segunda-feira, 7 de março de 2022

A devoção aos Instrumentos da Paixão do Senhor (Arma Christi)

“Ó morte, onde está a tua vitória? Onde está o teu aguilhão?” (1Cor 15,55).

Os instrumentos da Paixão do Senhor (a cruz, a coroa de espinhos, os cravos ou pregos, a lança...), também conhecidos como Arma Christi (as armas de Cristo) são símbolos recorrentes na arte cristã.

"Homem das Dores" (Sandro Botticelli)
Os anjos com os instrumentos da Paixão formam a auréola de Cristo

As origens da devoção às Arma Christi

Dentre os instrumentos da Paixão, a cruz ocupa naturalmente o lugar central, como atestado já no Novo Testamento, sobretudo nas Cartas Paulinas: “Nós pregamos Cristo crucificado...” (1Cor 1,22-25); “A cruz de nosso Senhor Jesus Cristo deve ser a nossa glória...” (Gl 6,14).

A partir do século IV, com a edificação da Basílica do Santo Sepulcro em Jerusalém e a difusão de “relíquias” da Santa Cruz, que teria sido descoberta por Santa Helena (†330), surgem duas festas em honra do “santo madeiro”: a Exaltação da Santa Cruz a 14 de setembro e, posteriormente, a Invenção da Santa Cruz a 03 de maio.

Para acessar nossa postagem sobre o ícone da Festa da Exaltação da Santa Cruz, clique aqui.

Os demais instrumentos da Paixão mais recorrentes na arte sacra são:
- a coluna da flagelação com um ou mais flagelos;
- a coroa de Espinhos;
- o “véu da Verônica”;
- os cravos ou pregos da crucificação;
- a vara com a esponja com a qual foi oferecido vinagre a Jesus;
- a lança com a qual o soldado perfurou o coração de Cristo.

Outros instrumentos menos comuns são:
- o cálice da última Ceia, que representa também o cálice da agonia;
- as trinta moedas de prata recebidas por Judas (ou um saco de dinheiro);
- as correntes ou cordas e as tochas usadas pelos soldados que prenderam Jesus;
- a espada usada por Pedro para cortar a orelha do servo do sumo-sacerdote;
- o galo que cantou após as negações de Pedro;
- a mão do soldado que esbofeteou Jesus (às vezes representada como uma manopla de metal) e cabeças humanas cuspindo em Jesus;
- uma corneta, que um soldado soa de modo desafinado para zombar de Jesus;
- o caniço entregue a Jesus como “cetro” pelos soldados;
- o jarro e a bacia com água com os quais Pilatos lavou as mãos;
- o Titulus Crucis, isto é, a placa com a inscrição “Jesus de Nazaré, Rei dos Judeus”;
- as vestes de Jesus e os dados usados pelos soldados para sorteá-las;
- o martelo utilizado para pregar Jesus na cruz e o alicate usado para removê-los;
- a escada utilizada para a deposição do corpo de Jesus da cruz.
- o Santo Sudário (lençol do sepultamento) e o vaso com mirra para ungir o corpo.

Cristo como "Homem das Dores" com os instrumentos da Paixão
(Lorenzo Monaco)

A devoção às Arma Christi difunde-se sobretudo no final da Idade Média, a partir dos séculos XII e XIII. Como vimos em nossa postagem sobre a história do culto às Cinco Chagas de Cristo, são vários os fatores que levaram ao florescimento dessas devoções:

- as peregrinações à Terra Santa no contexto das Cruzadas, com a consequente difusão de supostas “relíquias” da Paixão por toda a Europa;

- a heresia dos cátaros, que, em sua concepção dualista do mundo, consideravam a matéria como má, negando o valor salvífico da Morte de Cristo. Assim, para combater essa heresia, as ordens religiosas passaram a enfatizar a devoção à Paixão.

Muitas das ordens religiosas que surgiram nesse período dedicavam-se também ao cuidado dos enfermos, aos quais propunham a contemplação da Paixão do Senhor, recordando-lhes que “Ele tomou sobre si nossas dores” (cf. 1Pd 2,21-24) e exortando-lhes a unir seus sofrimentos aos de Cristo (cf. 2Cor 12,10; Cl 1,24).

As Arma Christi e o juízo final

Na arte do final da Idade Média surge também como tema recorrente o juízo final, no qual encontramos os anjos que sustentam os instrumentos da Paixão ao redor do Cristo, que vem “para julgar os vivos e os mortos”.

Com efeito, nos combates medievais o cavaleiro vencedor ganhava as armas do derrotado (o qual deveria pagar um “resgate” se quisesse conservá-las). Assim, após sua Ressurreição, Cristo “reivindica” os instrumentos da Paixão como sinais de sua vitória sobre a morte (cf. 1Cor 15,20-28.54-57).

