesmas cores utilizadas nos ícones da Virgem Maria
(túnica azul sob um manto vermelho), ora são mais monocromáticas.
Junto a Ana estão algumas mulheres, comumente em número de
três, identificadas como servas por suas túnicas sem mangas, simbolizando sua
prontidão para o serviço.
Enquanto uma das servas sustenta Ana, cansada pelo esforço
do parto, e outra agita um leque para refrescar o ambiente, outras servas oferecem
alimento àquela que acabou de dar à luz, geralmente um prato de ovos e um
cálice de vinho.
A oferta do alimento indica que o parto ocorreu de maneira
natural, de modo que a mãe necessita recuperar suas forças. O ovo, além disso,
é um símbolo do dom da fecundidade: segundo o Protoevangelho, Ana era estéril, remetendo-nos aqui a várias
personagens do Antigo Testamento, como Sara (Gn 16–18) ou Ana, mãe do profeta Samuel (1Sm 1–2).
Celebrando o fim da esterilidade de Ana, canta o tropárion da Vigília da festa:
“Da raiz de Jessé e do sangue de Davi, nasceu hoje para nós
a divina Menina. Por isso o Universo regozija e renova-se. Alegrai-vos
juntamente, céus e terra, louvai-a, povos das nações. Joaquim rejubila e Ana
está em festa e exclama: Aquela que era estéril deu à luz a Mãe de Deus, que dá
alimento à nossa vida” [5].
Em algumas versões aparece na parte inferior do ícone um
jardim, com uma fonte, plantas e aves, elementos que representam o lamento de
Ana por sua esterilidade no Protoevangelho:
“Ai de mim! A quem me assemelho eu? Não às aves do céu, pois
elas são fecundas em tua presença, Senhor. (...) Ai de mim! A quem me posso
comparar? Nem sequer a estas águas, porque até elas são férteis diante de ti,
Senhor. Ai de mim! A quem me igualo eu? Nem sequer a esta terra, pois ela
também é fecunda, dando seus frutos na ocasião própria, e bendiz a ti, Senhor”
[6].
As plantas e animais nos remetem à primeira criação (Gn 1–2), profetizando a “nova criação”
que terá início no ventre de Maria, enquanto a fonte alude à própria Piscina de
Betesda (palavra que significa “casa da misericórdia” ou “casa da graça”), a
qual se tornava “fecunda” graças à intervenção de um anjo e junto à qual Jesus
cura um enfermo (Jo 5).
No ícone da Anunciação, com efeito,
aparece uma fonte ou poço: porém, este está vazio, à espera de ser preenchido,
através do “sim” de Maria, pela água viva dada ao mundo por Cristo (Jo 4).
d) Joaquim:
Emulando o ícone do Natal do Senhor, no qual a presença de
José é bastante discreta, Joaquim geralmente aparece distante, “espiando” a
cena a partir de uma janela, em uma atitude de humilde ação de graças a Deus
pelo dom do nascimento de sua filha.
Porém, enquanto no ícone do Natal o lugar secundário de José
indica que este não tomou parte na concepção do Verbo, aqui a distância tomada
por Joaquim serve a uma questão de pudor, afastando-o do local do parto, espaço
reservado às mulheres.
Ícone da Natividade da Mãe de Deus (séc. XVII) Note-se o jardim no canto inferior direito |
Em algumas versões do ícone, em contrapartida, uma vez que
Ana já deu à luz sua filha, Joaquim aparece ao seu lado, apoiando-a, indicando assim
que ele é verdadeiramente pai da menina. Com efeito, a única concepção virginal
é a de Jesus, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, concebido pelo Espírito Santo
no seio da Virgem Maria (cf. Lc 1,34-35); Maria, totalmente humana,
foi concebida de maneira natural, através do ato sexual entre Joaquim e Ana.
Nos cantos de alguns ícones dessa festa podem aparecer
também cenas da história de Joaquim e Ana:
- Joaquim em oração no deserto (símbolo do êxodo e da
peregrinação do povo de Israel) sendo visitado por um anjo, o qual anuncia que
suas preces foram ouvidas e que sua esposa conceberá;
- o encontro dos esposos na Porta Dourada, como mencionamos
anteriormente;
- Joaquim e Ana sentados em uma cadeira com Maria
ao colo, emulando as representações da Sagrada Família de Jesus, Maria e José.
e) Maria:
Por fim, a Menina aparece na parte inferior do ícone,
geralmente dividido em duas cenas:
- na primeira cena, uma serva, identificada como a parteira,
segura a recém-nascida no colo, enquanto outra serva prepara o banho.
O tema do banho, mais do que um sinal de purificação, é aqui
uma afirmação da humanidade de Maria: na Bíblia, ser mergulhado na água é uma
imagem da morte. Também no ícone do Natal do Senhor aparece o banho, indicando
que Ele assumiu a nossa mortalidade (Fl
2,6-8).
- na segunda cena a menina é embalada em um berço por uma ou
duas servas. Trata-se de um paralelo antitético com o nascimento do Filho,
reclinado em uma manjedoura, pois “não havia lugar para eles” (Lc 2,7; cf. Mt 8,20; Lc 9,58).
“Pela tua santa Natividade, ó Pura, Joaquim e Ana foram
libertos do opróbrio da esterilidade, e Adão e Eva da corrupção da morte. Teu
povo, salvo da escravidão do pecado, te festeja, exclamando: A estéril dá à luz
a Mãe de Deus que alimenta nossa vida!” (Kondákion
da festa) [7].
Notas:
[1] No calendário juliano, utilizado pela maioria das Igrejas Orientais (tanto Católicas quanto Ortodoxas), com 13 dias de diferença em relação ao gregoriano, o dia 08 de setembro corresponde a 21 de setembro no calendário gregoriano.
[2] cf. PROENÇA,
Eduardo de [org.]. Apócrifos e
pseudo-epígrafos da Bíblia, vol. I. São Paulo: Fonte Editorial, 2005, pp. 519-530.
[3] SPERANDIO, João Manoel; TAMANINI, Paulo Augusto [org.]. Liturgikon: Próprio das Festas no Rito Bizantino.
Teresina: Editora da Universidade Federal do Piauí, 2015, p. 06.
[4] idem. Pequeno Menologion: Calendário Bizantino.
Teresina: Editora da Universidade Federal do Piauí, 2015, p. 115.
[5] ibid., pp.
115-116.
[6] PROENÇA, op. cit.,
p. 520.
[7] SPERANDIO; TAMANINI, Liturgikon, p. 06.
Referências:
DONADEO, Madre Maria. O
Ano Litúrgico Bizantino. São Paulo: Ave Maria, 1998, pp. 34-38.
PASSARELLI, Gaetano. O
ícone da Natividade da Mãe de Deus. São Paulo: Ave Maria, 1997.
Coleção: Iconostásio, 20.
Reader's Guide to Orthodox Icons: The Nativity of the Theotokos Icon. September 8, 2011.
Postagem publicada originalmente em 08 de setembro de 2019. Revista e ampliada em 02 de setembro de 2022.
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