“E de novo há de vir, em sua glória, para julgar os vivos e os mortos” (Símbolo Niceno-Constantinopolitano).
Na última semana do Ano
Litúrgico, entre a Solenidade de Cristo Rei e o 1º Domingo do Advento, a Igreja
nos propõe como hino facultativo para a Liturgia das Horas o célebre Dies irae (Dia de ira), grande composição
poética sobre o juízo final.
Juízo final, detalhe (Michelangelo - Capela Sistina) |
Breve história do Dies irae
O Dies irae costuma ser atribuído ao franciscano italiano Tomás de
Celano (†1265), famoso biógrafo de São Francisco de Assis (†1226). Porém, o grande
historiador da Liturgia Mario Righetti (†1975), indica a existência de testemunhos
do hino já no século XII.
Assim, Tomás de Celano seria
não o autor, mas o propagador do hino. Com efeito, a composição popularizou-se através
dos Missais franciscanos do século XIII, até ser acolhida oficialmente na
Liturgia romana no século XVI.
O Dies irae está inspirado em uma composição do século XI, o
responsório Libera me do Ofício dos
Defuntos. Seu incipit, isto é, sua
primeira frase, remete à profecia de Sofonias: “Esse será o dia da ira, dia de
tribulação e angústia...” (Sf 1,15).
Confira nossa postagem sobre a leitura do Livro de Sofonias nas celebrações litúrgicas.
A ira de Deus,
paradoxalmente, “é uma expressão do seu amor, uma forma de recordar aos homens
que suas ações têm consequências. Faz parte da pedagogia de Deus corrigir o
homem, enquanto se encontra neste mundo, a fim de que se salve” [1].
Os historiadores da
Liturgia, tanto o já citado Mário Righetti como o Beato Cardeal Alfredo
Ildefonso Schuster (†1954), indicam que o Dies
irae era entoado inicialmente no 1º Domingo do Advento, quando se
proclamava a profecia do juízo final no Evangelho (Lc 21,25-33) [2].
Originalmente o poema era
composto por 17 estrofes de três versos cada, com a mesma métrica e com rimas
ternárias (A-A-A). Posteriormente foi acrescentada a 18ª estrofe (Lacrimósa...), com quatro versos e rimas
binárias (A-A, B-B).
Somou-se por fim a 19ª estrofe (Pie Iesu Dómine, dona eis réquiem), uma antífona de dois versos que reforça a associação do poema com as celebrações pelos fiéis defuntos.
Com efeito, associado
originalmente ao Advento, o hino canta o juízo universal, a parusia, a última vinda de Cristo “para
julgar os vivos e os mortos”. O “eu lírico”, pois, pede ser julgado com
misericórdia antes desse “dia de ira”, aproximando a composição dos salmos de
súplica individual.
Com o tempo, porém, o
caráter “individual” da composição foi sendo cada vez mais acentuado e, após a
inserção da 19ª estrofe, passou a ser considerado como uma súplica pelos
defuntos, associado ao “juízo particular”.
Tal associação foi
ratificada pela reforma litúrgica do Concílio de Trento (1545-1563). No Missale Romanum promulgado por São Pio V
(†1572) em 1570, o Dies irae
tornou-se a sequência das Missas dos defuntos, também conhecidas como “Missas de Réquiem” à luz da sua antífona
de entrada:
“Réquiem aetérnam dona eis, Dómine:
et lux perpétua lúceat eis”;
“Dai-lhes, Senhor, o descanso eterno, e a luz
perpétua os ilumine” (cf. 4Esd
2,34-35).
As sequências, por sua vez,
são composições poéticas entoadas antes da aclamação do Evangelho na Missa, que
se tornaram muito populares no Rito Romano a partir dos séculos IX e X.
O Concílio de Trento, porém,
as reduziu a apenas quatro [3], prescrevendo o Dies irae como Sequentia pro
defunctis: na Comemoração de Todos os Fiéis Defuntos (02 de novembro), na
Missa exequial (popularmente dita “Missa de corpo presente”), e,
facultativamente, nas Missas no aniversário de falecimento.
