“Esses são os que vieram da grande tribulação: lavaram e alvejaram as suas vestes no sangue do Cordeiro” (Ap 7,14).
A Solenidade de São Pedro e São Paulo, Apóstolos (29
de junho) é seguida pela Memória dos
Santos Protomártires da Igreja Romana, no dia 30 de junho, cuja história gostaríamos de traçar nesta postagem.
"O triunfo da fé" (Eugène Romain Thirion) |
1. Quem são os Protomártires da Igreja de Roma?
A palavra mártir (μάρτυς) significa “testemunha” em grego. Na tradição cristã, este termo é aplicado àqueles que testemunharam a sua fé usque ad effusionem sanguinis (até a efusão do sangue), preferindo morrer a renegar a Cristo durante as perseguições.
O prefixo πρότος, por sua vez, significa “primeiro”. O
“Protomártir” por excelência é o próprio Cristo, a “Testemunha fiel, o
Primogênito dos mortos” (Ap 1,5), que
ofereceu o sacrifício da sua vida para a nossa salvação.
Dentre os discípulos de Cristo, por sua vez, o “protomártir” é o diácono Santo Estêvão (At 6–7), cuja festa celebramos no dia 26 de dezembro [1].
Os Protomártires da Igreja de Roma são os primeiros
cristãos que foram martirizados nessa cidade, entre os anos 64 e 68, durante a
perseguição do Imperador Nero (†68), após o grande incêndio que
teve início na noite de 18 de julho de 64 e se prolongou por dias, destruindo
boa parte da urbe.
Uma vez que o Imperador aproveitou a destruição de alguns
edifícios para construir um grande palácio para si, a Domus Aurea (Casa dourada), a população romana logo o acusou de ter
provocado o incêndio. Segundo o testemunho do historiador romano Tácito
(†117-120), a fim de se livrar de tais acusações, Nero utilizou os cristãos
como “bode expiatório”, jogando sobre eles a culpa do incêndio.
Grande Incêndio de Roma (Hubert Robert) |
Por que os cristãos?
O próprio Tácito define o Cristianismo como “superstição
perniciosa”, indicando que os cristãos eram “detestados pelos cidadãos romanos
por suas abominações”.
É importante recordar que os romanos eram muito
religiosos, considerando qualquer calamidade como castigo dos deuses, cuja ira
devia ser aplacada com sacrifícios expiatórios.
Os cristãos, assim como os judeus, consideravam que prestar
culto aos deuses romanos - incluindo a cidade de Roma divinizada (dea Roma) e, posteriormente, o próprio
Imperador - era idolatria, uma violação ao primeiro mandamento: “Eu sou o
Senhor teu Deus... Não terás outros deuses além de mim” (Ex 20,1-6; Dt 5,6-10; Mt 4,10; cf. Catecismo da Igreja Católica, nn. 2084-2141).
Assim, uma vez que os cristãos se negavam a cultuar os
deuses (por exemplo, recusando-se a oferecer incenso diante de suas imagens), os
romanos os acusavam de impiedade, sacrilégio e ateísmo, considerando que as
calamidades infligidas sobre a cidade eram o castigo divino por violarem a pax deorum (paz com os deuses).
A perseguição de Nero
Apesar de considerar o Cristianismo uma “superstição
perniciosa”, como vimos, Tácito faz notar o excesso de crueldade com o qual os seguidores de Cristo foram perseguidos:
“Nero culpou e castigou, com supremos refinamentos da
crueldade, uma casta de homens detestados por suas abominações e vulgarmente
chamados cristãos. (...) uma vez condenados a morrer, sua morte devia servir de
distração, de sorte que alguns, costurados em peles de animais, expiravam
despedaçados por cães, outros morriam crucificados, outros foram transformados
em tochas vivas para iluminar a noite. Nero, para estes festejos, abriu de par
em par seus jardins, organizando espetáculos circenses em que ele mesmo
aparecia misturado com o populacho ou, vestido de cocheiro, conduzia sua
carruagem. Suscitou-se assim um sentimento de comiseração até para com homens
cujos delitos mereciam castigos exemplares, tanto mais quanto se pressentia que
eram sacrificados não para o bem público, mas para satisfação da crueldade de
um indivíduo” [2].
"As tochas de Nero" (Henryk Siemiradzki) |
Também o Papa São Clemente I (†97-100) menciona a perseguição em sua Carta aos Coríntios, apontando como exemplos de fidelidade “da nossa
geração” os Apóstolos Pedro e Paulo e a “imensa multidão de eleitos que sofreram
muitos ultrajes e torturas, e se tornaram entre nós belíssimo exemplo” [3].
Uma vez que boa parte dos primeiros cristãos eram estrangeiros
ou escravos, estes eram punidos com as mortes mais vis, como testemunha Tácito: crucificação
(damnatio in crucem), exposição à fogueira (damnatio ad flammas) e aos animais selvagens (damnatio ad bestias).
Os cidadãos romanos, em contrapartida, geralmente eram executados por decapitação
(ad gladium).
