segunda-feira, 26 de novembro de 2012

O hino Dies irae

“E de novo há de vir, em sua glória, para julgar os vivos e os mortos” (Símbolo Niceno-Constantinopolitano).

Na última semana do Ano Litúrgico, entre a Solenidade de Cristo Rei e o 1º Domingo do Advento, a Igreja nos propõe como hino facultativo para a Liturgia das Horas o célebre Dies irae (Dia de ira), grande composição poética sobre o juízo final.

Juízo final, detalhe (Michelangelo - Capela Sistina)

Breve história do Dies irae

O Dies irae costuma ser atribuído ao franciscano italiano Tomás de Celano (†1265), famoso biógrafo de São Francisco de Assis (†1226). Porém, o grande historiador da Liturgia Mario Righetti (†1975), indica a existência de testemunhos do hino já no século XII.

Assim, Tomás de Celano seria não o autor, mas o propagador do hino. Com efeito, a composição popularizou-se através dos Missais franciscanos do século XIII, até ser acolhida oficialmente na Liturgia romana no século XVI.

O Dies irae está inspirado em uma composição do século XI, o responsório Libera me do Ofício dos Defuntos. Seu incipit, isto é, sua primeira frase, remete à profecia de Sofonias: “Esse será o dia da ira, dia de tribulação e angústia...” (Sf 1,15).


A ira de Deus, paradoxalmente, “é uma expressão do seu amor, uma forma de recordar aos homens que suas ações têm consequências. Faz parte da pedagogia de Deus corrigir o homem, enquanto se encontra neste mundo, a fim de que se salve” [1].

Os historiadores da Liturgia, tanto o já citado Mário Righetti como o Beato Cardeal Alfredo Ildefonso Schuster (†1954), indicam que o Dies irae era entoado inicialmente no 1º Domingo do Advento, quando se proclamava a profecia do juízo final no Evangelho (Lc 21,25-33) [2].

Originalmente o poema era composto por 17 estrofes de três versos cada, com a mesma métrica e com rimas ternárias (A-A-A). Posteriormente foi acrescentada a 18ª estrofe (Lacrimósa...), com quatro versos e rimas binárias (A-A, B-B).

Somou-se por fim a 19ª estrofe (Pie Iesu Dómine, dona eis réquiem), uma antífona de dois versos que reforça a associação do poema com as celebrações pelos fiéis defuntos.

Com efeito, associado originalmente ao Advento, o hino canta o juízo universal, a parusia, a última vinda de Cristo “para julgar os vivos e os mortos”. O “eu lírico”, pois, pede ser julgado com misericórdia antes desse “dia de ira”, aproximando a composição dos salmos de súplica individual.

Com o tempo, porém, o caráter “individual” da composição foi sendo cada vez mais acentuado e, após a inserção da 19ª estrofe, passou a ser considerado como uma súplica pelos defuntos, associado ao “juízo particular”.

Tal associação foi ratificada pela reforma litúrgica do Concílio de Trento (1545-1563). No Missale Romanum promulgado por São Pio V (†1572) em 1570, o Dies irae tornou-se a sequência das Missas dos defuntos, também conhecidas como “Missas de Réquiem” à luz da sua antífona de entrada:

Réquiem aetérnam dona eis, Dómine: et lux perpétua lúceat eis”;
“Dai-lhes, Senhor, o descanso eterno, e a luz perpétua os ilumine” (cf. 4Esd 2,34-35).

As sequências, por sua vez, são composições poéticas entoadas antes da aclamação do Evangelho na Missa, que se tornaram muito populares no Rito Romano a partir dos séculos IX e X.

O Concílio de Trento, porém, as reduziu a apenas quatro [3], prescrevendo o Dies irae como Sequentia pro defunctis: na Comemoração de Todos os Fiéis Defuntos (02 de novembro), na Missa exequial (popularmente dita “Missa de corpo presente”), e, facultativamente, nas Missas no aniversário de falecimento.

