Prosseguindo com as Catequeses do Papa São João Paulo II sobre Deus Pai, trazemos nesta postagem suas reflexões nn. 6-7.
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Catequeses do Papa João Paulo II sobre o Creio
CREIO EM DEUS PAI
6. Deus de infinita majestade
João Paulo II - 07 de agosto de 1985
1. “Cremos que este Deus único é
tão absolutamente uno em sua essência santíssima como em todas as suas demais
perfeições: na sua onipotência, na sua ciência infinita, na sua providência, na
sua vontade e no seu amor. Ele é Aquele que é, conforme Ele próprio revelou a
Moisés (cf. Ex 3,14); Ele é Amor como
nos ensinou o Apóstolo São João (cf. 1Jo
4,8.16); de tal maneira que estes dois nomes - Ser e Amor - exprimem
inefavelmente a mesma divina essência d’Aquele que se quis manifestar a nós e
que, habitando uma luz inacessível (cf.
1Tm 6,16), está, por si mesmo, acima de todo nome, de todas as coisas e de
todas as inteligências criadas” (Paulo VI, Credo do Povo de Deus, 30 de junho de 1968).
O tetragrama sagrado: "Eu Sou Aquele que É" |
2. O Papa Paulo VI
(†1978) pronunciava estas palavras no XIX centenário do martírio dos
Santos Apóstolos Pedro e Paulo, no dia 30 de junho de 1968, durante a profissão
de fé chamada “Credo do Povo de Deus”. Ele exprime de maneira mais extensa que os
antigos Símbolos, ainda que sempre concisa e sintética, aquela verdade sobre Deus
que a Igreja professa desde o início do Símbolo: “Creio em Deus”; é o Deus que
revelou a Si mesmo, o Deus da nossa fé. O seu nome: “Eu sou Aquele
que sou”, revelado a Moisés do interior da sarça ardente aos pés do monte
Horeb, ressoa, pois, ainda no Símbolo da fé de hoje. Paulo VI une este nome - o
nome “Ser” - ao nome “Amor” (segundo a expressão da Primeira Carta de São João). Estes dois nomes expressam de modo mais
essencial a verdade sobre Deus. Voltaremos a esta questão quando, interrogando-nos sobre a essência de Deus, tentarmos
responder a pergunta: Quem é Deus?
3. Paulo VI faz referência ao nome
de Deus: “Eu sou Aquele que sou”, que se encontra no Livro do Êxodo. Seguindo a tradição doutrinal e teológica de muitos
séculos, vê nele a revelação de Deus como “Ser”: o Ser subsistente, que
exprime, na linguagem da filosofia do ser (ontologia ou metafísica) utilizada
por Santo Tomás de Aquino, a essência de Deus. Cabe acrescentar que a
interpretação estritamente linguística das palavras “Eu sou Aquele que sou” mostra
também outros significados possíveis, aos quais nos referiremos adiante. As
palavras de Paulo VI põem suficientemente em evidência que a Igreja, ao
responder à pergunta: “Quem é Deus?”, continua a partir do ser (esse),
na linha de uma tradição patrística e teológica plurissecular. Não se vê outro
modo pelo qual formular uma resposta sustentável e acessível.
Para saber mais sobre o Nome de Deus e suas interpretações, confira nossa postagem sobre a devoção ao Santíssimo Nome de Jesus.
4. A palavra com a qual Deus
revela a Si mesmo, expressando-se na “terminologia do ser”, indica uma
particular aproximação entre a linguagem da Revelação e a linguagem daquele
conhecimento humano da realidade que desde a antiguidade é qualificado como “filosofia
primeira”. A linguagem desta filosofia nos permite aproximarmo-nos de
alguma forma ao nome de Deus como “Ser”. E, todavia - como observa um dos
mais distintos representantes da escola tomista em nossos tempos, fazendo eco ao
próprio Santo Tomás de Aquino (cf. Suma
contra os gentios, I, cc. 14. 30) -, mesmo utilizando esta linguagem
podemos, no máximo, “soletrar” este Nome revelado, que exprime a Essência de
Deus (cf. Étienne Gilson, Le
thomisme, Paris, 1944, pp. 33.35.41.155-156). A linguagem humana, com
efeito, não basta para exprimir de modo adequado e exaustivo o “quem é” de Deus! Nossos conceitos e nossas
palavras a respeito de Deus servem mais para dizer o que Ele não é do que para dizer o que Ele é! (cf. Tomás de Aquino, Summa
Theologiae, I, q. 12, a. 12-13).
