As meditações para a Via Sacra presidida pelo Papa Francisco junto ao Coliseu na Sexta-feira Santa de 2019 foram confiadas à Irmã Eugenia Bonetti, Missionária da Consolata e Presidente da Associação Slaves no more, dedicada à luta contra o tráfico de pessoas.
Confira a seguir suas reflexões na íntegra, acompanhadas das ilustrações do livreto da celebração, tomadas da Via Crucis realizada pelo artista espanhol Raúl Berzosa Fernández entre 2016 e 2018 para a igreja de Santa María, Reina de la Familia (Guatemala).
Sexta-Feira Santa
Via-Sacra presidida pelo Papa Francisco
Coliseu, Roma - 19 de abril de 2019
Meditações da Irmã Eugenia Bonetti:
“Com Cristo e com as mulheres no caminho da cruz”
Introdução
Passaram-se já quarenta dias desde a imposição das cinzas, quando começamos o caminho da Quaresma. Hoje revivemos as últimas horas da vida terrena do Senhor Jesus até ao momento em que, suspenso na cruz, gritou o seu «Consummatum est», «Tudo está consumado». Reunidos neste lugar, onde, no passado, milhares de pessoas sofreram o martírio por ter permanecido fiéis a Cristo, queremos agora percorrer este «caminho doloroso» juntamente com todos os pobres, com os excluídos da sociedade e os novos crucificados da história atual, vítimas dos nossos fechamentos, dos poderes e legislações, da cegueira e do egoísmo, mas sobretudo do nosso coração endurecido pela indiferença. Esta é uma doença de que também nós cristãos sofremos. Possa a cruz de Cristo - instrumento de morte, mas também de vida nova que mantém unidos num abraço terra e céu, norte e sul, leste e oeste - iluminar a consciência dos cidadãos, da Igreja, dos legisladores e de quantos se professam seguidores de Cristo, para que a todos chegue a Boa Nova da redenção.
I Estação: Jesus é condenado à morte
V. Nós vos adoramos, Senhor Jesus Cristo, e vos bendizemos.
R. Porque pela vossa Santa Cruz remistes o mundo.
«Nem todo o que Me diz: “Senhor, Senhor” entrará no Reino do Céu, mas sim aquele que faz a vontade de meu Pai que está no Céus» (Mt 7,21).
Senhor, quem mais do que Maria, tua Mãe, soube ser teu discípulo? Ela aceitou a vontade do Pai, inclusive no momento mais escuro da sua vida, e, com o coração despedaçado, ficou ao teu lado. Aquela que Te gerou, trouxe no ventre, acolheu nos braços, nutriu com amor e acompanhou durante a tua vida terrena, não podia deixar de percorrer o mesmo caminho do Calvário e partilhar contigo o momento mais dramático e doloroso da tua e da sua existência.
Senhor, quantas mães vivem ainda hoje a experiência da tua Mãe e choram pela sorte das suas filhas e dos seus filhos! Quantas, depois de os ter gerado e dado à luz, veem-nos padecer e morrer por doença, por falta de comida, de água, de cuidados médicos e de oportunidades de vida e futuro! Pedimos-Te por aqueles que ocupam posições de responsabilidade para que escutem o grito dos pobres que, de todas as partes do mundo, se eleva para Ti: grito de todas aquelas vidas jovens, que de diferentes maneiras são condenadas à morte pela indiferença gerada por políticas excludentes e egoístas. Que não falte a nenhum dos teus filhos o trabalho e o necessário para uma vida honesta e digna.
Rezemos juntos, dizendo: «Senhor, ajuda-nos a fazer a tua vontade».
- Nos momentos de dificuldade e transtorno...
- Nos momentos de sofrimento físico e moral...
- Nos momentos de trevas e solidão,...
Pai nosso...