Juízo final (Michelangelo - Capela Sistina)

A reforma litúrgica do Concílio Vaticano II, atenta à orientação da Constituição Sacrosanctum Concilium de destacar “o sentido pascal da morte cristã” (n. 81), suprimiu o Dies irae como sequência das Missas dos defuntos [4], transferindo-o como hino à escolha da Liturgia das Horas da última semana do Tempo Comum.

Assim, o hino recuperou seu alcance escatológico (do grego eschaton, relacionado ao “fim último”, à consumação de todas as coisas), tornando-se um “texto cardeal” (do latim cardo, dobradiça da porta) entre o final do Tempo Comum e o início do Tempo do Advento, ambos fortemente marcados pela expectativa da última vinda de Cristo: “O Espírito e a Esposa dizem: ‘Vem!’ - ‘Amém! Vem, Senhor Jesus!’” (Ap 22,17.20).

As versões musicais do Dies irae

Além da melodia gregoriana do século XIII, até hoje utilizada em composições musicais associadas à “nossa irmã, a morte corporal, da qual nenhum homem vivente pode escapar” (São Francisco de Assis, Cântico das criaturas), o Dies irae recebeu centenas de interpretações musicais como parte das “Missas de Réquiem”.


As mais famosas, provavelmente, são o Réquiem de Wolfgang Amadeus Mozart (†1791) e o Réquiem de Giuseppe Verdi (†1901).

Nessas composições o Dies irae costuma ser dividido em seis partes: Dies irae (estrofes 1-2); Tuba mirum (estrofes 3-7); Rex treméndae (estrofe 8); Recordáre (estrofes 9-15); Confutátis (estrofes 16-17); Lacrimósa (estrofes 18-19).



Na Liturgia das Horas, por sua vez, o nosso hino é dividido em três partes de seis estrofes:
Ofício das Leituras: estrofes 1-6 (Dies irae...);
Laudes: estrofes 7-12 (Quid sum miser...);
Vésperas: estrofes 13-18 (Peccatrícem qui solvísti...).

Em cada hora acrescenta-se uma doxologia final, como é costume nos hinos da Liturgia das Horas (O tu, Deus maiestátis...). Essas doxologias são atestadas já em alguns manuscritos da Idade Média, que omitiam as estrofes 18-19 e propunham uma conclusão de três versos rimados, retomando a métrica das estrofes 1-17.

Note-se que a versão da Liturgia das Horas omitiu a 19ª estrofe (Pie Iesu), a qual porém está presente na tradução para o português do Brasil. A tradução brasileira manteve as rimas nos primeiros dois versos de cada estrofe, sendo o 3º verso sem rima (A-A, B).

A seguir publicamos, pois, o texto do Dies irae tanto no original em latim quanto em sua tradução brasileira, conforme constam na Liturgia das Horas. Ao texto em português acrescentaremos algumas breves notas sobre a teologia do poema.

As trombetas que anunciam o juízo final (Tuba mírum...)

