“A Páscoa de Cristo e
nossa é agora celebrada no sacramento, memorial do sacrifício da Cruz e
presença do Ressuscitado” (cf. Carta Circular Paschalis Sollemnitatis, nn.
88.90).
Esta é a segunda parte do nosso percurso sobre a história da
Vigília Pascal na Noite Santa da Ressurreição do Senhor. Na primeira postagem,
após uma breve introdução, apresentamos os ritos das primeiras duas partes da
Vigília: a Liturgia da Luz e a Liturgia Eucarística. Agora concluiremos com a
Liturgia Batismal e a Liturgia Eucarística.
“Banhados em Cristo”: A Liturgia Batismal
Desde o início da Igreja, sobretudo em Roma, a Vigília Pascal era a ocasião por excelência para a celebração dos sacramentos da Iniciação Cristã: Batismo, Confirmação e Eucaristia.
Como já testemunhava o Apóstolo Paulo, é na Morte-Ressurreição
de Cristo que somos batizados (cf. Rm
6,1-11; Gl 3,27; Cl 2,12). O mesmo atesta, por exemplo, Tertuliano (†220) em sua
obra Sobre o Batismo (De Baptismo), do início do século III:
“O dia mais solene para o Batismo é por excelência o dia da Páscoa, em que é
consumada a Paixão do Senhor, na qual somos batizados” [1].
Também a peregrina Etéria, que infelizmente não nos descreve
o rito da Vigília Pascal na Jerusalém do século IV (indicando simplesmente que
“as vigílias pascais fazem-se tal como entre nós”), atesta a celebração do
Batismo:
“Os neófitos, uma vez batizados e vestidos, à medida
que saem da fonte, primeiro são conduzidos com o Bispo à Anástasis”, isto é, à Edícula do Santo Sepulcro, diante da qual entoam um
hino e o Bispo faz uma oração sobre eles, antes de retornarem à igreja maior (Martyrium), “onde, como de costume, todo
o povo faz a vigília” [2].
Com efeito, como na maioria dos templos primitivos a fonte
batismal ou batistério encontrava-se separada da nave, geralmente em um
edifício anexo, o Bispo dirigia-se para lá com os eleitos, enquanto os fiéis
permaneciam na igreja entoando a Ladainha de Todos os Santos.
Após o canto do Sl
41 (42) - “Sicut cervus desíderat ad
fontes...” - o Bispo abençoava a água e em seguida administrava o Batismo
aos eleitos, ao mesmo tempo em que estes professavam a sua fé. Vale lembrar que
alguns ritos costumavam ser antecipados para a manhã do Sábado Santo, como a
renúncia ao mal e a unção com o Óleo dos Catecúmenos.
"Sicut cervus ad fontes..." |
Sobre a bênção da água ou da fonte batismal, já Tertuliano
no De Baptismo menciona a invocação
do Espírito Santo sobre a água batismal. Santo Ambrósio de Milão (†397), por
sua vez, testemunha uma bênção composta de exorcismo (eliminação da influência
diabólica) e santificação ou epiclese (invocação da Trindade) [3].
A fórmula atual, no lugar do exorcismo, propõe uma anamnese
(memorial), recordando o simbolismo da água ao longo da história da salvação,
desde a criação até o Mistério Pascal de Cristo.
No Rito Hispano-Mozárabe (Espanha) há o costume de lacrar a pia batismal durante a Quaresma: assim, antes ainda da bênção da água o sacerdote recita uma oração inicial e remove o selo.
A partir do século IX foram acrescentados à bênção da
fonte batismal vários ritos: o sacerdote traça o sinal da cruz sobre a água,
sopra sobre ela, lança-a em direção aos quatro pontos cardeais, mergulha o
círio pascal, a mistura com o Óleo dos Catecúmenos e com o Crisma...
A reforma litúrgica conservou apenas a imersão do círio
pascal, remetendo ao costume oriental da imersão da cruz na água, em alusão ao
batismo de Cristo, o qual desce às águas do Jordão para santificá-las.
Diácono mergulha o círio na água batismal |
Após a bênção da água seguia-se sempre a administração do
Batismo propriamente dito, isto é, a ablução ou banho batismal, tanto por
imersão quanto por infusão, como testemunha a Tradição Apostólica (Traditio Apostolica), obra do início do século III atribuída a
Hipólito de Roma [4].
A fonte batismal era escavada no solo, no fundo da qual
podia passar água corrente. Assim, o eleito devia descer para ser batizado e em
seguida subir novamente (gesto fortemente associado à participação na
Morte-Ressurreição de Cristo).
Após a renúncia ao mal e a unção com o Óleo dos Catecúmenos (“óleo do exorcismo”) - caso não tivessem sido antecipadas para a manhã do Sábado Santo -, o eleito despojava-se de suas roupas e adornos e descia à fonte, ajoelhando-se na água.
O Bispo ou sacerdote então o interrogava a respeito da sua fé: “Crês em Deus Pai...? Crês em Jesus Cristo...? Crês no Espírito Santo...?”. A cada resposta afirmativa (“Creio”), o sacerdote o submergia na água (imersão) ou a derramava sobre sua cabeça (infusão).