II Estação: Jesus carrega a cruz
V. Nós vos adoramos, Senhor Jesus Cristo, e vos bendizemos.
R. Porque pela vossa Santa Cruz remistes o mundo.
«Se alguém quer vir após Mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz dia após dia e siga-Me» (Lc 9,23).
Senhor Jesus
é fácil trazer o crucifixo ao peito ou dependurá-lo como ornamento nas paredes
das nossas belas catedrais ou de nossas casas, mas não é tão fácil encontrar e
reconhecer os novos crucificados de hoje: os sem-abrigo, os jovens sem
esperança, sem emprego nem perspectivas, os imigrantes obrigados a viver nas
barracas à margem da nossa sociedade, depois de terem enfrentado tribulações
inauditas. Infelizmente, estes acampamentos, sem segurança, são queimados e
arrasados juntamente com os sonhos e as esperanças de milhares de mulheres e
homens marginalizados, explorados, esquecidos. Além disso, quantas crianças são
discriminadas por causa da sua proveniência, da cor da pele ou da sua condição
social! Quantas mães sofrem a humilhação de ver os seus filhos ridicularizados
e excluídos das oportunidades que têm os seus coetâneos e colegas de escola!
Agradecemos-Te,
Senhor, porque, com a tua própria vida, nos deste exemplo de como se manifesta
o amor verdadeiro e desinteressado pelo próximo, particularmente pelos inimigos
ou, simplesmente, por quem não é como nós. Senhor Jesus, quantas vezes também
nós, como teus discípulos, nos declaramos abertamente teus seguidores nos
momentos em que realizavas curas e prodígios, quando davas de comer à multidão
e perdoavas os pecados. Mas não foi tão fácil compreender-Te quando falavas de
serviço e perdão, de renúncia e sofrimento. Ajuda-nos a saber como colocar
sempre a nossa vida ao serviço dos outros.
Rezemos
juntos, dizendo: «Senhor, ajuda-nos a esperar».
- Quando nos
sentimos abandonados e sozinhos...
- Quando é
difícil seguir os teus passos...
- Quando o
serviço aos outros se torna difícil...
Pai nosso...
Cuius animam gementem, / contristatam et dolentem, / pertransivit gladius.
III Estação: Jesus cai pela primeira vez
V. Nós vos adoramos, Senhor Jesus Cristo, e vos bendizemos.
R. Porque pela vossa Santa Cruz remistes o mundo.
«Ele tomou sobre Si os nossos sofrimentos, carregou as nossas dores» (Is 53,4).
Senhor
Jesus, na estrada íngreme que leva ao Calvário, quiseste experimentar a
fragilidade e fraqueza humanas. Que seria hoje a Igreja sem a presença e a
generosidade de tantos voluntários, os novos samaritanos do terceiro milénio?
Em noite fria de janeiro, numa estrada dos arredores de Roma, três africanas,
pouco mais do que crianças, aninhadas no chão ao redor dum braseiro aqueciam o
seu corpo jovem seminu. Alguns rapazolas que passavam de carro, para se
divertir lançaram material inflamável no fogo, queimando-as gravemente. Naquele
mesmo momento, passou uma das muitas unidades de voluntários de rua que as
socorreram, levando-as ao hospital e acabando depois por alojá-las numa
casa-família. Quanto tempo foi e ainda será necessário para que aquelas meninas
se curem não apenas das queimaduras nos membros, mas também da tristeza e
humilhação de se encontrar com um corpo mutilado e desfigurado para sempre?
Senhor,
agradecemos-Te pela presença de tantos novos samaritanos do terceiro milênio
que ainda hoje vivem a experiência do caminho, inclinando-se com amor e
compaixão sobre as inúmeras feridas físicas e morais de quem vive, cada noite,
o medo e o pavor das trevas, da solidão e da indiferença. Senhor, infelizmente
muitas vezes hoje já não sabemos individuar quem passa necessidade, ver quem
está ferido e humilhado. Muitas vezes reivindicamos os nossos direitos e
interesses, mas esquecemos os dos pobres e dos últimos da fila. Senhor,
concede-nos a graça de não ficar insensíveis às suas lágrimas, aos seus sofrimentos,
ao seu grito de dor, porque, através deles, podemos encontrar-Te.