Isso se verifica no martírio dos Apóstolos: segundo a
tradição, Pedro, sendo estrangeiro, teria sido crucificado no circo de Nero, próximo à colina do Vaticano, enquanto Paulo, como cidadão romano, fora decapitado
junto à via Ostiense.
Uma vez que o Circo Máximo, principal arena da cidade, havia
sido danificado pelo incêndio, Nero teria “aberto seus jardins” para a execução
dos “criminosos”, como indica Tácito. O “Circo de Nero” (Circus Neronis), com efeito, cuja construção havia sido iniciada
por Calígula (†41), situava-se nos terrenos privados do Imperador.
O circo romano, do latim “circulus”, era uma grande arena em forma de elipse, destinada sobretudo
às corridas de carruagens (ludi circenses).
Por isso Tácito indica que o Imperador tomou parte da execução dos cristãos
“conduzindo sua carruagem”. Não obstante, tanto o Circo de Nero quanto o Circo
Máximo acolhiam também outros espetáculos, incluindo, no caso, a execução de
prisioneiros.
"Circus Neronis" (Pietro Santi Bartoli) |
Confira nossa postagem sobre a história do Coliseu (Anfiteatro Flaviano) e sua relação com o Cristianismo clicando aqui.
Vale recordar, por fim, que a perseguição aos primeiros
cristãos após o incêndio de Roma foi a inspiração para o romance “Quo vadis?”, do escritor polonês Henryk
Sienkiewicz (†1916), que lhe rendeu o Prêmio Nobel de Literatura em 1905. A
obra foi adaptada diversas vezes para o cinema, sendo a versão mais famosa a de
1951.
2. O culto aos Protomártires da Igreja de Roma
Nos séculos seguintes, os cristãos da “Cidade Eterna” cultivaram
o culto ao “luminoso exército dos santos Mártires” (Te Deum) sepultados nos diversos cemitérios e catacumbas da Urbe.
Não conhecemos os nomes ou o número exato dos Protomártires
da Igreja Romana: Tácito e São Clemente falam simplesmente de uma “grande multidão”
(multitudo ingens). Edições do
Martirológio Jeronimiano (Martyrologium Hieronymianum) do século
VIII, indicam que seriam 979 mártires (número certamente hipotético e exagerado),
os quais eram comemorados no dia 29 de junho, junto aos Apóstolos Pedro e
Paulo.
A partir da edição do Martirológio
Romano (Martyrologium Romanum) de 1584, promulgada pelo Papa Gregório XIII (†1585), por sua vez, a comemoração
dos Sancti Protomartyres Romani
passou para o dia 24 de junho, qualificados como “muitos santos Mártires” (“sanctorum plurimorum Martyrum”). Contudo, uma vez que no dia 24 de junho se celebra a
Solenidade da Natividade de São João Batista, sua comemoração limitava-se à
leitura do Martirológio.
"A última prece dos mártires cristãos" (Jean-Léon Gérôme): A obra retrata o martírio dos cristãos no Circo Máximo |
O culto aos Protomártires Romanos receberia um maior
impulso apenas a partir do final do século XIX, com o desenvolvimento da
Arqueologia sacra, tendo como um dos seus “pioneiros” o grande arqueólogo romano Giovanni Battista de
Rossi (†1894).
Nesse período, com efeito, foram instituídos diversos organismos da Santa
Sé relacionados ao tema: a Academia Romana de Arqueologia (1816), a Comissão
de Arqueologia Sacra (1852), o Instituto de Arqueologia Cristã (1925)...
Em relação aos Protomártires Romanos, destaca-se a Pontifícia Academia Cultorum Martyrum, fundada em 1879 como
“Collegium Cultorum Martyrum” por
quatro estudiosos das “antiguidades cristãs”: Mariano Armellini (†1896), Orazio
Marucchi (†1931), Adolfo Hytreck (†1899) e Enrico Stevenson (†1898). Destaca-se
também a contribuição do Monsenhor Carlo Respighi (†1947).
O Collegium foi elevado
a “Pontifícia Academia” em 1995, pelo Papa João Paulo II (†2005), vinculado ao
Pontifício Conselho para a Cultura, tendo como escopo zelar pelo culto dos mártires romanos.
A sede histórica do Collegium
é a igreja de Santa Maria della Pietà
in Camposanto dei Teutonici. Construída no final do século XV
junto ao Campo Santo Teutônico, um cemitério para peregrinos alemães, esta situa-se ao
sul da Basílica de São Pedro, sobre o local do antigo Circo de Nero, justamente onde
foram martirizados os Protomártires Romanos.
Complexo do Campo Santo Teutônico visto da Basílica de São Pedro |
Interior da igreja de Santa Maria della Pietà |
Assim, como testemunha o Beato Cardeal Alfredo
Ildefonso Schuster (†1954) em seu Liber
Sacramentorum, a partir de 1923 o Collegium começou a promover nessa igreja a celebração dos Protomártires no primeiro dia livre
antes da Solenidade de São Pedro e São Paulo: 27 de junho [4].
Nesse dia celebrava-se a Missa na igreja de Santa Maria della Pietà ao pôr-do-sol, seguida de uma
procissão luminosa, ao canto de salmos, até o célebre Obelisco Vaticano.