Batistério de Kelibia (Tunísia) |
O neófito (recém-batizado) então subia novamente da fonte e,
auxiliado pelo padrinho ou madrinha, recebia uma nova veste (que a partir do
século IV era sempre branca).
Seguia-se a unção pós-batismal, isto é, a unção da fronte
com o Óleo do Crisma (chamado na Traditio
de “óleo da ação de graças”). Inicialmente essa unção não estava ligada ao
sacramento da Crisma ou Confirmação, que era administrado em seguida pela
imposição das mãos unida a uma oração epiclética invocando o Espírito Santo.
Por fim, uma vez que o Batismo sempre foi considerado como “iluminação” (cf. Catecismo da Igreja Católica, n. 1216), os neófitos recebiam também uma vela acesa na chama do círio pascal, sendo exortados a ser “luz do mundo” (Mt 5,14-16).
Batistério do Latrão (Roma) |
Concluídos os ritos do Batismo-Confirmação, o Bispo ou
sacerdote regressava à igreja, acompanhado pela solene procissão dos neófitos,
vestidos de branco e com velas acesas, ao canto do Sl 42 (43): “Introibo ad altáre
Dei...”. Entoava-se então o Kyrie
eleyson (Senhor, tende piedade de nós) e o Gloria in excelsis (Glória a Deus nas alturas) e prosseguia a Missa
de Páscoa.
Com o tempo, os ritos batismais da Vigília foram adquirindo
formas mais complexas. Primeiramente, como afirmamos em nossa postagem anterior, no Missale Romanum de 1570 toda a Liturgia Batismal tinha lugar após
as leituras do Antigo Testamento (AT), na seguinte ordem: bênção da água batismal, Batismo (que, após a decadência
do catecumenato de adultos, raramente era celebrado na Vigília) e por fim a
Ladainha de Todos os Santos.
Com a reforma da Semana Santa de 1955, realizada por Pio XII (†1958), o rito fica ainda mais complexo: após
a última leitura do AT entoava-se a 1ª parte da Ladainha (invocação dos
santos). Seguiam-se a bênção da água batismal, o Batismo, a renovação das
promessas batismais e a aspersão dos fiéis ao canto do “Vidi aquam” (“Vi a água...”; cf.
Ez 47). A Ladainha era então retomada com as súplicas a Cristo: “Propítius esto...” (“Sede-nos
propício...”).
Em ambas as formas, concluída a Ladainha
encerrava-se também a “Vigília”. O sacerdote ia para a sacristia e trocava a
capa roxa, usada até então, pela casula branca para a Missa. Entoava-se o Kyrie eleison e começava a Missa com o
Glória, a oração do dia e as leituras do Novo Testamento.
Imagem do Espírito Santo no teto do Batistério Lateranense |
A reforma litúrgica do Concílio Vaticano II simplificou
ainda mais os ritos, eliminando a distinção entre “Vigília” e “Missa”: a
Vigília Pascal é a Missa da Páscoa e “se celebra como um único ato de culto” (Paschalis Sollemnitatis, n. 95).
Prova disso são os paramentos brancos como para a Missa
(túnica, estola e casula branca) que o sacerdote endossa desde o início da
celebração. O único “resquício” da distinção entre “Vigília” e “Missa” é a
iluminação das velas do altar apenas no Glória, após a última leitura do AT.
Atualmente toda a Liturgia Batismal é realizada após a
homilia, na seguinte ordem: Ladainha de Todos os Santos, bênção da água
batismal, Batismo e Confirmação, renovação das promessas batismais e aspersão
dos fiéis.
No Rito Hispano-Mozárabe, em contrapartida, conserva-se a
Liturgia Batismal entre as leituras do Antigo e as do Novo Testamento.
No Rito Ambrosiano, próprio da Arquidiocese de Milão, por sua vez, a Liturgia Batismal
celebra-se como no Rito Romano, conservando-se porém a Ladainha após o Batismo-Confirmação,
antes da renovação das promessas batismais.
Vale destacar que a restauração do catecumenato, isto é, da
Iniciação Cristã de Adultos como modelo de toda catequese (cf. Sacrosanctum Concilium, n. 64), muito favoreceu a recuperação
do caráter batismal da Vigília Pascal.
“Proclamamos a vossa Ressurreição”: A Liturgia Eucarística
Como afirmamos anteriormente, após as leituras do AT e a
Liturgia Batismal, começava a Missa de Páscoa com o Kyrie eleison e o Glória. Este a partir do século X era acompanhado
pelo toque de sinos, conforme a tradição da Inglaterra.
Cabe destacar que até o final do século XI a Vigília era a
única celebração em que os presbíteros podiam cantar o Glória, que nas demais
ocasiões era restrito ao Bispo.
Além do caráter festivo do Glória e sobretudo do Aleluia,
solenemente retomado após sua omissão durante a Quaresma, destacava-se também a
Primeira Comunhão dos neófitos. Com efeito, a Oração Eucarística continha
várias expressões da alegria da Igreja pelos seus novos filhos.
