“O Cristo por nós padeceu, deixou-nos o exemplo a seguir. Sigamos, portanto, seus passos!” (1Pd 2,21).
Uma das práticas
de piedade mais queridas pelos fiéis, sobretudo no Ocidente, é a Via Sacra (Caminho Sagrado), também
conhecida como Via Crucis (Caminho da
Cruz) ou Via Dolorosa (Caminho das
Dores).
Através da Via
Sacra, acompanhamos nosso Senhor Jesus Cristo nos últimos passos de sua vida
terrena, isto é, no mistério da sua Paixão e Morte. Assim, fazemos eco à
exortação do próprio Senhor: “Se alguém me quer seguir, renuncie a si mesmo,
tome sua cruz cada dia, e siga-me” (Lc
9,23; cf. Mt 16,24; Mc 8,34).
A seguir
traçaremos brevemente um histórico dessa devoção, celebrada sobretudo nas
sextas-feiras do Tempo da Quaresma e na Semana Santa, mas que pode ser recitada
em qualquer dia ou tempo litúrgico.
1. “Pré-história” da Via Sacra: As
peregrinações a Jerusalém e os Montes Sacros
A origem da
devoção da Via Sacra encontra-se, naturalmente, em Jerusalém: já no século IV a
peregrina Etéria (ou Egéria) testemunha em seu Itinerarium as diversas procissões aos lugares associados aos
mistérios da “Vida, Paixão e Glorificação do Cordeiro de Deus”.
As peregrinações
à Terra Santa ganhariam um novo impulso no século XII, com a fundação do Reino
de Jerusalém no contexto das Cruzadas. Nesse mesmo período a devoção à Paixão
do Senhor é reforçada pela pregação de vários santos - como São Bernardo de
Claraval (†1153), São Francisco de Assis (†1226) e São Boaventura (†1274) - contra
a heresia dos cátaros, os quais negavam o valor salvífico da Morte de Cristo.
No ano de 1342,
com a Bula Gratias Agimus, o Papa
Clemente VI (†1352) instituiu a Custódia Franciscana da Terra Santa, confiando o
cuidado dos “lugares santos” à Ordem dos Frades Menores. Assim, seriam os franciscanos
os grandes promotores da devoção da Via Sacra, marcando a chamada “Via
Dolorosa” com os primeiros oratórios em honra dos eventos da Paixão: o encontro
de Jesus com Simão de Cirene, com as mulheres...
Placa indicando a "Via Dolorosa" em Jerusalém |
Para saber mais, confira nossa série de postagens sobre os santuários da Terra Santa clicando aqui.
Os peregrinos que iam à Terra Santa, ao retornar aos seus países de origem, desejavam
recordar os lugares visitados, sobretudo depois que as peregrinações se
tornaram mais difíceis com o fim do Reino cristão de Jerusalém (1291) e com a
queda de Constantinopla (1453).
Assim, surgiram
na Europa os chamados “Montes Sacros”, conjuntos de pequenas capelas,
geralmente edificadas em uma colina, que reproduziam os vários lugares da
Paixão em Jerusalém: o Cenáculo, o Getsêmani, o Calvário, o sepulcro...
No Brasil, o
exemplo mais notório de “Monte Sacro” são as seis “Capelas dos Passos da Paixão”
que integram o Santuário do Bom Jesus de Matosinhos, em Congonhas (MG), com as
esculturas realizadas pelo célebre Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho
(†1814) e seus discípulos.
No Brasil e em Portugal, com efeito, além da Via Sacra, a devoção à Paixão é reforçada com o culto ao “Senhor Bom Jesus”, isto é, Cristo contemplado em diversos momentos da sua Paixão: flagelado, coroado de espinhos (Ecce Homo), a caminho do Calvário (Senhor dos Passos), Crucificado...