Rezemos
juntos, dizendo: «Senhor, ajuda-nos a amar».
- Quando
cansa ser samaritano...
- Quando nos
custa perdoar...
- Quando não
queremos ver o sofrimento dos outros...
Pai nosso...
O quam tristis et afflicta / fuit illa benedicta / Mater Unigeniti!
IV Estação: Jesus encontra Maria, sua Mãe
V. Nós vos adoramos, Senhor Jesus Cristo, e vos bendizemos.
R. Porque pela vossa Santa Cruz remistes o mundo.
«Uma
espada trespassará a tua alma. Assim hão de revelar-se os pensamentos de muitos
corações» (Lc 2,35).
Maria, o
velho Simeão predissera-Te, quando foste ao templo para apresentares Jesus
menino e para o rito da purificação, que uma espada trespassaria o teu coração.
Agora é o momento de renovar o teu fiat, a tua adesão ao querer do
Pai, mesmo se o acompanhamento dum filho ao patíbulo, tratado como malfeitor,
provoca uma dor lancinante. Senhor, tem piedade de tantas, demasiadas mães que
deixaram partir as suas jovens filhas para a Europa na esperança de ajudar a
sua família em pobreza extrema, mas encontraram humilhações, desprezo e, às
vezes, até a morte. Como a jovem Tina barbaramente assassinada na estrada
quando tinha apenas vinte anos, deixando uma bebé de poucos meses.
Maria, neste
momento, Tu vives o mesmo drama de tantas mães que sofrem pelos seus filhos que
partiram para outros países na esperança de encontrar oportunidades para um
futuro melhor para eles e suas famílias, mas, infelizmente, o que encontram é
humilhação, desprezo, violência, indiferença, solidão e até a morte. Dá-lhes
força e coragem.
Rezemos
juntos, dizendo: «Senhor, faz que saibamos sempre dar apoio e conforto e estar
presentes para oferecer ajuda».
- Às mães
que choram a sorte dos seus filhos...
- A quem, na
vida, perdeu toda a esperança...
- A quem,
todos os dias, sofre violência e desprezo...
Pai nosso...
Quae moerebat et dolebat, / pia Mater, dum videbat / Nati poenas incliti.
V Estação: O Cireneu ajuda Jesus a levar a cruz
V. Nós vos adoramos, Senhor Jesus Cristo, e vos bendizemos.
R. Porque pela vossa Santa Cruz remistes o mundo.
«Carregai
os fardos uns dos outros e assim cumprireis plenamente a lei de Cristo» (Gl 6,2)
Senhor
Jesus, a caminho do Calvário, sentiste forte o peso e a fadiga de carregar
aquela tosca cruz de madeira. Em vão, esperaste pelo gesto de ajuda vindo dum
amigo, dum dos teus discípulos, duma das inúmeras pessoas cujos sofrimentos
aliviaste. Só um desconhecido, Simão de Cirene, e por constrição Te deu uma
mão. Onde estão hoje os novos cireneus do terceiro milénio? Onde os
encontramos? Quero recordar a experiência dum grupo de religiosas de diferentes
nacionalidades, proveniências e congregações com as quais todos os sábados, há
mais de dezessete anos, visitamos em Roma um Centro para mulheres imigradas sem
documentos: mulheres, frequentemente jovens, à espera de conhecer o seu
destino, oscilando entre expulsão e possibilidade de permanecer. Nestas
mulheres, quanto sofrimento encontramos, mas também quanta alegria ao
depararem-se com religiosas originárias dos seus países, que falam a sua
língua, limpam as suas lágrimas, compartilham momentos de oração e de festa, tornam
menos duros os longos meses passados por detrás de barras de ferro e no asfalto
de cimento!