Juízo final (Michelangelo - Capela Sistina) |
A reforma litúrgica do
Concílio Vaticano II, atenta à orientação da Constituição Sacrosanctum Concilium de destacar “o sentido pascal da morte
cristã” (n. 81), suprimiu o Dies irae
como sequência das Missas dos defuntos [4], transferindo-o como hino à escolha
da Liturgia das Horas da última semana do Tempo Comum.
Assim, o hino recuperou seu
alcance escatológico (do grego eschaton,
relacionado ao “fim último”, à consumação de todas as coisas), tornando-se um
“texto cardeal” (do latim cardo,
dobradiça da porta) entre o final do Tempo Comum e o início do Tempo do
Advento, ambos fortemente marcados pela expectativa da última vinda de Cristo:
“O Espírito e a Esposa dizem: ‘Vem!’ - ‘Amém! Vem, Senhor Jesus!’” (Ap 22,17.20).
As versões musicais do Dies irae
Além da melodia gregoriana
do século XIII, até hoje utilizada em composições musicais associadas à “nossa
irmã, a morte corporal, da qual nenhum homem vivente pode escapar” (São
Francisco de Assis, Cântico das criaturas), o Dies irae recebeu centenas de interpretações musicais como parte das
“Missas de Réquiem”.
As mais famosas, provavelmente, são o Réquiem de Wolfgang Amadeus Mozart (†1791) e o Réquiem de Giuseppe Verdi (†1901).
Nessas composições o Dies irae costuma ser dividido em seis partes: Dies irae (estrofes 1-2); Tuba
mirum (estrofes 3-7); Rex treméndae
(estrofe 8); Recordáre (estrofes 9-15);
Confutátis (estrofes 16-17); Lacrimósa (estrofes 18-19).
Na Liturgia das Horas, por sua vez, o nosso hino é
dividido em três partes de seis estrofes:
Ofício das Leituras:
estrofes 1-6 (Dies irae...);
Laudes: estrofes 7-12 (Quid sum miser...);
Vésperas: estrofes 13-18 (Peccatrícem qui solvísti...).
Em cada hora acrescenta-se uma doxologia final,
como é costume nos hinos da Liturgia das Horas (O tu, Deus maiestátis...). Essas doxologias são atestadas
já em alguns manuscritos da Idade Média, que omitiam as estrofes 18-19 e
propunham uma conclusão de três versos rimados, retomando a métrica das
estrofes 1-17.
Note-se que a versão da Liturgia das Horas omitiu
a 19ª estrofe (Pie Iesu), a qual
porém está presente na tradução para o português do Brasil. A tradução
brasileira manteve as rimas nos primeiros dois versos de cada estrofe, sendo o
3º verso sem rima (A-A, B).
A seguir publicamos, pois, o texto do Dies irae tanto no original em latim
quanto em sua tradução brasileira, conforme constam na Liturgia das Horas. Ao
texto em português acrescentaremos algumas breves notas sobre a teologia do
poema.
As trombetas que anunciam o juízo final (Tuba mírum...) |
Hino: Dies irae
1. Dies irae, dies illa
solvet saeclum in favílla,
teste
David cum Sibylla.
2.
Quantus tremor est futúrus,
quando
iudex est ventúrus,
cuncta
stricte discussúrus!
3.
Tuba, mirum spargens sonum
per
sepúlcra regiónum,
coget omnes ante thronum.
4. Mors stupébit, et natúra,
cum
resúrget creatúra,
iudicánti
responsúra.
5. Liber scriptus proferétur,
in quo totum continétur,
unde
mundus iudicétur.
6.
Iudex ergo cum sedébit,
quicquid latet, apparébit:
nil inúltum remanébit.
7. Quid sum miser tune dictúrus,
quem
patrónum rogatúrus,
cum
vix iustus sit secúrus?
8.
Rex treméndae maiestátis,
qui
salvándos salvas gratis,
salva
me, fons pietátis.
9.