5. “Eu sou Aquele que sou”. O Deus
que com estas palavras responde Moisés é também “o Criador do céu e
da terra”. Antecipando aqui por um momento o que diremos nas futuras Catequeses
a respeito da verdade revelada sobre a criação, é oportuno notar que, segundo a
interpretação comum, a palavra “criar” significa “chamar ao ser do não-ser”,
isto é, do “nada”. Ser criado significa não possuir em si mesmo a fonte,
a razão da existência, mas recebê-la “de outro”. Isto é expresso sinteticamente
em latim com a frase “ens ab alio”. Aquele que cria - o Criador - possui
ao contrário a existência em si e por si mesmo (“ens a
se”).
O ser pertence à substância de
Deus: sua essência é o ser. Ele é o
Ser subsistente (Esse subsistens). Justamente por isto não pode
não existir, é o ser “necessário”. Diferentemente de Deus, que é o “ser necessário”,
os entes que recebem a existência d’Ele, isto é, as criaturas, podem não
existir: o ser não constitui a sua essência; são entes “contingentes”.
6. Estas considerações a respeito
da verdade revelada sobre a criação do mundo ajudam a compreender Deus como o “Ser”. Permitem-nos
também vincular este “Ser” com a resposta recebida por Moisés à pergunta sobre
o nome de Deus: “Eu sou Aquele que sou”. À luz destas reflexões adquirem plena
transparência também as solenes palavras ouvidas por Santa Catarina de
Sena: “Tu és o que não é, Eu sou Aquele que é” (Legenda maior, I,
10). Esta é a Essência de Deus, o nome de Deus, lido em profundidade na fé
inspirada por sua autorrevelação, confirmado à luz da verdade radical contida
no conceito de criação. Seria oportuno, quando nos referimos a Deus, escrever
com letra maiúscula aquele “Sou” e aquele “É”, reservando a letra minúscula às
criaturas. Isto seria ademais sinal de um correto modo de refletir sobre Deus
segundo as categorias do “ser”.
Enquanto “ipsum Esse Subsistens” - isto é, absoluta plenitude do Ser e
portanto de toda perfeição - Deus é completamente transcendente em
relação ao mundo. Com sua essência, com sua divindade, Ele “ultrapassa” e
“supera” infinitamente todo o criado: tanto cada criatura, inclusive a mais
perfeita, quanto o conjunto da criação, os seres visíveis e os invisíveis.
Compreende-se assim que o Deus da
nossa fé, Aquele que É, é o Deus de infinita majestade. Esta majestade é a
glória do Ser divino, a glória do nome de Deus, muitas vezes celebrada na
Sagrada Escritura:
“Ó Senhor, Senhor nosso, quão
admirável é o teu nome em toda a terra!” (Sl 8,2);
“Tu és grande e realizas
maravilhas: só Tu és Deus!” (Sl 85/86,10);
“Igual a ti, Senhor, ninguém!” (Jr 10,6).
Ante o Deus de imensa glória não
podemos senão dobrar os joelhos em atitude de humilde e alegre adoração,
repetindo com a Liturgia no canto do Te Deum: “Pleni sunt caeli et terra maiestátis glóriae tuae...
Te per orbem terrárum sancta confitétur Ecclésia: Patrem imménsae maiestátis”
- “Os céus e a terra estão plenos da majestade da tu glória... A ti a Igreja
santa, estendida por toda a terra, proclama: Pai de imensa majestade” [1].
