quinta-feira, 24 de março de 2022

História da Solenidade da Anunciação do Senhor

“E o Verbo se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1,14).

A Solenidade do Natal do Senhor, no dia 25 de dezembro, é o centro do “Ciclo da Encarnação” do Ano Litúrgico. Não obstante, uma vez que a vida tem início na concepção, nove meses antes do nascimento [1], é justo que a Igreja celebre também a Solenidade da Anunciação do Senhor, quando Jesus Cristo “se encarnou pelo Espírito Santo, no seio da Virgem Maria, e se fez homem” (Símbolo Niceno-Constantinopolitano).

"Anunciação" (Fra Angelico, séc. XV)

1. As origens da Festa da Anunciação no Oriente

Vale lembrar que o nascimento do Senhor começa a ser celebrado pela Igreja no século IV. A data de 25 de dezembro foi escolhida por sua proximidade com o solstício de inverno no hemisfério norte, o dia mais curto do ano. A partir dessa data, portanto, os dias ficam mais longos: assim, a Igreja quis expressar que Cristo é “o sol nascente que nos veio visitar” (cf. Lc 1,78-79).

A festa da Anunciação tem sua origem pouco após a instituição da festa do Natal, no contexto do Concílio de Éfeso (431), que proclamou o dogma da maternidade divina de Maria. Ao afirmar que Maria é Mãe de Deus, o Concílio na verdade queria afirmar que Jesus é verdadeiro Deus e verdadeiro homem (tema que será retomado no Concílio de Calcedônia, em 481).

Assim, enquanto de certa forma a celebração do Natal enfatizava a humanidade de Jesus, nascido de Maria segundo a carne, a Anunciação destacava sua divindade, à luz das palavras do anjo (Lc 1,26-38).

A festa da Anunciação no dia 25 de março, nove meses antes do Natal, popularizou-se no Oriente entre os séculos VI e VII, como testemunha, por exemplo, o Chronicon Paschale da igreja de Alexandria, do ano de 624.

Como o Natal está ligado ao início do inverno no hemisfério norte, a Anunciação se situa junto ao equinócio de primavera. Esse dia, segundo uma antiga tradição, era considerado como a data da criação do mundo: a festa da Anunciação, portanto, proclama a nova criação que se inicia no seio de Maria.

Ícone bizantino da Anunciação (séc. XII)

Confira nossa postagem sobre o simbolismo do ícone da Anunciação clicando aqui.

Além disso, havia uma tradição segundo a qual a vida terrena de Jesus teria durado um número exato de anos. Portanto, 25 de março seria tanto o dia da sua Concepção quanto o dia da sua Morte. Tal tradição é corroborada pela comemoração do ladrão penitente no dia 25 de março (cf. Lc 23,39-43). Os cristãos coptas, por sua vez, associam a Anunciação não com o dia da Morte do Senhor, mas sim com o dia da sua Ressurreição.

Uma vez mencionado o Mistério Pascal da Morte-Ressurreição do Senhor, uma dificuldade em relação à celebração do dia 25 de março é que normalmente coincide com o período da Quaresma, às vezes com a própria Semana Santa (e, mais raramente, com a Oitava Pascal).

Assim, como veremos a seguir, a festa não é celebrada com grande solenidade no Ocidente. No Oriente, porém, a Anunciação celebra-se mesmo quando coincide com um dia da Semana Santa, como já havia prescrito o Concílio de Trullo (ou Trullano), realizado em Constantinopla no ano de 692.

Com efeito, a Anunciação é uma das Doze Grandes Festas da tradição bizantina: o ícone desse evento salvífico encontra-se em um lugar de grande destaque, nas portas centrais da iconostase, ladeado pela representação dos quatro Evangelistas. A porta indica, pois, o ingresso de Deus na humanidade ao encarnar-se no seio da Virgem Maria.

Ícones do Anjo e da Virgem, presentes nas portas centrais da iconostase

Na tradição bizantina também está relacionado à Anunciação o sábado que antecede o V Domingo da Quaresma, conhecido como “sábado do Akathistos”, uma vez que neste dia se entoa este célebre hino em honra da Mãe de Deus.

Para acessar nossa postagem sobre o ícone do Akathistos, clique aqui.

“Hoje é o começo de nossa salvação e a manifestação do mistério preparado desde a eternidade:
o Filho de Deus torna-se Filho da Virgem e o arcanjo Gabriel anuncia a graça.
Por isso, com ele aclamamos à Mãe de Deus:
‘Salve, ó cheia de graça, o Senhor é contigo!’”
(Tropárion bizantino da festa da Anunciação) [2].

