quinta-feira, 7 de maio de 2020

Comemoração das Testemunhas de Fé do século XX: Homilia

No dia 07 de maio do ano 2000 o Papa João Paulo II presidiu a Comemoração das Testemunhas de Fé do século XX junto ao Coliseu romano como parte das celebrações do Grande Jubileu.

Para conhecer o sugestivo rito utilizado nessa celebração, clique aqui.

Comemoração das Testemunhas de Fé do século XX
Homilia do Papa João Paulo II
Coliseu, Roma
07 de maio de 2000

1. Se o grão se trigo não cai na terra e não morre, fica sozinho. Mas se morre, produz muito fruto (Jo 12,24). Na vigília da Paixão, Jesus anuncia com estas palavras a sua glorificação através da morte. Esta afirmação comprometedora ressoou pouco antes da aclamação ao Evangelho. Nesta tarde ela ecoa com vigor na nossa alma, neste lugar significativo onde recordamos as “Testemunhas da Fé do século XX”.

Cristo é o grão de trigo que, morrendo, deu frutos de vida imortal. E foram nas pegadas do Rei crucificado que se puseram os seus discípulos, que ao longo dos séculos se tornaram inumeráveis plêiades “de todas as nações, raças, povos e línguas”: Apóstolos e confessores da fé, virgens e mártires, audazes arautos do Evangelho e silenciosos servidores do Reino.


Diletos irmãos e irmãs, unidos pela fé em Jesus Cristo! Hoje me é particularmente grato dirigir-vos o meu fraterno abraço de paz, enquanto juntos comemoramos as Testemunhas da Fé do século XX. Saúdo calorosamente os representantes do Patriarcado Ecumênico e das demais Igrejas ortodoxas irmãs, assim como aqueles das antigas Igrejas do Oriente. Agradeço de igual modo aos representantes da Comunhão Anglicana, das Comunhões Cristãs Mundiais do Ocidente das Organizações Ecumênicas a sua presença fraternal.

Para todos nós é motivo de intensa emoção encontrar-nos juntos nesta tarde, congregados ao lado do Coliseu, para esta sugestiva celebração jubilar. Os monumentos e as ruínas da antiga Roma falam à humanidade acerca dos sofrimentos e das perseguições suportados com fortaleza heroica pelos nossos pais na fé, os cristãos das primeiras gerações. Estes antigos vestígios recordam-nos quanto são verdadeiras as palavras de Tertuliano, que escrevia: “Sanguis martyrum, semen christianorum”, o sangue dos mártires é semente de [novos] cristãos (Apol. 50, 13: CCL I, 171).

2. A experiência dos mártires e das Testemunhas da Fé não é uma característica exclusivamente da Igreja dos primórdios, mas delineia todas as épocas da sua história. De resto, no século XX, talvez ainda mais do que no primeiro período do cristianismo, muitíssimos foram os que testemunharam a fé com sofrimentos não raro heroicos. Durante o século XX, quantos cristãos em todos os continentes pagaram o seu amor a Cristo, também derramando o próprio sangue! Eles padeceram formas de perseguição antigas e recentes, experimentando o ódio e a exclusão, a violência e a morte. Muitos países de antiga tradição cristã voltaram a ser terras em que a fidelidade ao Evangelho teve um preço muito elevado. No nosso século o “testemunho, dado por Cristo até ao derramamento do sangue, tornou-se patrimônio comum de católicos, ortodoxos, anglicanos e protestantes” (Tertio millennio adveniente, 37).

A geração a que pertenço conheceu o terror da guerra, os campos de concentração e a perseguição. Durante a Segunda Guerra Mundial, na minha pátria sacerdotes e cristãos foram deportados para os campos de extermínio. Somente em Dachau foram internados cerca de três mil sacerdotes. O seu sacrifício uniu-se ao de muitos cristãos provenientes de outros países europeus e, nalguns casos, pertencentes a outras Igrejas e comunidades eclesiais.

Nos meus anos de juventude, eu mesmo fui testemunha de muitos sofrimentos e de inúmeras provações. Desde a sua origem, o meu sacerdócio “inscreveu-se no sacrifício de muitos homens e mulheres da minha geração” (Dom e Mistério, p. 47). A experiência da Segunda Guerra Mundial e dos anos sucessivos levou-me a considerar com grata atenção o exemplo luminoso de quantos, desde os primeiros anos do século XX até à sua conclusão, experimentaram a perseguição, a violência e a morte pela sua fé e pelo seu comportamento inspirados na verdade de Cristo.

3. E eles são muitos! A sua memória não deve perder-se mas, pelo contrário, há de ser recuperada de maneira documentada. Os nomes de muitos não são conhecidos; os nomes de alguns foram denegridos pelos perseguidores, que ao martírio procuraram acrescentar a ignomínia; os nomes de outros foram ocultados pelos carrascos. Porém, os cristãos conservam a recordação de uma grande parte deles. Foi o que demonstraram as numerosas respostas à exortação ao não esquecimento, enviadas à Comissão denominada “Novos Mártires”, no âmbito do Comitê para o Grande Jubileu, que trabalhou com entusiasmo para enriquecer e atualizar a memória da Igreja com os testemunhos de todas as pessoas, mesmo desconhecidas, que “arriscaram a vida pelo nome de nosso Senhor Jesus Cristo” (At 15,26). Sim, como escrevia na vigília da sua execução o Metropolita ortodoxo de São Petersburgo Benjamim, martirizado em 1922, “os tempos mudaram e surgiu a possibilidade de padecer sofrimentos por amor de Cristo...”. Com esta convicção, da sua cela de Buchenwald, o pastor luterano Paul Schneider confirmava diante dos seus algozes: “Assim diz o Senhor: Eu sou a Ressurreição e a Vida!”.