7. O Deus “escondido”
João Paulo II - 28 de agosto de 1985
1. O Deus da nossa fé, que de modo
misterioso revelou seu nome a Moisés aos pés do monte Horeb afirmando “Eu sou Aquele
que sou”, é completamente transcendente em relação ao mundo. Ele “é
real e essencialmente distinto do mundo... e inefavelmente elevado acima de
tudo o que fora d’Ele existe ou se possa conceber” - “est re et essentia a
mundo distinctus... et super omnia, quae praeter ipsum sunt et concipi possum
ineffabiliter excelsus” (Constituição
Dei Filius, cap. 1,1-4). Assim ensina o Concílio Vaticano I, professando
a fé perene da Igreja.
De fato, ainda que a existência de
Deus seja cognoscível e demonstrável e ainda que sua essência seja de alguma forma
reconhecível no espelho da criação, como ensinou o mesmo Concílio, nenhum sinal, nenhuma imagem criada
pode desvelar ao conhecimento humano a essência de Deus como
tal. Essa ultrapassa tudo aquilo que pode ser pensado pela mente humana: Deus é
o “ineffabiliter excelsus”.
2. À pergunta: “Quem é Deus?”, se
se refere à essência de Deus, não podemos responder com uma “definição” no
sentido estrito da palavra. A essência de Deus - isto é, a divindade - está além
de todas as categorias de gênero e espécie que nós utilizamos para nossas
definições, e, portanto, a essência divina não pode ser “encerrada” em nenhuma
definição. Se em nosso pensar sobre Deus com as categorias do “ser” fazemos
uso da analogia do ser, com isto colocamos em evidência muito mais a “não-semelhança”
que a semelhança, muito mais a incomparabilidade do que a comparabilidade
de Deus com as criaturas (como recordou também o IV Concílio Lateranense, em
1215). Esta afirmação vale para todas as criaturas, tanto para as do mundo
visível como para as de ordem espiritual, e também para o homem, enquanto
criado “à imagem e semelhança” de Deus (cf. Gn 1,26).
Assim, pois, a cognoscibilidade de
Deus por meio das criaturas não remove sua essencial “incompreensibilidade”. Deus
é “incompreensível”, como proclamou o Concílio Vaticano I. O intelecto humano, por
mais que possua certo conceito de Deus, e ainda que tenha sido elevado de modo
significativo mediante a Revelação da antiga e da nova aliança a um
conhecimento mais completo e profundo do seu mistério, não pode compreender
Deus de modo adequado e exaustivo. Ele permanece inefável e inescrutável à
mente criada. “Ninguém conhece o que é de Deus senão o Espírito de Deus”,
proclama o Apóstolo Paulo (1Cor 2,11).
3. No mundo moderno, o pensamento
científico está orientado sobretudo àquilo que é “visível” e de algum modo
“mensurável” à luz da experiência dos sentidos e com os instrumentos de
observação e investigação hoje disponíveis. Em um mundo de metodologias
positivistas e de aplicações tecnológicas, esta “incompreensibilidade” de Deus é
ainda mais sentida por muitos, especialmente no âmbito da cultura ocidental.
Surgiram assim particulares condições para a expansão de atitudes
agnósticas ou mesmo ateias, devidas às premissas do
pensamento comum a muitos homens de hoje. Alguns consideram que esta situação
intelectual pode, a seu modo, favorecer a convicção - que pertence também à
tradição religiosa poderia dizer-se universal, e que o Cristianismo, sob certos
aspectos, acentuou - de que Deus é incompreensível. E seria uma homenagem à infinita,
transcendente realidade de Deus, que não se pode catalogar entre as coisas da
nossa comum experiência e conhecimento!
4. Sim, verdadeiramente o Deus que
revelou a Si mesmo aos homens se manifestou como Aquele que é incompreensível,
inescrutável, inefável. “Acaso compreenderás os vestígios e atingirás a
perfeição do Poderoso? Ele é mais alto do que o céu: que poderás fazer? É mais
profundo que o Sheol: que poderás
conhecer?”, diz-se no Livro de Jó (Jó 11,7-8).