2. A Festa da Anunciação no Ocidente

No Ocidente, a festa da Anunciação foi introduzida pelo Papa São Sérgio I (†701). Apesar de ter nascido em Palermo (Itália), sua família era de origem síria: portanto, após sua eleição como Bispo de Roma em 687, popularizou diversas festas orientais, incluindo a Anunciação do Senhor [3].

Escultura de São Sérgio I, Papa (†701)
Catedral de Palermo (Itália)

Apesar de ter sido bem aceita em Roma, como atestam os Sacramentários Gelasiano (séc. VII-VIII) e Gregoriano (séc. VIII), a festa encontrou resistências em outras igrejas do Ocidente, uma vez que coincide com o tempo da Quaresma:

- em Milão e Ravenna (como testemunha São Pedro Crisólogo no século V) celebrava-se a Encarnação no domingo anterior ao Natal, com a proclamação do Evangelho da Anunciação.

O Rito Ambrosiano, próprio da Arquidiocese de Milão, embora posteriormente tenha acolhido a festa de 25 de março, até hoje conserva a “festa da Encarnação” no último domingo do Advento.

- na Espanha (Rito Hispano-Mozárabe) a Anunciação é celebrada até hoje uma semana antes do Natal, no dia 18 de dezembro, como prescrito pelo X Concílio de Toledo em 656.

Essa celebração foi acolhida no Rito Romano no século XVIII como Exspectatio Partus Beatae Mariae Virginis (Expectação ou Expectativa do Parto da Bem-aventurada Virgem Maria, dita também “Nossa Senhora do Ó”), posteriormente suprimida para dar destaque à Solenidade da Imaculada Conceição de Maria, no dia 08 de dezembro.

Com efeito, no Advento do Rito Romano, tempo fortemente mariano, o Evangelho da Anunciação é lido em três ocasiões: no IV Domingo do Advento do ano B; no dia 20 de dezembro; e na Missa votiva de Nossa Senhora no Advento (chamada propriamente “Maria na Anunciação do Senhor”).

Confira também nossa postagem sobre a tradição das “Missas Rorate” no Advento clicando aqui.

No Rito Romano, de fato, durante muitos séculos se enfatizou demais o papel da Virgem Maria na festa da Anunciação. Já o Papa Sérgio I havia prescrito uma procissão festiva em honra da Mãe de Deus da igreja de Santo Adriano al Foro até a Basílica de Santa Maria Maior no dia 25 de março, procissão que teria sido realizada até o final do século XII.

Mosaico da Anunciação na Basílica de Santa Maria Maior (Roma)
(Jacopo Torriti - séc. XIII)

No Liber Pontificalis, cuja parte mais antiga remonta a meados do século VI, encontram-se ainda os termos “Anunciação de Cristo” ou “Anunciação do Senhor”, “Concepção de Cristo” e “Encarnação de Cristo”. Em calendários posteriores, porém, a festa passa a ser nomeada como “Anunciação de Maria”.

3. A atual Solenidade da Anunciação do Senhor no Rito Romano

A celebração readquiriu sua centralidade cristológica com a reforma do Concílio Vaticano II, sem com isso diminuir a participação da Virgem Maria no mistério da Anunciação, como indica o Papa São Paulo VI (†1978) em sua Exortação Apostólica Marialis cultus (1974):

“Para a solenidade da Encarnação do Verbo, no Calendário Romano, com motivada decisão, foi reatado o título antigo ‘Anunciação do Senhor’; no entanto, a celebração era e continua a ser festa, conjuntamente, de Cristo e da Virgem Maria: do Verbo que se torna ‘filho de Maria’ (Mc 6,3) e da Virgem que se torna Mãe de Deus” (n. 6).

Jesus Cristo e Maria, com efeito, como indicam as leituras e orações da celebração, são o “novo Adão” e a “nova Eva”, unidos na obediência ao Pai (cf. Sl 39,8-9; Hb 10,4-10; Lc 1,38).

A presença de Maria é reforçada também na Liturgia das Horas: além dos três hinos próprios para a Solenidade, nas II Vésperas entoa-se justamente o hino do Comum de Nossa Senhora:
I Vésperas: Agnoscat omne saeculum (Reconheça o mundo inteiro);
Ofício das Leituras: Iam caeca vis mortalium (A geração dos mortais);
Laudes: O lux, salutis nuntia (Ó luz que o anjo traz à Virgem);
II Vésperas: Ave Maris stella (Ave, do mar Estrela), do Comum de Nossa Senhora [4].

Dentre as reformas do Concílio Vaticano II que favorecem a centralidade cristológica da festa podemos citar: a antífona de entrada (Hb 10,5.7) e o salmo da Missa (Sl 39, substituindo o Sl 44), além do novo Prefácio próprio, “O mistério da Encarnação” (até então tomava-se o Prefácio de Nossa Senhora).