Cristo, o Cordeiro de Deus, sobre os quatro rios do paraíso (Basílica de São Paulo fora-dos-muros, Roma) |
Nessa celebração, porém, os neófitos não podiam ainda
apresentar as oferendas do pão e do vinho ao altar, uma vez que sua instrução
não havia sido completada. Com efeito, o Tempo Pascal (sobretudo a Oitava Pascal) era
o “tempo da mistagogia” (palavra que significa “conduzir ao mistério”), quando
os neófitos eram instruídos sobre os sacramentos a partir das próprias
celebrações que viveram [5].
Como testemunha a Traditio
Apostolica, além da Comunhão do pão e do vinho consagrados, Corpo e Sangue
de Cristo, nesse dia os neófitos recebiam também uma mistura de leite e mel,
que era abençoada no final da Oração Eucarística, antes da oração “Per quem haec ómnia...”.
Esse rito, que perdurou até o século VII, simbolizava que
pelo Batismo somos destinatários das promessas do Senhor, representadas pela
“terra onde corre leite e mel”, imagem do paraíso.
A partir do século IX em Inglaterra e França (e a partir do
século XII também em Roma), após a Comunhão da Vigília Pascal (nessa época
celebrada no início da tarde do Sábado) recitava-se uma versão abreviada das I
Vésperas do Domingo de Páscoa, composta pelo Sl 114 e pelo Magnificat
(Lc 1,46-55).
A reforma da Semana Santa sob Pio XII, devolvendo a Vigília
ao seu horário original, substituiu essas Vésperas pelas “Laudes do Domingo de
Páscoa”, compostas pelo Sl 150 e pelo
Benedictus (Lc 1,68-79). A reforma do Concílio Vaticano II, por sua vez,
suprimiu esse estranho costume.
Notas:
[1] TERTULIANO. Sobre
o Batismo (De Baptismo), 19,1. in: CORDEIRO, José de Leão [org.]. Antologia Litúrgica: Textos Litúrgicos,
Patrísticos e Canónicos do Primeiro Milénio. Secretariado Nacional de
Liturgia: Fatima, 2003, p. 200.
[2] ETÉRIA, Peregrinação
ou Diário de Viagem, n. 38. in: CORDEIRO,
p. 458.
[3] AMBRÓSIO DE MILÃO. Os
Sacramentos (De Sacramentiis), I,
5. in: CORDEIRO, pp. 520-521.
[4] cf. HIPÓLITO
DE ROMA. Tradição Apostólica (Traditio Apostolica), n. 21. in: CORDEIRO, pp. 235-237.
[5] Cumpre destacar, neste sentido, as célebres Catequeses Mistagógicas de São Cirilo de
Jerusalém (†387): após proferir suas 18 Catequeses
pré-batismais aos catecúmenos, centradas no Creio, Cirilo explica nas 5 Catequeses mistagógicas, proferidas na
própria Basílica do Santo Sepulcro, o simbolismo dos três sacramentos da
Iniciação Cristã: Batismo, Confirmação e Eucaristia (cf. CIRILO DE JERUSALÉM. Catequeses
Mistagógicas. Petrópolis: Vozes, 2020).
Referências:
ADAM, Adolf. O Ano
Litúrgico: Sua história e seu significado segundo a renovação litúrgica.
São Paulo: Loyola, 2019, pp. 53-59.
AUGÉ, Matias. Ano
Litúrgico: É o próprio Cristo presente na sua Igreja. São Paulo: Paulinas,
2019, pp. 148-151.172-175.
BERGAMINI, Augusto. Cristo,
festa da Igreja: O ano litúrgico. São Paulo: Paulinas, 1994, pp.
304-310.351-373.
CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO. Paschalis Sollemnitatis: A preparação e celebração das festas pascais.
Brasília: Edições CNBB, 2018. Coleção: Documentos
da Igreja, n. 38.
RIGHETTI, Mario. Historia
de la Liturgia, v. I: Introducción general; El año litúrgico; El Breviario.
Madrid: BAC, 1945, pp. 812-829.
idem. Historia de la Liturgia, v. II: La
Eucaristia; Los Sacramentos; Los Sacramentales. Madrid: BAC, 1946, pp.
686-714.
SCHUSTER, Cardeal Alfredo Ildefonso. Liber Sacramentorum: Note storiche e liturgiche sul Messale Romano;
vol. III: Il Testamento Nuovo nel Sangue del Redentore (La Sacra Liturgia dalla
Settuagesima a Pasqua). Torino-Roma: Marietti, 1933, pp. 23-27.
SCHUSTER, Cardeal Alfredo Ildefonso. Liber Sacramentorum: Note storiche e liturgiche sul Messale Romano; v. IV:
Il Battesimo nello Spirito e nel fuoco (La Sacra Liturgia durante il ciclo
Pasquale). Torino-Roma: Marietti, 1930, pp. 45-72.
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