Hino: Dies irae

1. Dies irae, dies illa
solvet saeclum in favílla,
teste David cum Sibylla.

2. Quantus tremor est futúrus,
quando iudex est ventúrus,
cuncta stricte discussúrus!

3. Tuba, mirum spargens sonum
per sepúlcra regiónum,
coget omnes ante thronum.

4. Mors stupébit, et natúra,
cum resúrget creatúra,
iudicánti responsúra.

5. Liber scriptus proferétur,
in quo totum continétur,
unde mundus iudicétur.

6. Iudex ergo cum sedébit,
quicquid latet, apparébit:
nil inúltum remanébit.

7. Quid sum miser tune dictúrus,
quem patrónum rogatúrus,
cum vix iustus sit secúrus?

8. Rex treméndae maiestátis,
qui salvándos salvas gratis,
salva me, fons pietátis.

9. Recordáre, Iesu pie,
quod sum causa tuae viae,
ne me perdas illa die.

10. Quaerens me sedísti lassus,
redemísti crucem passus;
tantus labor non sit cassus.

11. Iuste Iudex ultiónis,
donum fac remissiónis
ante diem ratiónis.

12. Ingemísco tamquam réus,
culpa rubet vultus meus;
supplicánti parce, Deus.

13. Peccatrícem qui solvísti
et latrónem exaudísti,
mihi quoque spem dedísti.

14. Preces meae non sunt dignae:
sed tu, bonus, fac benígne,
ne perénni cremer igne.

15. Inter oves locum praesta
et ab haedis me sequéstra,
státuens in parte dextra.

16. Confutátis maledíctis,
flammis ácribus addictis,
voca me cum benedíctis.

17. Oro supplex et acclínis,
cor contrítum quasi cinis:
gere curam mei finis.

18. Lacrimósa dies illa,
qua resúrget ex favílla
iudicándus homo reus:
huic ergo parce, Deus.

[19. Pie Iesu Dómine,
dona eis réquiem.]

Doxologia:

O tu, Deus maiestátis,
alme candor Trinitátis,
nos coniúnge cum beátis. Amen [5].

A ressurreição da carne

Hino: Dia de ira

1. Dia de ira, aquele dia,
será tudo cinza fria:
diz Davi, diz a Sibila [6].

2. Que temor será causado,
quando o Juiz tiver chegado,
para tudo examinar!

3. Correrão todos ao trono
quando, em meio ao eterno sono,
a trombeta ressoar [7].

4. Morte e mundo se espantam,
criaturas se levantam
e ao Juiz responderão.

5. Vai um livro ser trazido,
no qual tudo está contido,
onde o mundo está julgado.

6. Quando o Cristo se sentar,
o escondido vai brilhar,
nada vai ficar impune.

7. Eu, tão pobre, que farei?
Que patrono chamarei?
Nem o justo está seguro.

8. Rei tremendo em majestade,
que salvais só por piedade,
me salvai, fonte de graça.

9. Recordai, ó bom Jesus,
que por mim fostes à Cruz,
nesse dia me guardai.

10. A buscar-me, vos cansastes,
pela cruz me resgatastes,
tanta dor não seja vã.

11. Juiz justo no castigo,
sede bom para comigo,
perdoai-me nesse dia.

12. Pela culpa, se enrubesce
o meu rosto; ouvi a prece
e poupai-me, justo Deus.

13. A Maria perdoando
e ao ladrão, na cruz, salvando,
vós me destes esperança [8].

14. Meu pedido não é digno,
mas, Senhor, vós sois benigno
não me queime o fogo eterno.

15. No rebanho dai-me abrigo,
arrancai-me do inimigo,
colocai-me à vossa destra.

16. Quando forem os malditos
para o fogo eterno, aflitos,
entre os vossos acolhei-me [9].

17. Dum espírito contrito
escutai, Senhor, o grito:
tomai conta do meu fim.

18. Lacrimoso aquele dia,
quando em meio à cinza fria
levantar-se o homem réu.

19. Libertai-o, Deus do céu!
Bom Pastor, Jesus piedoso,
dai-lhe prêmio, paz, repouso.

Doxologia:

Vós, ó Deus de majestade,
vivo esplendor da Trindade,
entre os eleitos nos contai [10].

O desespero de um condenado

Notas:

[1] Padre Paulo Ricardo de Azevedo Júnior: Dies Irae: Uma meditação sobre o fim dos tempos. 02 de dezembro de 2013.

[2] Atualmente lê-se uma versão ligeiramente distinta desse texto no Ano C (Lc 21,25-28.34-36), enquanto nos outros anos lê-se Mt 24,37-44 (Ano A) e Mc 13,33-37 (Ano B).

[3] Além do Dies irae foram conservadas apenas as sequências Victimae paschali laudes (Domingo de Páscoa), Veni, Sancte Spiritus (Pentecostes) e Lauda Sion (Corpus Christi). Em 1727 seria acrescentada a sequência Stabat Mater dolorosa (Memória de Nossa Senhora das Dores).