Este obelisco, trazido do Egito por Calígula, decorava a
“espinha” (spina) do Circo de Nero, a linha no centro da arena que era circundada nas corridas. Após
a destruição do Circo, o obelisco permaneceu em seu lugar, até ser transladado
para a Praça de São Pedro em 1586.
Obelisco Vaticano (Praça de São Pedro) |
Na base do obelisco de granito, encimado por uma cruz de bronze, foram gravadas inscrições em latim que, como nota Schuster, são perfeitamente adequadas à
celebração dos Santos Mártires:
Ecce Crux Domini, fugite partes adversae, vicit Leo de Tribu Iuda.
Christus vincit, Christus regnat, Christus imperat; ab omni malo plebem suam defendat.
Eis a cruz do Senhor, fugi forças inimigas, venceu o Leão da
Tribo de Judá.
Cristo vence, Cristo reina, Cristo impera; que Ele defenda
seu povo contra todo mal.
3. A Memória dos Santos Protomártires da Igreja de Roma
A reforma do Calendário Romano Geral realizada após o
Concílio Vaticano II suprimiu diversas celebrações de santos que careciam de
fundamentação histórica. Assim, com a promulgação do novo Calendário em 1969, foi
instituída para toda a Igreja de Rito Romano a Memória facultativa dos Santos
Protomártires da Igreja de Roma no dia 30
de junho [5].
Nesse dia, a Pontifícia Academia Cultorum Martyrum conserva a tradição da Missa na igreja de Santa Maria della Pietà e da procissão.
Os textos próprios da Memória incluem a oração do dia (coleta), a 2ª leitura do Ofício das Leituras (um
trecho da Carta aos Coríntios de São
Clemente) e antífonas para o cântico evangélico das Laudes e Vésperas (orações
da manhã e da tarde da Liturgia das Horas). As demais orações e leituras
tomam-se do Comum dos Mártires.
Procissão eucarística na Memória dos Santos Protomártires no Vaticano |
Destacamos ainda o “elogio” da festa presente no Martirológio Romano (2001), que é
basicamente o mesmo texto da edição de 1584:
“Os santos protomártires da Santa Igreja Romana, que,
acusados de provocar o incêndio da Urbe, por ordem do imperador Nero foram
cruelmente mortos com vários suplícios: uns foram expostos aos cães cobertos
com peles de animais e por eles devorados; outros crucificados e outros
lançados ao fogo, para que, ao declinar o dia, servissem de lâmpadas noturnas.
Todos eles eram discípulos dos Apóstolos e primícias dos mártires que a Igreja
Romana ofereceu ao Senhor” [6].
Notas:
[1] Sobre o culto dos mártires, confira:
ADAM, Adolf. O Ano
Litúrgico: Sua história e seu significado segundo a renovação litúrgica. São
Paulo: Loyola, 2019, pp. 147-150.
AUGÉ, Matias. Ano
Litúrgico: É o próprio Cristo presente na sua Igreja. São Paulo: Paulinas,
2019, pp. 304-312.
BERGAMINI, Augusto. Cristo,
festa da Igreja: O ano litúrgico. São Paulo: Paulinas, 2004, pp. 480-484.
MORA, Afonso. Os
santos no Ano Litúrgico. in: CONSELHO EPISCOPAL LATINO-AMERICANO (CELAM). Manual de Liturgia, vol. IV: A celebração do Mistério Pascal: Outras
expressões celebrativas do Mistério Pascal e a Liturgia na vida da Igreja.
São Paulo: Paulus, 2007, pp. 82-88.
[2] TÁCITO. Anais (Annales), XV, 44. in:
BETTENSON, Henry [org.] Documentos da
Igreja Cristã. São Paulo: ASTE, 1967, pp. 26-27.
[3] CLEMENTE ROMANO. Carta
aos Coríntios, 5-6. in: PADRES
APOSTÓLICOS. São Paulo, Paulus, 1995, p. 27. Coleção: Patrística, vol. 1.
[4] No dia 28 de junho celebra-se pela manhã a Memória de
Santo Irineu, Bispo e Mártir, e, a partir do pôr-do-sol, a Missa da Vigília de São Pedro e São
Paulo. Vale lembrar que no Brasil a Solenidade de São Pedro e São Paulo é celebrada no domingo que cai entre os dias 28 de junho e 04 de julho.
[5] Antes da reforma litúrgica, o dia 30 de junho era dedicado a uma “Comemoração de São Paulo, Apóstolo”, “duplicação” da Solenidade do dia anterior, que foi sabiamente suprimida.
[6] Fonte: Secretariado Nacional de Liturgia - Portugal.
Referências:
LODI, Enzo. Os Santos
do Calendário Romano: Rezar com os Santos na Liturgia. São Paulo: Paulus,
1992, pp. 234-235.
SCHUSTER, Cardeal Alfredo Ildefonso. Liber Sacramentorum: Note storiche e liturgiche sul Messale Romano;
v. VII: I Santi nel Mistero della
Redenzione (Le Feste dei Santi dalla
Quaresima all'ottava dei Principi degli Apostoli). Torino-Roma: Marietti,
1930, pp. 285-289.
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