Lemos no Livro do Êxodo um acontecimento que põe em relevo de modo
significativo esta verdade. Moisés pede a Deus: “Mostra-me a tua glória”. O Senhor responde: “Farei passar
diante de ti toda a minha bondade e exclamarei o meu nome (o que já havia ocorrido
na teofania aos pés do monte Horeb)... não poderás ver minha face, porque ninguém pode ver-me e permanecer vivo” (Ex 33,18-20).
O profeta Isaías, por sua vez,
confessa: “Verdadeiramente és um Deus escondido, Deus de Israel, o Salvador!” (Is 45,15).
5. Esse Deus, que se revelando falou
por meio dos profetas e por último por meio do Filho (cf. Hb 1,1-2), continua sendo um “Deus escondido”. Escreve o
Apóstolo João no início do seu Evangelho:
“A Deus, ninguém jamais viu. O Deus Unigênito, que está no seio do Pai, foi
quem o revelou” (Jo 1,18). Por meio do Filho, o Deus da Revelação aproximou-se
de modo único à humanidade. O conceito de Deus que o homem adquire mediante a
fé alcança nesta proximidade o seu ápice. No entanto, mesmo que Deus se tenha
aproximado ainda mais do homem com a Encarnação, Ele permanece, na
sua essência, o Deus escondido. Lemos no mesmo Evangelho de João: “Ninguém viu o Pai, senão o que vem de junto de
Deus: esse viu o Pai” (Jo 6,46).
Assim, pois, Deus, que revelou a
Si mesmo ao homem, permanece sendo para ele nesta vida um mistério inescrutável.
Este é o mistério da fé. O primeiro
artigo do Símbolo, “Creio em Deus”, exprime a primeira e fundamental verdade da
fé, que é ao mesmo tempo o primeiro e fundamental mistério da fé. Deus, que revelou a Si mesmo ao homem, permanece
sendo para o intelecto humano Alguém que é simultaneamente conhecido e
incompreensível. O homem, no curso de sua vida terrena, entra em contato
com o Deus da Revelação na “obscuridade da fé”. Isto é explicado em toda uma
linha da teologia clássica e moderna que insiste sobre a inefabilidade de Deus
[teologia negativa ou apofática] e encontra una confirmação particularmente
profunda - e às vezes mesmo dolorosa - na experiência dos grandes místicos. Mas
precisamente nesta “obscuridade da fé” - como afirma São João da Cruz -
é a luz que inefavelmente conduz a Deus (cf. Subida
do Monte Carmelo, 2, cap.
9, 3).
Este Deus é, segundo as palavras
de São Paulo, “o Rei dos reis e Senhor dos senhores, o único que possui a
imortalidade, que habita em uma luz inacessível, que ninguém viu nem pode ver”
(1Tm 6,15-16).
A obscuridade da fé acompanha indefectivelmente
a peregrinação terrena do espírito humano a Deus, na expectativa de abrir-se à
luz da glória somente na vida futura, na eternidade. “Agora nós vemos como num
espelho, confusamente; mas, então, veremos face a face” (1Cor 13,12).
“In lumine tuo videbimus lumen” - “Na tua luz veremos a luz” (Sl 35/36,10).
"Na tua luz veremos a luz" (Sl 35,10) (Deus Pai em glória - Antoine Coypel) |
Notas:
[1] A tradução oficial desses versos do Te Deum para o português do Brasil é: “Proclamam céus e terra a
vossa imensa glória... A vós por toda a terra proclama a Santa Igreja, ó Pai
onipotente, de imensa majestade” [Nota do
autor deste blog]. Para acessar nossa postagem sobre o Te Deum, clique aqui.
Tradução nossa a partir do texto italiano divulgado no site da Santa Sé (07 de agosto e 28 de agosto de 1985).
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