[4] cf. BUGNINI, Annibale. A reforma litúrgica: 1948-1975. São Paulo: Paulinas; Paulus; Loyola, 2018, p. 632.

[5] OFÍCIO DIVINO. Liturgia das Horas segundo o Rito Romano. Tradução para o Brasil da segunda edição típica. São Paulo: Paulus, 1999, v. IV, pp. 1866-1868.

[6] Davi aqui representa o testemunho do Antigo Testamento sobre o juízo final (cf., por exemplo, Sl 95,13). Sua presença corrobora a associação do hino com os salmos de súplica individual, uma vez que Davi, o rei-poeta, é o “patrono” dos Salmos.
As Sibilas, por sua vez, eram profetisas do mundo greco-romano, cuja presença aqui recorda que todos os povos são chamados à salvação (como os Magos do Oriente em Mt 2,1-12). Atribui-se particularmente à Sibila Eritreia (da cidade de Eritras, na Jônia, região da atual Turquia) uma profecia sobre o fim dos tempos, atestada por Santo Agostinho em sua obra Civitas Dei (A Cidade de Deus, Livro 18, capítulo 23).

[7] A trombeta que convoca vivos e mortos ao juízo é citada diversas vezes no Novo Testamento (Mt 24,31; 1Cor 15,52; 1Ts 4,16-17; Ap 8–11). É um símbolo paradoxal, considerando que na Antiguidade a trombeta geralmente era feita com o chifre de um animal. Da morte do animal, que deu vida às pessoas com a sua carne em alimento, deriva o som que anuncia a “ressurreição da carne”. Mesmo as trombetas de metal conservam o simbolismo da morte-ressurreição, uma vez que o metal é extraído da terra, como que “saindo da sepultura”, e adquire nova forma pelo trabalho humano.

[8] A reforma litúrgica alterou o 1º verso da 13ª estrofe de “Qui Maríam absolvísti” para “Peccatrícem qui solvísti”, corrigindo um erro de tradução que perdura desde a Idade Média, o qual identificava erroneamente a mulher adúltera anônima perdoada por Jesus em Jo 8,1-11 com Maria Madalena. A tradução brasileira, porém, conserva erroneamente o “Maria”, que deveria ser traduzido por “pecadora”.

Para saber mais, confira nossa postagem sobre a história do culto a Santa Maria Madalena.

[9] Particularmente as estrofes 15-16 remetem-nos à parábola do juízo final de Mt 25,31-46, que após a reforma litúrgica do Concílio Vaticano II é lida na Solenidade de Cristo Rei do Ano A, corroborando a inserção do Dies irae na 34ª semana do Tempo Comum.

[10] OFÍCIO DIVINO, v. IV, pp. 511-513.


Referências:

AROCENA, Félix. Los himnos de la Liturgia de las Horas. Madrid: Ediciones Palabra, 1992, pp. 105-109.

HENRY, Hugh. Dies Irae. in: The Catholic Encyclopedia. vol. 4, 1908. Disponível em: New Advent.

RIGHETTI, Mario. Historia de la Liturgia, v. I: Introducción general; El año litúrgico; El Breviario. Madrid: BAC, 1955, pp. 986-987.

SCHUSTER, Cardeal Alfredo Ildefonso. Liber Sacramentorum, vol. IX: I Santi nel Mistero della Redenzione (Le Feste dei Santi dalla Dedicazione di San Michele all’Avvento). Torino-Roma: Marietti, 1932, pp. 90-93.

Postagem publicada originalmente em 26 de novembro de 2012. Revista e ampliada em 08 de novembro de 2021.

Um comentário:

  1. Muito obrigada pela publicação e explicações. Esse hino me tocou tanto que eu estava a procura da letra e tradução e seu significado! Deus te abençoe!

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