Por todos os
cireneus da nossa história, para que jamais esmoreça neles o desejo de Te
acolher sob a fisionomia dos últimos da terra, cientes de que, ao acolher os
últimos da nossa sociedade, Te acolhemos a Ti. Que estes samaritanos sejam
porta-voz de quem não tem voz.
Rezemos
juntos, dizendo: «Senhor, ajuda-nos a levar a nossa cruz».
- Quando estamos cansados e desanimados...
- Quando sentimos o peso das nossas fraquezas...
- Quando nos pedes para compartilhar os sofrimentos dos outros...
Pai nosso...
Quis est homo qui non fleret, / Matrem Christi si videret / in tanto supplicio?
VI Estação: A Verônica limpa o rosto de Jesus
V. Nós vos adoramos, Senhor Jesus Cristo, e vos bendizemos.
R. Porque pela vossa Santa Cruz remistes o mundo.
«Sempre
que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a Mim mesmo o
fizestes» (Mt 25,40).
Pensemos nas
crianças que, em tantas partes do mundo, não podem ir à escola, mas são
exploradas nas minas, nos campos, na pesca, vendidas e compradas – por
traficantes de carne humana – para transplante de órgãos, e também usadas e
exploradas nas nossas estradas por muitos, inclusive cristãos, que perderam o
sentido da sacralidade própria e alheia. Como aquela menor de corpinho frágil,
encontrada uma noite em Roma, com uma fila de homens a bordo de carros luxuosos
para dela se aproveitarem. E, no entanto, poderia ter a idade das suas
filhas... Que grande desequilíbrio pode criar esta violência na vida de tantas
jovens que sentem apenas o abuso, a arrogância e a indiferença de quem, de
noite e de dia, as procura, usa, explora, para depois as jogar de novo na estrada
como presa do próximo mercante de vidas!
Senhor
Jesus, limpa os nossos olhos, para sabermos descobrir o teu rosto nos nossos
irmãos e irmãs, especialmente em todas aquelas crianças que, em tantas partes
do mundo, vivem na indigência e na miséria. Crianças privadas do direito a uma
infância feliz, a uma educação escolar, à inocência. Criaturas usadas como
mercadoria de pouco valor, vendidas e compradas à vontade do freguês. Senhor,
pedimos-Te que tenhas piedade e compaixão deste mundo doente e nos ajudes a
redescobrir a beleza da dignidade, nossa e alheia, de seres humanos criados à
tua imagem e semelhança.
Rezemos
juntos, dizendo: «Senhor, ajuda-nos a ver».
- O rosto
das crianças inocentes que pedem ajuda...
- As
injustiças sociais...
- A
dignidade que cada pessoa encerra em si e é espezinhada...
Pai nosso...
Quis non posset contristati / Christi Matrem comtemplari / dolentem cum Filio?
VII Estação: Jesus cai pela segunda vez
V. Nós vos adoramos, Senhor Jesus Cristo, e vos bendizemos.
R. Porque pela vossa Santa Cruz remistes o mundo.
«Ao ser
insultado, não respondia com insultos, mas entregava-Se Àquele que julga
com justiça» (1Pd 2,23).
Quantas
vinganças no nosso tempo! A sociedade atual perdeu a noção do grande valor do
perdão, dom por excelência, remédio para as feridas, fundamento da paz e da
convivência humana. Numa sociedade onde o perdão é visto como fraqueza, Tu,
Senhor, pedes-nos para não nos determos na aparência. E não o fazes com as
palavras, mas sim com o exemplo. Tu, a quem Te maltrata, respondes «por que Me
persegues?», bem sabendo que a verdadeira justiça nunca se pode basear no ódio
e na vingança. Torna-nos capazes de pedir e dar perdão.