Nas representações do juízo final, os anjos portadores das Arma Christi são como que os “escudeiros” do Ressuscitado, carregando como estandartes os sinais da sua vitória, como canta a Igreja do Oriente e do Ocidente:

Cristo ressuscitou de entre os mortos, com sua morte destruiu a morte e aos que jaziam no sepulcro deu a vida” (Tropário da Páscoa do Rito Bizantino);
Morrendo, destruiu a morte e, ressurgindo, deu-nos a vida” (Prefácio da Páscoa I, Rito Romano).

"Juízo final" da Catedral Velha de Salamanca (Espanha)
Notem-se os anjos com os instrumentos da Paixão

Encontramos os anjos com os instrumentos da Paixão em representações célebres do juízo final, como os mosaicos do Batistério de Florença, realizados entre 1225 e 1230 por diversos artistas, ou o afresco de Michelangelo Buonarroti (†1564) na Capela Sistina (realizado entre 1535 e 1541).

Confira algumas imagens do Juízo Final da Capela Sistina em nossa postagem sobre o hino Dies irae clicando aqui.

Nos ícones bizantinos do juízo final, por sua vez, é mais comum encontrar apenas a cruz. Para saber mais, confira nossa postagem sobre o ícone de Todos os Santos clicando aqui.

Em escultura um dos exemplos mais famosos é a série de dez anjos que ladeiam a célebre Ponte Sant’Angelo em Roma, realizados por Gian Lorenzo Bernini (†1680) e seus alunos entre 1667 e 1670.

Para acessar nossa postagem sobre os dez anjos da Ponte Sant’Angelo, clique aqui.

As Arma Christi e a Missa de São Gregório

Os instrumentos da Paixão do Senhor aparecem associados também a outro “tema” da arte sacra cristã: a “Missa de São Gregório”.

De acordo com a lenda, durante a Missa celebrada pelo Papa São Gregório Magno (†604) a hóstia teria vertido sangue como um sinal contra a incredulidade de uma mulher romana, a qual riu durante a Comunhão, duvidando da presença de Cristo na Eucaristia, pois ela mesma tinha preparado o pão.

A partir de meados do século XIV a representação dessa lenda substitui a hóstia sangrando por uma visão do Cristo como “Homem das Dores” (Vir Dolorum) sobre o altar, com os instrumentos da Paixão à sua volta.

Missa de São Gregório em um Livro de Horas anônimo do século XVI

O culto litúrgico aos instrumentos da Paixão

Embora encontremos hinos ou sequências em honra da coroa de espinhos ou da lança e dos cravos da Paixão que remontam ao século XV, o culto litúrgico propriamente dito aos instrumentos da Paixão ou Arma Christi é muito mais recente.

Sua devoção foi promovida no século XVIII por São Paulo da Cruz (†1775), que em 1720 fundou a Congregação da Paixão de Jesus Cristo (Congregatio Passionis Iesu Christi), cujos religiosos são conhecidos como “passionistas”.

Em 1773 São Paulo da Cruz pede à Santa Sé a aprovação de uma série de sete ofícios votivos em honra da Paixão do Senhor para a Congregação. Esses ofícios votivos, isto é, que podem ser celebrados à escolha para promover a devoção dos fiéis, foram aprovados pelo Papa Pio VI (†1799), a serem celebrados pelos passionistas durante os Tempos da Septuagésima e da Quaresma:

- comemoração da oração de nosso Senhor Jesus Cristo no Getsêmani (Orationis Domini Nostri Jesu Christi): terça-feira após o domingo da Septuagésima;
- comemoração da Paixão (ICommemoratione Passionis): terça-feira após o Domingo da Sexagésima;
- comemoração da Coroa de Espinhos (Sacrae Spineae Coronae): sexta-feira após as Cinzas;
- comemoração da Lança e dos Cravos (Sacrae Lanceae et Clavorum): sexta-feira da I semana da Quaresma;
- comemoração do Santo Sudário (Sacratissimae Sindonis): sexta-feira da II semana da Quaresma;
- comemoração das Cinco Chagas do Senhor (Sacrorum Quinque Vulnerum): sexta-feira da III semana da Quaresma;
- comemoração do Preciosíssimo Sangue de Jesus (Pretiosissimi Sanguinis): sexta-feira da IV semana da Quaresma.

São Paulo da Cruz, promotor do culto a Paixão

A essas sete celebrações votivas somava-se a Festa das Sete Dores de Maria (Septem Dolorum Beatae Mariae Virginis), instituída em 1727 pelo Papa Bento XIII (†1730) para a sexta-feira da V semana da Quaresma (então chamada I semana da Paixão).