Recordáre, Iesu pie,
quod
sum causa tuae viae,
ne
me perdas illa die.
10.
Quaerens me sedísti lassus,
redemísti
crucem passus;
tantus labor non sit cassus.
11.
Iuste Iudex ultiónis,
donum
fac remissiónis
ante
diem ratiónis.
12.
Ingemísco tamquam réus,
culpa
rubet vultus meus;
supplicánti
parce, Deus.
13.
Peccatrícem qui solvísti
et
latrónem exaudísti,
mihi
quoque spem dedísti.
14.
Preces meae non sunt dignae:
sed
tu, bonus, fac benígne,
ne
perénni cremer igne.
15.
Inter oves locum praesta
et
ab haedis me sequéstra,
státuens
in parte dextra.
16.
Confutátis maledíctis,
flammis
ácribus addictis,
voca
me cum benedíctis.
17.
Oro supplex et acclínis,
cor
contrítum quasi cinis:
gere
curam mei finis.
18.
Lacrimósa dies illa,
qua
resúrget ex favílla
iudicándus
homo reus:
huic
ergo parce, Deus.
[19.
Pie Iesu Dómine,
dona
eis réquiem.]
Doxologia:
O tu, Deus maiestátis,
alme candor Trinitátis,
nos coniúnge cum beátis.
Amen [5].
A ressurreição da carne |
Hino: Dia de ira
1. Dia de ira, aquele dia,
será tudo cinza fria:
diz Davi, diz a Sibila [6].
2. Que temor será causado,
quando o Juiz tiver chegado,
para tudo examinar!
3. Correrão todos ao trono
quando, em meio ao eterno sono,
a trombeta ressoar [7].
4. Morte e mundo se espantam,
criaturas se levantam
e ao Juiz responderão.
5. Vai um livro ser trazido,
no qual tudo está contido,
onde o mundo está julgado.
6. Quando o Cristo se sentar,
o escondido vai brilhar,
nada vai ficar impune.
7. Eu, tão pobre, que farei?
Que patrono chamarei?
Nem o justo está seguro.
8. Rei tremendo em majestade,
que salvais só por piedade,
me salvai, fonte de graça.
9. Recordai, ó bom Jesus,
que por mim fostes à Cruz,
nesse dia me guardai.
10. A buscar-me, vos cansastes,
pela cruz me resgatastes,
tanta dor não seja vã.
11. Juiz justo no castigo,
sede bom para comigo,
perdoai-me nesse dia.
12. Pela culpa, se enrubesce
o meu rosto; ouvi a prece
e poupai-me, justo Deus.
13. A Maria perdoando
e ao ladrão, na cruz, salvando,
vós me destes esperança [8].
14. Meu pedido não é digno,
mas, Senhor, vós sois benigno
não me queime o fogo eterno.
15. No rebanho dai-me abrigo,
arrancai-me do inimigo,
colocai-me à vossa destra.
16. Quando forem os malditos
para o fogo eterno, aflitos,
entre os vossos acolhei-me [9].
17. Dum espírito contrito
escutai, Senhor, o grito:
tomai conta do meu fim.
18. Lacrimoso aquele dia,
quando em meio à cinza fria
levantar-se o homem réu.
19. Libertai-o, Deus do céu!
Bom Pastor, Jesus piedoso,
dai-lhe prêmio, paz, repouso.
Doxologia:
Vós, ó Deus de majestade,
vivo esplendor da Trindade,
entre os eleitos nos contai [10].
O desespero de um condenado |
Notas:
[1] Padre Paulo Ricardo de
Azevedo Júnior: Dies Irae: Uma meditação sobre o fim dos tempos. 02 de dezembro de 2013.
[2] Atualmente lê-se uma
versão ligeiramente distinta desse texto no Ano C (Lc 21,25-28.34-36), enquanto nos outros anos lê-se Mt 24,37-44 (Ano A) e Mc
13,33-37 (Ano B).