«Perdoa-lhes,
Pai, porque não sabem o que fazem» (Lc 23, 34). Também Tu, Senhor,
sentiste o peso da condenação, da rejeição, do abandono, do sofrimento
infligido por pessoas que Te tinham encontrado, acolhido e seguido. Foi na
certeza de que o Pai não Te havia abandonado que encontraste a força para
aceitar a sua vontade, perdoando, amando e oferecendo esperança a quem, como
Tu, hoje caminha pela mesma estrada da zombaria, do desprezo, do escárnio, do
abandono, da traição e da solidão.
Rezemos
juntos, dizendo: «Senhor, ajuda-nos a dar conforto».
- A quem se
sente ofendido e insultado...
- A quem se
sente traído e humilhado...
- A quem se
sente julgado e condenado...
Pai nosso...
Pro peccatis suae gentis / vidit Jesum in tormentis, / et flagellis subditum.
VIII Estação: Jesus encontra as mulheres
V. Nós vos adoramos, Senhor Jesus Cristo, e vos bendizemos.
R. Porque pela vossa Santa Cruz remistes o mundo.
«Filhas
de Jerusalém, não choreis por Mim, chorai antes por vós mesmas e pelos vossos filhos»
(Lc 23,28).
A situação
social, econômica e política dos migrantes e das vítimas do tráfico de seres humanos
interpela-nos e mexe conosco. Devemos ter a coragem – como afirma vigorosamente
o Papa Francisco - de denunciar como crime contra a humanidade o tráfico de
seres humanos. Todos nós, especialmente os cristãos, devemos crescer na
consciência de que somos todos responsáveis pelo problema e todos podemos e
devemos ser parte da solução. A todos, mas sobretudo a nós mulheres, é pedida a
coragem do desafio. A coragem de saber ver e agir, individualmente e como
comunidade. Só juntando as nossas pobrezas é que estas poderão tornar-se uma
grande riqueza, capaz de mudar a mentalidade e aliviar os sofrimentos da
humanidade. O pobre, o estrangeiro, o diferente não deve ser visto como um
inimigo a rejeitar ou a combater, mas sim como um irmão ou uma irmã a acolher e
ajudar. Não são um problema, mas um recurso precioso para as nossas cidadelas
blindadas, onde o bem-estar e o consumo não aliviam o crescente cansaço e
fadiga.
Senhor,
ensina-nos a possuir o teu olhar; aquele olhar de acolhimento e misericórdia,
com que vês os nossos limites e os nossos medos. Ajuda-nos a ver assim as
divergências de ideias, costumes e perspectivas. Ajuda a reconhecermo-nos como
parte da mesma humanidade e a fazermo-nos promotores de novos e ousados
caminhos de acolhimento da pessoa diferente, para juntos criarmos comunidade,
família, paróquia e sociedade civil.
Rezemos
juntos, dizendo: «Ajuda-nos a compartilhar o sofrimento alheio».
- Com quem
sofre pela morte de entes queridos...
- Com quem
sente dificuldade em pedir ajuda e conforto...
- Com quem
experimentou abusos e violências...
Pai nosso...
Eia, mater, fons amoris, / me sentire vim doloris / fac, ut tecum lugeam.
IX Estação: Jesus cai pela terceira vez
V. Nós vos adoramos, Senhor Jesus Cristo, e vos bendizemos.
R. Porque pela vossa Santa Cruz remistes o mundo.
«Foi
maltratado, mas humilhou-Se e não abriu a boca, como um cordeiro que é levado
ao matadouro» (Is 53,7).
