Dentre as celebrações presididas pelo Papa ao longo do Ano
Litúrgico, uma das mais eloquentes sem dúvida é a Via Sacra na noite da
Sexta-feira Santa junto ao Coliseu. Nesta postagem gostaríamos de traçar brevemente a sua
história.
1. O Coliseu romano e
sua relação com a Igreja
O Anfiteatro Flávio (Amphitheatrum
Flavium, em latim), mais conhecido como Coliseu (Colosseum), foi construído junto ao Monte Palatino, uma das sete
colinas “originais” de Roma, durante o governo dos três imperadores da chamada
“Dinastia Flávia” (ou Flaviana): Vespasiano (69-79) e seus filhos Tito (79-81) e
Domiciano (81-96).
Anteriormente, no ano 64, após o Grande Incêndio de Roma, o imperador Nero
(54-68) mandou construir um grande palácio para si, a Domus Aurea (Casa Dourada), junto à qual
se encontrava uma grande estátua representando-o como o deus-sol: o chamado Colosso de Nero (Collossus Neronis).
Vespasiano, no ano 72, para agradar o povo de
Roma, mandou demolir o palácio e construir no lugar o célebre anfiteatro como
espaço para entretenimento público (no contexto da chamada “política do pão e circo”, panem et circenses).
Após sua inauguração no ano 80, com efeito, o Coliseu sediava as famosas lutas de gladiadores (munera gladiatoria), espetáculos com animais (venationes), execução de criminosos, encenações de batalhas e de dramas da mitologia, entre outros eventos.
O Coliseu Romano |
Após a queda do Império Romano do Ocidente no ano 476, o
Coliseu teve vários usos: cemitério, mercado, habitação, acolhendo também alguns espetáculos teatrais. O historiador Mariano
Armellini (†1896), por exemplo, atesta que a edícula de Santa Maria della Pietà al Colosseo era o “camarim” de uma companhia teatral antes de ser convertida em
capela no tempo do Papa Paulo IV (†1559).
Após ser danificado por um terremoto em 1349, o anfiteatro foi sistematicamente saqueado, com suas pedras utilizadas na construção de outros edifícios públicos, de igrejas e
mesmo de casas particulares.
O saque do Coliseu foi interrompido a
partir do Jubileu de 1675, quando foi proposto como lugar sagrado em memória dos mártires
cristãos.
Em 1744 o Papa Bento XIV (†1758) mandou edificar as
quatorze estações da Via Sacra ao redor da antiga arena, em vista do Jubileu de
1750, durante o qual o franciscano São Leonardo de Porto Maurício (†1751), grande
promotor dessa devoção, teria conduzido a oração da Via Sacra (também chamada Via Crucis ou Via Dolorosa).
Ilustração do Coliseu - Giovanni Battista Piranesi, 1776 Notem-se a cruz e as quatorze estações da Via Sacra |
Apesar dessa associação com o martírio, não há um
testemunho seguro sobre a execução de cristãos no Coliseu. Os chamados
“Protomártires Romanos”, por exemplo, foram executados em sua maioria
no Circo de Nero, junto à colina do Vaticano, o qual acolhia sobretudo corridas de carruagens. Outras execuções ocorreram no Circo
Máximo (Circus Maximus), entre os
Montes Aventino e Palatino.
Não obstante, uma vez que durante os jogos ocorriam comumente execuções de criminosos, é possível que cristãos
tenham sido martirizados no Coliseu. Este, com efeito, permanece como símbolo
do Império Romano e, portanto, das perseguições.
Os cristãos, ao se recusarem a adorar os deuses do Império
(incluindo, às vezes, o próprio Imperador como deus), eram acusados de
impiedade e condenados, por exemplo, à crucificação (damnatio in crucem), à fogueira (damnatio ad flammas) ou à exposição a animais selvagens (damnatio ad bestias).
Cabe recordar, porém, que as perseguições aos cristãos ocorreram em períodos específicos da história do Império, intercalando-se com períodos de paz.
Cruz dentro do Coliseu |
2. A Via Sacra presidida
pelo Papa no Coliseu
Após o Jubileu de 1750, devido à deterioração do anfiteatro,
a devoção da Via Sacra no Coliseu foi lentamente abandonada. As 14
estações permaneceram até meados do século XIX, quando, nas várias
restaurações pelas quais passou o anfiteatro, a arena foi removida e o hipogeu
ficou a descoberto.
A Via Sacra no Coliseu só seria retomada por São Paulo VI
(†1978) na primeira Sexta-feira Santa do seu pontificado, no dia 27 de março de
1964. Desde então, os Papas têm acompanhado sempre esse piedoso exercício na
noite da Sexta-feira Santa, geralmente proferindo um breve discurso ou uma oração.
Durante a década de 1970, a Via Sacra presidida por Paulo VI
seria acompanhada por meditações dos escritos de vários santos, sobretudo dos Padres
da Igreja, teólogos dos primeiros séculos do Cristianismo, e de santos
místicos de épocas mais recentes.
A primeira Via Sacra do pontificado de São João Paulo II (†2005), na Sexta-feira Santa de 1979, foi enriquecida com meditações dos discursos de Paulo VI. Nos anos seguintes, por sua vez, se retomariam os textos dos santos até 1984, Jubileu Extraordinário da Redenção, quando as meditações foram elaboradas pelo próprio Papa polonês.
