“E o Verbo se fez
carne e habitou entre nós” (Jo 1,14).
A Solenidade do Natal do Senhor, no dia 25 de dezembro, é o
centro do “Ciclo da Encarnação” do Ano Litúrgico. Não obstante, uma vez que a vida tem
início na concepção, nove meses antes do nascimento [1], é justo que a Igreja
celebre também a Solenidade da Anunciação do Senhor, quando Jesus Cristo “se
encarnou pelo Espírito Santo, no seio da Virgem Maria, e se fez homem” (Símbolo Niceno-Constantinopolitano).
1. As origens da Festa
da Anunciação no Oriente
Vale lembrar que o nascimento do Senhor começa a ser celebrado pela Igreja no século IV. A data de 25 de dezembro foi
escolhida por sua proximidade com o solstício de inverno no hemisfério norte, o
dia mais curto do ano. A partir dessa data, portanto, os dias ficam mais
longos: assim, a Igreja quis expressar que Cristo é “o sol nascente que nos
veio visitar” (cf. Lc 1,78-79).
A festa da Anunciação tem sua origem pouco após a instituição da festa do Natal, no contexto do
Concílio de Éfeso (431), que proclamou o dogma da maternidade divina de Maria. Ao
afirmar que Maria é Mãe de Deus, o Concílio na verdade queria afirmar que Jesus
é verdadeiro Deus e verdadeiro homem (tema que será retomado no Concílio de
Calcedônia, em 481).
Assim, enquanto de certa forma a celebração do Natal
enfatizava a humanidade de Jesus, nascido de Maria segundo a carne, a Anunciação destacava sua divindade, à luz das palavras do anjo (Lc 1,26-38).
A festa da Anunciação no dia 25 de
março, nove meses antes do Natal, popularizou-se no Oriente entre os séculos VI e VII, como testemunha, por exemplo, o Chronicon Paschale da
igreja de Alexandria, do ano de 624.
Como o Natal está ligado ao início do inverno no
hemisfério norte, a Anunciação se situa junto ao equinócio de primavera. Esse
dia, segundo uma antiga tradição, era considerado como a data da criação do
mundo: a festa da Anunciação, portanto, proclama a nova criação que se inicia no
seio de Maria.
Ícone bizantino da Anunciação (séc. XII) |
Confira nossa postagem sobre o simbolismo do ícone da Anunciação clicando aqui.
Além disso, havia uma tradição segundo a qual a vida terrena
de Jesus teria durado um número exato de anos. Portanto, 25 de março
seria tanto o dia da sua Concepção quanto o dia da sua Morte. Tal tradição é
corroborada pela comemoração do ladrão penitente no dia 25 de março (cf. Lc 23,39-43). Os cristãos coptas, por sua vez, associam a Anunciação não com o dia da Morte do Senhor, mas sim com o dia da sua Ressurreição.
Uma vez mencionado o Mistério Pascal da Morte-Ressurreição do Senhor, uma dificuldade em
relação à celebração do dia 25 de março é que normalmente coincide com o período da Quaresma, às
vezes com a própria Semana Santa (e, mais raramente, com a Oitava Pascal).
Assim, como veremos a seguir, a festa não é celebrada com
grande solenidade no Ocidente. No Oriente, porém, a Anunciação celebra-se mesmo
quando coincide com um dia da Semana Santa, como já havia prescrito o Concílio
de Trullo (ou Trullano), realizado em Constantinopla no ano de 692.
Com efeito, a Anunciação é uma das Doze Grandes Festas da tradição bizantina: o ícone desse evento salvífico encontra-se em um lugar de
grande destaque, nas portas centrais da iconostase, ladeado pela representação
dos quatro Evangelistas. A porta indica, pois, o ingresso de Deus na
humanidade ao encarnar-se no seio da Virgem Maria.
Ícones do Anjo e da Virgem, presentes nas portas centrais da iconostase |
Na tradição bizantina também está relacionado à Anunciação o
sábado que antecede o V Domingo da Quaresma, conhecido como “sábado do Akathistos”, uma vez que neste dia se
entoa este célebre hino em honra da Mãe de Deus.
Para acessar nossa postagem sobre o ícone do Akathistos, clique aqui.
“Hoje é o começo de nossa salvação e a manifestação do
mistério preparado desde a eternidade:
o Filho de Deus torna-se Filho da Virgem
e o arcanjo Gabriel anuncia a graça.
Por isso, com ele aclamamos à Mãe de Deus:
‘Salve, ó cheia de graça, o Senhor é contigo!’”
(Tropárion bizantino da festa da Anunciação) [2].