[3] Além do Dies irae foram conservadas apenas as
sequências Victimae paschali laudes
(Domingo de Páscoa), Veni, Sancte Spiritus (Pentecostes) e Lauda Sion
(Corpus Christi). Em 1727 seria
acrescentada a sequência Stabat Mater dolorosa (Memória de Nossa Senhora das Dores).
[4] cf. BUGNINI, Annibale. A
reforma litúrgica: 1948-1975. São Paulo: Paulinas; Paulus; Loyola, 2018, p.
632.
[5] OFÍCIO DIVINO. Liturgia das Horas segundo o Rito Romano.
Tradução para o Brasil da segunda edição típica. São Paulo: Paulus, 1999, v.
IV, pp. 1866-1868.
[6] Davi aqui representa o
testemunho do Antigo Testamento sobre o juízo final (cf., por exemplo, Sl
95,13). Sua presença corrobora a associação do hino com os salmos de súplica
individual, uma vez que Davi, o rei-poeta, é o “patrono” dos Salmos.
As Sibilas, por sua vez,
eram profetisas do mundo greco-romano, cuja presença aqui recorda que todos os
povos são chamados à salvação (como os Magos do Oriente em Mt 2,1-12). Atribui-se particularmente à Sibila Eritreia (da cidade
de Eritras, na Jônia, região da atual Turquia) uma profecia sobre o fim dos
tempos, atestada por Santo Agostinho em sua obra Civitas Dei (A Cidade de Deus,
Livro 18, capítulo 23).
[7] A trombeta que convoca
vivos e mortos ao juízo é citada diversas vezes no Novo Testamento (Mt 24,31; 1Cor 15,52; 1Ts 4,16-17; Ap 8–11). É um símbolo paradoxal,
considerando que na Antiguidade a trombeta geralmente era feita com o chifre de
um animal. Da morte do animal, que deu vida às pessoas com a sua carne em
alimento, deriva o som que anuncia a “ressurreição da carne”. Mesmo as
trombetas de metal conservam o simbolismo da morte-ressurreição, uma vez que o
metal é extraído da terra, como que “saindo da sepultura”, e adquire nova forma
pelo trabalho humano.
[8] A reforma litúrgica
alterou o 1º verso da 13ª estrofe de “Qui
Maríam absolvísti” para “Peccatrícem
qui solvísti”, corrigindo um erro de tradução que perdura desde a Idade
Média, o qual identificava erroneamente a mulher adúltera anônima perdoada por
Jesus em Jo 8,1-11 com Maria Madalena.
A tradução brasileira, porém, conserva erroneamente o “Maria”, que deveria ser
traduzido por “pecadora”.
Para saber mais, confira nossa postagem sobre a história do culto a Santa Maria Madalena.
[9] Particularmente as
estrofes 15-16 remetem-nos à parábola do juízo final de Mt 25,31-46, que após a reforma litúrgica do Concílio Vaticano II é
lida na Solenidade de Cristo Rei do Ano A, corroborando a inserção do Dies irae na 34ª semana do Tempo Comum.
[10] OFÍCIO DIVINO, v. IV,
pp. 511-513.
Referências:
AROCENA, Félix. Los himnos de la Liturgia de las Horas. Madrid:
Ediciones Palabra, 1992, pp. 105-109.
HENRY, Hugh. Dies Irae. in: The Catholic Encyclopedia.
vol. 4, 1908. Disponível em: New Advent.
RIGHETTI, Mario. Historia de la Liturgia, v. I: Introducción
general; El año litúrgico; El Breviario. Madrid: BAC, 1955, pp. 986-987.
SCHUSTER, Cardeal Alfredo
Ildefonso. Liber Sacramentorum, vol. IX:
I Santi nel Mistero della Redenzione (Le Feste dei Santi dalla Dedicazione di
San Michele all’Avvento). Torino-Roma: Marietti, 1932, pp. 90-93.
Postagem publicada
originalmente em 26 de novembro de 2012. Revista e ampliada em 08 de novembro
de 2021.
Muito obrigada pela publicação e explicações. Esse hino me tocou tanto que eu estava a procura da letra e tradução e seu significado! Deus te abençoe!
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