Senhor, pela
terceira vez, caíste, exausto e humilhado, sob o peso da cruz. Precisamente
como tantas moças, forçadas à vida de estrada por grupos de traficantes de
escravos, as quais não aguentam a fadiga e a humilhação de ver o seu corpo
jovem manipulado, abusado, destruído, juntamente com os seus sonhos. Aquelas
jovens mulheres sentem-se como que desdobradas: por um lado procuradas e usadas,
por outro rejeitadas e condenadas por uma sociedade que se recusa a ver este
tipo de exploração, causado pela afirmação da cultura do usa e joga fora. Numa
das muitas noites passadas pelas estradas de Roma, eu procurava uma jovem que
acabava de chegar à Itália. Não a vendo no seu grupo, chamava-a insistentemente
pelo nome: «Mercy». Na escuridão, vislumbrei-a aninhada e adormecida na beira
da estrada. À minha chamada, acordou e disse-me que não aguentava mais. «Estou
exausta»: repetia. Pensei na sua mãe: se soubesse o que aconteceu à filha,
secavam-lhe as lágrimas.
Senhor,
quantas vezes nos fizeste esta pergunta incômoda: «Onde está o teu irmão? Onde
está a tua irmã?» Quantas vezes nos lembraste que o seu grito lancinante tinha
chegado a Ti! Ajuda-nos a compartilhar o sofrimento e a humilhação de tantas
pessoas tratadas como desperdício. É demasiado fácil condenar seres humanos e
situações de mal-estar que humilham a nossa falsa modéstia, mas não é tão fácil
assumirmos as nossas responsabilidades como indivíduos, governos e também
comunidades cristãs.
Rezemos
juntos, dizendo: «Senhor, dá-nos força e coragem para denunciar».
- À vista da
exploração e da humilhação vivida por tantos jovens...
- À vista da
indiferença e do silêncio de muitos cristãos...
- À vista de
leis injustas carentes de humanidade e solidariedade...
Pai nosso...
Fac ut ardeat cor meum / in amando Christum Deum, / ut sibi complaceam.
X Estação: Jesus é despojado das suas vestes
V. Nós vos adoramos, Senhor Jesus Cristo, e vos bendizemos.
R. Porque pela vossa Santa Cruz remistes o mundo.
«Revesti-vos,
pois, de sentimentos de misericórdia, de bondade, de humildade, de mansidão, de
paciência» (Cl 3,12).
Dinheiro,
bem-estar, poder. São os ídolos de todos os tempos. Também e sobretudo do
nosso, que se vangloria de passos enormes dados no reconhecimento dos direitos
da pessoa. Tudo é adquirível, inclusive o corpo dos menores, depredados da sua
dignidade e do seu futuro. Esquecemos a centralidade do ser humano, a sua
dignidade, beleza, força. Enquanto no mundo se vão levantando muros e
barreiras, queremos recordar e agradecer àqueles que nestes últimos meses, com
funções diferentes, arriscaram a própria vida, especialmente no mar Mediterrâneo,
para salvar a vida de tantas famílias à procura de segurança e oportunidades.
Seres humanos, em fuga de pobreza, ditaduras, corrupção, escravidão.
Ajuda-nos,
Senhor, a redescobrir a beleza e a riqueza que cada pessoa e cada povo encerram
em si mesmos como um presente teu, único e irrepetível, para ser colocado ao
serviço de toda a sociedade e não para servir interesses pessoais. Pedimos-Te,
Jesus, que o teu exemplo e o teu ensinamento de misericórdia e perdão, de
humildade e paciência nos tornem um pouco mais humanos e, consequentemente,
mais cristãos.
Rezemos
juntos, dizendo: «Senhor, dá-nos um coração cheio de misericórdia».
- Perante a
avidez do prazer, do poder e do dinheiro...
- Perante as
injustiças infligidas aos pobres e aos mais frágeis...
- Perante a
miragem de interesses pessoais...
Pai nosso...
Sancta Mater, istud agas, / Crucifixi fige plagas / cordi meo valide.
XI Estação: Jesus é pregado na cruz
V. Nós vos adoramos, Senhor Jesus Cristo, e vos bendizemos.
R. Porque pela vossa Santa Cruz remistes o mundo.
«Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem» (Lc 23,34).