2. A Festa da Anunciação
no Ocidente
No Ocidente, a festa da Anunciação foi introduzida pelo Papa São
Sérgio I (†701). Apesar de ter nascido em Palermo (Itália), sua família era de origem síria: portanto, após sua eleição como Bispo de Roma em 687, popularizou diversas
festas orientais, incluindo a Anunciação do Senhor [3].
Escultura de São Sérgio I, Papa (†701) Catedral de Palermo (Itália) |
Apesar de ter sido bem aceita em Roma, como atestam os
Sacramentários Gelasiano (séc. VII-VIII) e Gregoriano (séc. VIII), a festa
encontrou resistências em outras igrejas do Ocidente, uma vez que coincide com
o tempo da Quaresma:
- em Milão e Ravenna (como testemunha São Pedro Crisólogo no
século V) celebrava-se a Encarnação no domingo anterior ao
Natal, com a proclamação do Evangelho da Anunciação.
O Rito Ambrosiano, próprio da Arquidiocese de Milão, embora
posteriormente tenha acolhido a festa de 25 de março, até hoje conserva a “festa da Encarnação” no último domingo do Advento.
- na Espanha (Rito Hispano-Mozárabe) a Anunciação é
celebrada até hoje uma semana antes do Natal, no dia 18 de dezembro, como
prescrito pelo X Concílio de Toledo em 656.
Essa celebração foi acolhida no Rito Romano no século XVIII como
Exspectatio Partus Beatae Mariae Virginis
(Expectação ou Expectativa do Parto da Bem-aventurada Virgem Maria, dita também
“Nossa Senhora do Ó”), posteriormente suprimida para dar destaque à Solenidade da Imaculada Conceição de Maria, no dia 08 de dezembro.
Com efeito, no Advento do Rito Romano, tempo fortemente
mariano, o Evangelho da Anunciação é lido em três ocasiões: no IV Domingo do
Advento do ano B; no dia 20 de dezembro; e na Missa votiva de Nossa Senhora no
Advento (chamada propriamente “Maria na Anunciação do Senhor”).
Confira também nossa postagem sobre a tradição das “Missas Rorate” no Advento clicando aqui.
No Rito Romano, de fato, durante muitos séculos se enfatizou
demais o papel da Virgem Maria na festa da Anunciação. Já o Papa Sérgio I havia prescrito uma
procissão festiva em honra da Mãe de Deus da igreja de Santo Adriano al Foro até a Basílica de Santa Maria Maior no dia 25 de março, procissão que teria sido realizada até o final do século XII.
No Liber Pontificalis, cuja parte mais antiga remonta a meados do século VI, encontram-se ainda os termos “Anunciação de Cristo” ou “Anunciação do Senhor”, “Concepção de Cristo” e “Encarnação de Cristo”. Em calendários posteriores, porém, a festa passa a ser nomeada como “Anunciação de Maria”.
3. A atual Solenidade da
Anunciação do Senhor no Rito Romano
A celebração readquiriu sua centralidade cristológica com a
reforma do Concílio Vaticano II, sem com isso diminuir a participação da Virgem
Maria no mistério da Anunciação, como indica o Papa São Paulo VI (†1978) em sua
Exortação Apostólica Marialis cultus
(1974):
“Para a solenidade da Encarnação do
Verbo, no Calendário Romano, com motivada decisão, foi reatado o título antigo ‘Anunciação
do Senhor’; no entanto, a celebração era e continua a ser festa, conjuntamente,
de Cristo e da Virgem Maria: do Verbo que se torna ‘filho de Maria’ (Mc 6,3) e da Virgem que se torna Mãe de
Deus” (n. 6).
Jesus Cristo e Maria, com efeito, como indicam as leituras e
orações da celebração, são o “novo Adão” e a “nova Eva”, unidos na obediência
ao Pai (cf. Sl 39,8-9; Hb 10,4-10; Lc 1,38).
A presença de Maria é reforçada também na Liturgia das
Horas: além dos três hinos próprios para a Solenidade, nas II Vésperas entoa-se
justamente o hino do Comum de Nossa Senhora:
I Vésperas: Agnoscat
omne saeculum (Reconheça o mundo inteiro);
Ofício das Leituras: Iam
caeca vis mortalium (A geração dos mortais);
Laudes: O lux, salutis
nuntia (Ó luz que o anjo traz à Virgem);
II Vésperas: Ave Maris
stella (Ave, do mar Estrela), do Comum de Nossa Senhora [4].
Dentre as reformas do Concílio Vaticano II que favorecem a
centralidade cristológica da festa podemos citar: a antífona de entrada (Hb 10,5.7) e o salmo da Missa (Sl 39, substituindo o Sl 44), além do novo Prefácio próprio, “O
mistério da Encarnação” (até então tomava-se o Prefácio de Nossa Senhora).