Note-se que as três celebrações em honra dos instrumentos da Paixão formam um “crescendo”, recordando a Paixão (coroa de espinhos), a Morte (lança e cravos) e o Sepultamento do Senhor (sudário).

Rapidamente essas celebrações foram acolhidas por outras congregações religiosas e por algumas dioceses, sobretudo na Itália. Assim, na edição do Missale Romanum promulgada pelo Papa Bento XV (†1922) em 1920, após as reformas de São Pio X (†1914), essas sete Missas votivas foram incluídas no Apêndice, a serem celebradas ad libitum (à escolha).

Porém, com as reformas dos Papas Pio XII (†1958) e João XIII (†1963), que levaram a uma nova edição do Missale Romanum em 1962, essas Missas foram suprimidas, decisão conservada pela reforma do Concílio Vaticano II.

Não obstante, no atual Missal Romano há, como formulários votivos em honra da Paixão do Senhor, as Missas votivas do mistério da Santa Cruz e do Preciosíssimo Sangue, que podem ser celebradas sempre que essas Missas são permitidas [1].

Cristo como "Homem das Dores" com os instrumentos da Paixão
(Cristoforo Majorana - Saltério)

O Missal próprio da Congregação da Paixão (passionistas), por sua vez, aprovado pela Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos em 1998, além da comemoração da Paixão do Senhor na sexta-feira antes das Cinzas (solenidade principal da Congregação), conserva uma série de Missas votivas em honra dos mistérios da Paixão.

Porém, essa “Memoria Passionis” não está mais atrelada exclusivamente à Quaresma: assim, os religiosos passionistas podem distribuir as comemorações ao longo de todo o ano. Além disso, dos instrumentos da Paixão as celebrações passaram a contemplar o próprio Senhor.

Por exemplo, a comemoração da coroa de espinhos é substituída pela Missa em honra de Jesus, coroado de espinhos; a comemoração da lança é substituída pela Missa votiva a Jesus, transpassado pela lança.

Conclusão

Por fim, à guisa de conclusão, cabe recordar aqui a reflexão do Diretório sobre Piedade Popular e Liturgia promulgado pela Congregação para o Culto Divino.

Ao refletir sobre as práticas devocionais para o Tempo da Quaresma, particularmente sobre a veneração do Cristo crucificado (nn. 127-129), o Diretório elenca a devoção “aos instrumentos da Paixão” dentre as expressões de piedadelegítimas”.

Porém adverte: “Para evitar um fracionamento excessivo na contemplação do mistério da Cruz, é conveniente que se acentue o conjunto todo do evento da Paixão, segundo a tradição bíblica e patrística” (n. 129).

Além disso, “deve-se mostrar aos fiéis a essencial referência da Cruz ao evento da Ressurreição: a Morte e a Ressurreição de Cristo são inseparáveis na narrativa evangélica e no projeto salvífico de Deus” (n. 128).

Tapeçaria com as Arma Christi (1475-1550)

Nota:

[1] MISSAL ROMANO. Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1991, pp. 942.945-946.
De acordo com a Instrução Geral sobre o Missal Romano (3ª edição, nn. 374-376) as Missas votivas são:
Sempre permitidas: Nos dias de semana do Tempo Comum, mesmo quando ocorre uma memória facultativa;
Permitidas, a juízo do sacerdote: Nos dias de semana do Tempo Comum quando ocorre uma memória obrigatória; nos dias de semana do Advento até 16 de dezembro; nos dias de semana dos Tempos do Natal e da Páscoa;
Permitidas apenas com autorização do Bispo Diocesano: Nos domingos do Natal e do Tempo Comum; nas festas; nos dias de semana do Advento de 17 a 24 de dezembro; na oitava do Natal; nos dias de semana da Quaresma;
Sempre proibidas: Nas solenidades; nos domingos do Advento, da Quaresma e da Páscoa; na Oitava da Páscoa; na Comemoração dos Fiéis Defuntos; na Quarta-feira de Cinzas; na Semana Santa.

Referências:

CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO E A DISCIPLINA DOS SACRAMENTOS. Diretório sobre Piedade Popular e Liturgia: Princípios e orientações. São Paulo: Paulinas, 2003, pp. 114-116.

CONGREGAZIONE DELLA PASSIONE DI GESÙ CRISTO. Messale proprio della Congregazione. Disponível em: Passio Christi.

HEINZ-MOHR, Gerd. Dicionário dos Símbolos: Imagens e sinais da arte cristã. São Paulo: Paulus, 1994, pp. 184-185.

HOLWECK, Frederick. Commemoration of the Passion of Christ. in: The Catholic Encyclopedia, vol. 11. New York, 1911. Disponível em: New Advent

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