A participação de representantes de outras Igrejas e Comunidades eclesiais confere à nossa hodierna celebração um valor e uma eloquência totalmente singulares, durante este Jubileu do Ano 2000. Ela mostra que o exemplo das heroicas Testemunhas da Fé é deveras precioso para todos os cristãos. A perseguição atingiu quase todas as Igrejas e comunidades eclesiais do século XX, unindo os cristãos nos lugares de sofrimento e transformando o seu comum sacrifício num sinal de esperança para os tempos vindouros.

Estes nossos irmãos e irmãs na fé, aos quais hoje fazemos referência com gratidão e veneração, constituem como que um grande afresco da humanidade cristã do século XX. Um afresco do Evangelho das Bem-Aventuranças, vivido até ao derramamento do sangue.

Ícone dos mártires do século XX

4. Felizes de vós, se fordes insultados e perseguidos, e se disserem toda a espécie de calúnia contra vós por causa de Mim. Ficai alegres e contentes, porque será grande para vós a recompensa no céu (Mt 5,11-12). Como condizem estas palavras de Cristo às inumeráveis Testemunhas da Fé do século passado, insultadas e perseguidas, mas jamais vencidas pela força do mal!

Lá onde o ódio parecia deturpar toda a vida, sem a possibilidade de se eximir da sua lógica, elas demonstraram que “o amor é mais forte que a morte”. No interior de terríveis sistemas opressivos que desfiguravam o homem, nos lugares de sofrimento, entre privações inauditas, ao longo de marchas insensatas, expostas ao frio, à fome, torturadas, vítimas de vários tipos de sofrimento, elas fizeram ressoar em voz alta a sua adesão a Cristo morto e ressuscitado. Daqui a pouco escutaremos alguns dos seus testemunhos mais impressionantes.

Muitos rejeitaram ceder ao culto dos ídolos do século XX e foram sacrificados pelo comunismo, pelo nazismo, pela idolatria do Estado ou da raça. Muitos outros morreram durante guerras étnicas e tribais, porque refutaram uma lógica alheia ao Evangelho de Cristo. Alguns conheceram a morte porque, segundo o modelo do Bom Pastor, quiseram permanecer com os seus fiéis, apesar das ameaças. Em cada continente e ao longo de todo o século XX houve quem preferiu morrer para não faltar à própria missão. Religiosos e religiosas viveram a sua consagração até à efusão do sangue. Homens e mulheres crentes morreram oferecendo a sua existência por amor dos fiéis, de forma especial dos mais pobres e frágeis. Não poucas mulheres perderam a própria vida para defender a sua dignidade e pureza.

5. Quem tem apego à sua vida, vai perdê-la; quem despreza a sua vida neste mundo, vai conservá-la para a vida eterna (Jo 12,25). Acabamos de escutar estas palavras de Cristo. Trata-se de uma verdade que não raro o mundo contemporâneo rejeita e despreza, fazendo do amor a si mesmo o supremo critério da existência. Todavia, as Testemunhas da Fé, que inclusivamente nesta tarde nos falam com o seu exemplo, não consideraram o seu interesse pessoal, o próprio bem-estar e a sobrevivência como os maiores valores da fidelidade ao Evangelho. Apesar da sua debilidade, opuseram uma firme resistência ao mal. Na sua fragilidade resplandeceu a força da fé e da graça do Senhor.

Caríssimos irmãos e irmãs, a herança preciosa que estas testemunhas corajosas nos transmitiram constitui um patrimônio comum de todas as Igrejas e de cada comunidade eclesial. Trata-se de uma herança que fala com uma voz mais alta do que os fatores de divisão. O ecumenismo dos mártires e das Testemunhas da Fé é o mais convincente, pois indica aos cristãos do século XX a via para a unidade. É a herança da Cruz vivida à luz da Páscoa: herança que enriquece e sustenta os cristãos, enquanto iniciam o novo milênio.

Se nos gloriamos desta herança, não é por espírito de parcialidade e muito menos por desejo de desforra em relação aos perseguidores, mas a fim de que se manifeste o extraordinário poder de Deus, que continuou a agir em cada tempo e debaixo de todos os céus. Fazemo-lo perdoando, por nossa vez, segundo o exemplo de muitas testemunhas que morreram enquanto rezavam pelos seus perseguidores.

6. A memória destes nossos irmãos e irmãs sobreviva no século e no milênio que acabam de iniciar. Aliás, cresça! Seja transmitida de geração em geração, para que dela germine uma profunda renovação cristã! Seja conservada como um tesouro de valor excelso para os cristãos do novo milênio e constitua o fermento para a obtenção da plena comunhão entre todos os discípulos de Cristo!

É com ânimo repleto de íntima comoção que exprimo estes votos. Rezo ao Senhor para que a plêiade de testemunhas que nos circunda ajude todos nós, crentes, a expressar com igual denodo o nosso amor a Cristo, Àquele que está sempre vivo na sua Igreja: assim como ontem, também hoje, amanhã e para sempre!


Fonte: Santa Sé.

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