Mosaico da Anunciação na Basílica de Lourdes (França) (Melchior Doze - séc. XIX) |
Cumpre recordar que quando o dia 25 de março cai na Semana Santa (ou, mais raramente, na Oitava Pascal), sua celebração é transferida para o próximo dia litúrgico livre: a segunda-feira da II semana da Páscoa, uma vez que tanto a Semana Santa quanto a Oitava Pascal têm precedência sobre as Solenidades do Senhor.
Quando, por sua vez, o dia 25 de março cai em um domingo da Quaresma, a Anunciação celebra-se no dia seguinte (segunda-feira), sem I Vésperas, uma vez que os domingos desse tempo também possuem precedência sobre as Solenidades.
Ainda sobre a celebração da Solenidade da Anunciação do
Senhor, além de todos os textos próprios, vale recordar a rubrica que prevê a
genuflexão durante o Creio, às palavras “E se encarnou...” (Símbolo
Niceno-Constantinopolitano) ou “Que foi concebido...” (Símbolo Apostólico).
A mesma rubrica é prevista para a Solenidade do Natal do
Senhor, indicando a unidade entre as duas celebrações. Em ambas convém recitar o
Credo Niceno-Constantinopolitano, que exprime melhor o mistério da Encarnação.
Na piedade popular, por fim, além de ser o primeiro dos mistérios do Rosário, a Anunciação é recordada na célebre oração do Ângelus [5]:
V. O Anjo do Senhor anunciou a Maria.
R. E Ela concebeu do Espírito Santo.
Ave Maria...
V. Eis aqui a serva do Senhor.
R. Faça-se em mim segundo a vossa palavra.
Ave Maria...
V. E o Verbo se fez carne.
R. E habitou entre nós.
Ave Maria...
A oração do Ângelus
inclui a coleta (oração do dia) do IV Domingo do Advento, com a qual concluímos também
nossa postagem:
“Derramai, ó Deus, a vossa graça em nossos corações, para
que, conhecendo, pela mensagem do Anjo a Encarnação do vosso Filho, cheguemos,
por sua Paixão e Cruz, à glória da Ressurreição. Por nosso Senhor Jesus Cristo,
vosso Filho, na unidade do Espírito Santo. Amém” [6].
Confira também:
Notas:
[1] Sobre o valor da vida desde a concepção, cf. Catecismo da Igreja Católica, nn. 2270-2274; sobre a concepção de Cristo, por sua vez, confira os nn. 456-511.
[2] SPERANDIO, João Manoel; TAMANINI, Paulo Augusto [org.]. Liturgikon: Próprio das Festas no Rito
Bizantino. Teresina: Editora da Universidade Federal do Piauí, 2015, p. 45.
[3] Dentre as festas orientais introduzidas ou popularizadas
pelo Papa Sérgio I em Roma incluem-se, além da Anunciação: a Apresentação do Senhor (02 de fevereiro), a Assunção de Maria (15 de agosto), a Natividade de Maria (08 de setembro) e a Exaltação da Santa Cruz (14 de setembro).
[4] cf. OFÍCIO
DIVINO. Liturgia das Horas segundo o Rito
Romano. Tradução para o Brasil da segunda edição típica. São Paulo: Paulus,
2000, v. II, pp. 1495-1516.
[5] cf. Diretório sobre Piedade Popular e Liturgia,
n. 195 (CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO E A DISCIPLINA DOS SACRAMENTOS. Diretório sobre Piedade Popular e Liturgia.
São Paulo: Paulinas, 2003, pp. 166-167).
[6] MISSAL ROMANO, Tradução
portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1991, p.
132.
Referências:
ADAM, Adolf. O Ano
Litúrgico: Sua história e seu significado segundo a renovação litúrgica.
São Paulo: Loyola, 2019, pp. 112-113.
DONADEO, Madre Maria. O
Ano Litúrgico Bizantino. São Paulo: Ave Maria, 1998, pp. 56-60.
HOLWECK, Frederick. The
Feast of the Annunciation. in: The Catholic Encyclopedia, vol. 1, 1907.
Disponível em: New Advent.
RIGHETTI, Mario. Historia
de la Liturgia, v. I: Introducción general; El año litúrgico; El Breviario.
Madrid: BAC, 1945, pp. 912-914.
SCHUSTER, Cardeal Alfredo Ildefonso. Liber Sacramentorum: Note storiche e liturgiche sul Messale Romano; v.
VII: I Santi nel Mistero della Redenzione (Le Feste dei Santi dalla Quaresima
all'ottava dei Principi degli Apostoli). Torino-Roma: Marietti, 1930, pp. 75-80.
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