Mosaico da Anunciação na Basílica de Lourdes (França)
(Melchior Doze - séc. XIX)

Cumpre recordar que quando o dia 25 de março cai na Semana Santa (ou, mais raramente, na Oitava Pascal), sua celebração é transferida para o próximo dia litúrgico livre: a segunda-feira da II semana da Páscoa, uma vez que tanto a Semana Santa quanto a Oitava Pascal têm precedência sobre as Solenidades do Senhor.

Quando, por sua vez, o dia 25 de março cai em um domingo da Quaresma, a Anunciação celebra-se no dia seguinte (segunda-feira), sem I Vésperas, uma vez que os domingos desse tempo também possuem precedência sobre as Solenidades.

Ainda sobre a celebração da Solenidade da Anunciação do Senhor, além de todos os textos próprios, vale recordar a rubrica que prevê a genuflexão durante o Creio, às palavras “E se encarnou...” (Símbolo Niceno-Constantinopolitano) ou “Que foi concebido...” (Símbolo Apostólico).

A mesma rubrica é prevista para a Solenidade do Natal do Senhor, indicando a unidade entre as duas celebrações. Em ambas convém recitar o Credo Niceno-Constantinopolitano, que exprime melhor o mistério da Encarnação.

Na piedade popular, por fim, além de ser o primeiro dos mistérios do Rosário, a Anunciação é recordada na célebre oração do Ângelus [5]:

V. O Anjo do Senhor anunciou a Maria.
R. E Ela concebeu do Espírito Santo.
Ave Maria...

V. Eis aqui a serva do Senhor.
R. Faça-se em mim segundo a vossa palavra.
Ave Maria...

V. E o Verbo se fez carne.
R. E habitou entre nós.
Ave Maria...

A oração do Ângelus inclui a coleta (oração do dia) do IV Domingo do Advento, com a qual concluímos também nossa postagem:

“Derramai, ó Deus, a vossa graça em nossos corações, para que, conhecendo, pela mensagem do Anjo a Encarnação do vosso Filho, cheguemos, por sua Paixão e Cruz, à glória da Ressurreição. Por nosso Senhor Jesus Cristo, vosso Filho, na unidade do Espírito Santo. Amém” [6].

Anunciação (John William Waterhouse - séc. XX)

Confira também:

Notas:

[1] Sobre o valor da vida desde a concepção, cf. Catecismo da Igreja Católica, nn. 2270-2274; sobre a concepção de Cristo, por sua vez, confira os nn. 456-511.

[2] SPERANDIO, João Manoel; TAMANINI, Paulo Augusto [org.]. Liturgikon: Próprio das Festas no Rito Bizantino. Teresina: Editora da Universidade Federal do Piauí, 2015, p. 45.

[3] Dentre as festas orientais introduzidas ou popularizadas pelo Papa Sérgio I em Roma incluem-se, além da Anunciação: a Apresentação do Senhor (02 de fevereiro), a Assunção de Maria (15 de agosto), a Natividade de Maria (08 de setembro) e a Exaltação da Santa Cruz (14 de setembro).

[4] cf. OFÍCIO DIVINO. Liturgia das Horas segundo o Rito Romano. Tradução para o Brasil da segunda edição típica. São Paulo: Paulus, 2000, v. II, pp. 1495-1516.

[5] cf. Diretório sobre Piedade Popular e Liturgia, n. 195 (CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO E A DISCIPLINA DOS SACRAMENTOS. Diretório sobre Piedade Popular e Liturgia. São Paulo: Paulinas, 2003, pp. 166-167).

[6] MISSAL ROMANO, Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1991, p. 132.

Referências:

ADAM, Adolf. O Ano Litúrgico: Sua história e seu significado segundo a renovação litúrgica. São Paulo: Loyola, 2019, pp. 112-113.

DONADEO, Madre Maria. O Ano Litúrgico Bizantino. São Paulo: Ave Maria, 1998, pp. 56-60.

HOLWECK, Frederick. The Feast of the Annunciation. in: The Catholic Encyclopedia, vol. 1, 1907. Disponível em: New Advent.

RIGHETTI, Mario. Historia de la Liturgia, v. I: Introducción general; El año litúrgico; El Breviario. Madrid: BAC, 1945, pp. 912-914.

SCHUSTER, Cardeal Alfredo Ildefonso. Liber Sacramentorum: Note storiche e liturgiche sul Messale Romano; v. VII: I Santi nel Mistero della Redenzione (Le Feste dei Santi dalla Quaresima all'ottava dei Principi degli Apostoli). Torino-Roma: Marietti, 1930, pp. 75-80.

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