A nossa
sociedade proclama a igualdade em direitos e dignidade de todos os seres
humanos. Mas pratica e tolera a desigualdade. Aceita até as suas formas mais
extremas. Homens, mulheres e crianças são comprados e vendidos como escravos
pelos novos mercantes de seres humanos. Depois, as vítimas deste tráfico são
exploradas por outros indivíduos. E por fim jogadas fora, como mercadoria sem
valor. Quantos enriquecem devorando a carne e o sangue dos pobres!
Senhor,
quantas pessoas acabam ainda hoje pregadas numa cruz, vítimas duma exploração
desumana, privadas da dignidade, da liberdade, do futuro. O seu grito de ajuda
interpela-nos como homens e mulheres, como governos, como sociedade e como
Igreja. Como é possível continuarmos a crucificar-Te, tornando-nos cúmplices do
tráfico de seres humanos? Dá-nos olhos para ver e um coração para sentir os
sofrimentos de tantas pessoas que ainda hoje são pregadas na cruz pelos nossos
sistemas de vida e consumo.
Rezemos
juntos, dizendo: «Senhor, piedade».
- Pelos
novos crucificados de hoje, espalhados por toda a terra...
- Pelos
poderosos e legisladores da nossa sociedade...
- Por quem
não sabe perdoar nem sabe amar...
Pai nosso...
Tui Nati vulnerati, / tam dignati pro me pati, / poenas mecum divide.
XII Estação: Jesus morre na cruz
V. Nós vos adoramos, Senhor Jesus Cristo, e vos bendizemos.
R. Porque pela vossa Santa Cruz remistes o mundo.
«Meu
Deus, meu Deus, porque Me abandonaste?» (Mc 15,34).
Também Tu,
Senhor, sentiste na cruz o peso da zombaria, do escárnio, dos insultos, das
violências, do abandono, da indiferença. Apenas Maria, tua Mãe, e poucas mais
discípulas permaneceram lá, testemunhas do teu sofrimento e da tua morte. Que o
seu exemplo nos inspire a comprometer-nos para não deixar sentir a solidão a
quantos agonizam hoje nos inúmeros calvários espalhados pelo mundo, incluindo
os campos de arrecadação que parecem «lágueres» nos países de trânsito, os
navios a que é recusado um porto seguro, as longas negociações burocráticas
para o destino final, os centros de permanência, os pontos de acesso, os campos
para trabalhadores sazonais.
Nós Te
pedimos, Senhor: ajuda a aproximar-nos dos novos crucificados e desesperados do
nosso tempo. Ensina-nos a limpar as suas lágrimas, a confortá-los como souberam
fazer Maria e as outras mulheres ao pé da tua cruz.
Rezemos
juntos, dizendo: «Senhor, ajuda-nos a dar a nossa vida».
- A quantos
sofreram injustiças, ódio e vingança...
- A quantos
foram injustamente caluniados e condenados...
- A quantos
se sentem sozinhos, abandonados e humilhados...
Pai nosso...
Vidit suum dulcem Natum / morientem desolatum / dum emisit spiritum.
XIII Estação: Jesus é descido da cruz
V. Nós vos adoramos, Senhor Jesus Cristo, e vos bendizemos.
R. Porque pela vossa Santa Cruz remistes o mundo.
«Se o
grão de trigo, lançado à terra, não morrer, fica só; mas, se morrer, dá
muito fruto» (Jo 12,24).
Quem se
lembra, nesta época de notícias depressa arquivadas, daquelas vinte e seis
jovens nigerianas engolidas pelas ondas, cujos funerais foram celebrados em
Salerno? Foi duro e longo o seu calvário. Primeiro, a travessia do deserto do
Saara, empilhadas em transportes improvisados. Depois, a paragem forçada nos
espaventosos centros de arrecadação na Líbia. Por fim, o salto para o mar, onde
encontraram a morte às portas da «terra prometida». Duas delas traziam no
ventre o dom duma nova vida, bebés que nunca verão a luz do sol. Mas a sua
morte, como a de Jesus descido da cruz, não foi em vão. Todas estas vidas,
confiamo-las à misericórdia do Pai nosso e de todos, mas sobretudo Pai dos
pobres, dos desesperados e dos humilhados.