Paulo VI - Via Sacra 1977 |
Em 1985, por sua vez, João Paulo II deu início ao costume de convidar cada ano uma pessoa ou grupo de pessoas para escrever as meditações da Via
Sacra: Bispos, sacerdotes, religiosos e leigos de várias partes do mundo, incluindo
fiéis de outras Igrejas e comunidades eclesiais.
Sobretudo nos anos em que foram convidados fiéis não
católicos para escrever as meditações, foi utilizado o esquema da chamada “Via Sacra Bíblica”, já proposta durante o Jubileu de 1975.
São João Paulo II, além de sempre acompanhar a Via Sacra, também presidiu a Comemoração das Testemunhas da fé do
século XX junto ao Coliseu no dia 07 de maio do ano 2000, ano em que foi inaugurada uma cruz dentro do anfiteatro. Confira uma breve descrição do rito e a homilia do Papa.
Os Papas Bento XVI e Francisco mantiveram o costume de convidar um fiel ou grupo de fiéis para escrever as meditações da
Via Sacra a cada ano. Segue abaixo a lista dos autores das meditações, algumas das quais podem ser conferidas na íntegra aqui em nosso
blog:
São João Paulo II:
1985: Italo Alighiero Chiusano, escritor italiano
1986: André Frossard, jornalista e escritor francês
1987: Cardeal Miguel Obando Bravo, Arcebispo de Manágua (Nicarágua)
1988: Hans Urs von Balthasar, teólogo suíço
1989: Marek Skwarnicki, escritor polonês
João Paulo II - Via Sacra 1979 |
1990: Dom Michel Sabbah, Patriarca Latino de Jerusalém
1991: Padre Ignacio M. Calabuig Adan, OSM e Padre Silvano M. Maggiano, OSM
1992: Dom Miloslav Vlk, Arcebispo de Praga (Tchecoslováquia)
1993: Madre Anna Maria Canopi, Abadessa da Abadia Benedetina “Mater Ecclesiae” - Isola San Giulio (Novara)
1994: Bartolomeu, Patriarca Ecumênico de Constantinopla
1995: Irmã Minke de Vries, monja da Comunidade de Grandchamp (Suíça)
1996: Cardeal Vinko Puljiċ, Arcebispo de Vrhbosna (Sarajevo,
Bósnia e Herzegovina)
1997: Karekin I, Catholicos
de todos os Armênios
1998: Olivier Clement, teólogo ortodoxo francês
1999: Mario Luzi, poeta italiano
2001: Cardeal John Henry Newman (Beatificado pelo Papa Bento XVI em 2010 e canonizado pelo Papa Francisco em 2019)
2002: 14 jornalistas acreditados junto à Santa Sé (Via Sacra Bíblica)
2003: Meditações compostas pelo então Cardeal Wojtyła (Papa João Paulo II) para os Exercícios Espirituais da Cúria Romana de 1976
2004: Dom André Louf, monge cisterciense (Via Sacra Bíblica)
2005: Cardeal Joseph Ratzinger, Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé (em seguida eleito Papa Bento XVI)
Bento XVI:
2006: Dom Ângelo Comastri, Vigário Geral para a Cidade do Vaticano, posteriormente criado Cardeal
2007: Monsenhor Gianfranco Ravasi, Prefeito da Biblioteca Ambrosiana - Milão, posteriormente criado Cardeal (Via Sacra Bíblica)
2008: Cardeal Joseph Zen Ze-Kiun, S.D.B., Bispo de Hong Kong
2009: Dom Thomas Menamparampil, S.D.B, Arcebispo de Guwahati (Índia)
2010: Cardeal Camillo Ruini, Vigário Geral Emérito para a Diocese de Roma
2011: Irmã Maria Rita Piccione, O.S.A.
2012: Danilo e Anna Maria Zanzucchi, Movimento “Famílias Novas”
Bento XVI - Via Sacra 2006 |
Francisco:
2014: Dom Giancarlo Maria Bregantini, Arcebispo de
Campobasso-Boiano (Itália)
2015: Dom Renato Corti, Bispo Emérito de Novara (Itália)
2016: Cardeal Gualtiero Bassetti, Arcebispo de Perugia - Città della Pieve (Itália)
2017: Sra. Anne-Marie Pelletier (Via Sacra Bíblica)
2019: Irmã Eugenia Bonetti, Missionária da Consolata
2022: Um grupo de famílias (Via Sacra Bíblica)
2023: “Vozes de paz em um mundo de guerra” (14 testemunhos de fiéis provenientes dos diversos países do mundo visitados pelo Papa Francisco ao longo dos 10 anos de pontificado)
2024: Meditações do Papa Francisco no contexto do Ano da Oração em preparação para o Jubileu de 2025
* * *
Vale recordar ainda que o Papa sempre preside a oração da Via Sacra durante os encontros internacionais da Jornada Mundial da Juventude (JMJ):
2023: Via Sacra da JMJ em Lisboa (Portugal)
Francisco - Via Sacra 2020 |
Nota:
[1] Devido à pandemia de Covid-19, nos anos de 2020 e 2021 a Via Sacra teve lugar na Praça de São Pedro no Vaticano.
Imagens: Wikimedia Commons / Vatican News.
Postagem publicada em 02 de março de 2022. Última atualização: 14 de setembro de 2024.
Nenhum comentário:
Postar um comentário