Senhor,
nesta hora, ouvimos ressoar mais uma vez o grito que o Papa Francisco elevou de
Lampedusa, meta da sua primeira viagem apostólica: «Quem chorou?» E agora,
depois de naufrágios sem fim, continuamos a gritar: «Quem chorou?» Quem
chorou?: perguntamo-nos diante daqueles vinte e seis caixões alinhados e
encimados por uma rosa branca. Apenas cinco delas foram identificadas. Com ou
sem nome, todas elas, porém, são nossas filhas e irmãs. Todas merecem respeito
e memória. Todas nos pedem para nos sentirmos responsáveis: instituições,
autoridades e nós também, com o nosso silêncio e a nossa indiferença.
Rezemos
juntos, dizendo: «Senhor, ajuda-nos a compartilhar o pranto».
- Perante os
sofrimentos alheios...
- Perante
todos os caixões sem nome...
- Perante o
choro de tantas mães...
Pai nosso...
Fac me tecum pie flere, / Crucifixo condolere, / donec ego vixero.
XIV Estação: Jesus é depositado no sepulcro
V. Nós vos adoramos, Senhor Jesus Cristo, e vos bendizemos.
R. Porque pela vossa Santa Cruz remistes o mundo.
«Tudo
está consumado» (Jo 19,30).
O deserto e
os mares tornaram-se os novos cemitérios de hoje. Perante estas mortes, não há
respostas. Mas há responsabilidades. Irmãos que deixam morrer outros irmãos.
Homens, mulheres, crianças que não pudemos ou não quisemos salvar. Enquanto os
governos discutem, fechados nos palácios do poder, o Saara enche-se de
esqueletos de pessoas que não resistiram à fadiga, à fome, à sede. Quanta dor
custam os novos êxodos! Quanta crueldade que se encarniça sobre quem foge: as
viagens do desespero, as extorsões e as violências, o mar transformado em
túmulo de água!
Senhor,
faz-nos entender que somos todos filhos do mesmo Pai. Possa a morte do teu
Filho Jesus dar aos chefes das nações e aos responsáveis pela legislação a
consciência do seu papel na defesa de toda a pessoa criada à tua imagem e
semelhança.
Pai nosso...
Quando corpus morietur, / fac ut animae donetur / paradisi gloria. Amen.
Conclusão
Queremos
lembrar a história da pequenina Favour, de nove meses, que deixou a Nigéria
juntamente com seus jovens pais à procura dum futuro melhor na Europa. Durante
a longa e perigosa viagem no Mediterrâneo, a mãe e o pai foram mortos
juntamente com centenas de outras pessoas que se haviam confiado a traficantes
sem escrúpulos para poder chegar à «terra prometida». Só Favour sobreviveu;
como Moisés, também ela foi salva das águas. Que a sua vida se torne luz de
esperança no caminho rumo a uma humanidade mais fraterna!
No final da
tua Via-Sacra, pedimos-Te, Senhor, que nos ensines a permanecer vigilantes,
juntamente com a tua Mãe e as mulheres que Te acompanharam no Calvário, à
espera da tua ressurreição. Que esta seja farol de esperança, alegria, vida
nova, fraternidade, acolhimento e comunhão entre os povos, as religiões e as
leis, para que cada filho e filha do homem sejam verdadeiramente reconhecidos
na sua dignidade de filho e filha de Deus e nunca mais sejam tratados como
escravos!
Oração final do Papa Francisco e Bênção Apostólica
Irmã Eugenia Bonetti, autora das meditações |
Para acessar outros modelos de meditações para a Via Sacra, confira nossa postagem sobre a história da Via Sacra presidida pelo Papa no Coliseu.
Postagem publicada originalmente em 25 de abril de 2019. Revista em 21 de julho de 2022.
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