Apesar de essas devoções serem legítimas, é preciso evitar um “fracionamento excessivo” do mistério. Em contrapartida, convém destacar “o conjunto todo do evento da Paixão, segundo a tradição bíblica e patrística” (cf. Diretório sobre Piedade Popular e Liturgia, n. 129), recordando ainda que “a Morte e a Ressurreição de Cristo são inseparáveis na narrativa evangélica e no projeto salvífico de Deus” (ibid., n. 128).
2. A consolidação da forma tradicional da Via Sacra
A partir do
século XV desenvolvem-se em torno dos “Montes Sacros” citados acima três
devoções que confluiriam na Via Sacra como nós a conhecemos:
- a devoção às
“quedas” de Jesus sob o peso da cruz, fixadas em sete (número que simboliza a
completude na Sagrada Escritura), populares sobretudo na Alemanha;
- a devoção aos
“caminhos dolorosos” que Jesus percorreu durante a Paixão: do Getsêmani à casa
de Anás; desta à casa de Caifás; daí ao palácio de Pilatos... Em alguns lugares
surgiu o costume de visitar sete igrejas na Sexta-feira Santa em honra desses
“caminhos” do Senhor [1];
- a devoção às
“estações” de Cristo, isto é, os momentos em que Jesus parou durante o caminho
do Calvário, encontrando-se com os homens e mulheres que participavam da sua
Paixão: a Escritura cita Simão de Cirene e as mulheres de Jerusalém; a partir
dessas últimas a tradição acrescentaria a Virgem Maria e a Verônica.
Entre os séculos XV e XVII surgem os primeiros esquemas de Via Sacra, que variavam muito em
relação ao número de estações, que iam de sete a mais de 30! Alguns esquemas
começavam com a condenação de Jesus à morte por Pilatos; outros retrocediam até
a agonia no Getsêmani; outros ainda ao anúncio da traição de Judas durante a
Última Ceia...
A Via Sacra em
sua forma atual, com quatorze estações (7+7), se consolida a partir do início
do século XVII, primeiramente entre os franciscanos da Espanha e logo passando
à Itália, onde a devoção encontraria o seu grande “apóstolo”: São Leonardo de
Porto Maurício (†1751).
São Leonardo teria percorrido diversas regiões italianas promovendo a devoção da Via Sacra. O Papa Bento XIV (†1758) o convidou então a conduzir a Via Sacra no Coliseu durante o Jubileu de 1750.
Já em 1686 o
Papa Inocêncio XI (†1689) havia autorizado os franciscanos a edificar nas igrejas
confiadas à Ordem o conjunto de imagens com as estações da Via Sacra (ou ao
menos 14 cruzes recordando as estações), concedendo-lhes especiais
indulgências, confirmadas por Inocêncio XII (†1700) em 1694 e por Bento XIII
(†1730) em 1726. Este último estendeu a indulgência associada à oração da Via
Sacra a todos os fiéis.
No ano de 1731,
o Papa Clemente XII (†1740) permitiu que a Via Sacra fosse edificada em todas
as igrejas, desde que fosse abençoada por um sacerdote franciscano. A partir de
então se fixa o “esquema tradicional” das 14 estações:
1. Jesus é
condenado à morte
2. Jesus carrega
a cruz
3. Jesus cai
pela primeira vez
4. Jesus
encontra-se com sua Mãe
5. Jesus é
ajudado por Simão de Cirene
6. Jesus tem o
rosto enxugado por Verônica
7. Jesus cai
pela segunda vez
8. Jesus consola
as mulheres de Jerusalém
9. Jesus cai
pela terceira vez
10. Jesus é
despido de suas vestes
11. Jesus é
pregado na cruz
12. Jesus morre
na cruz
13. Jesus é
descido da cruz
14. Jesus é
sepultado
Em 1862, a pedido dos Bispos da Inglaterra, o Papa Pio IX (†1878) permitiu que a bênção das estações da Via Sacra, até então reservada aos franciscanos, como vimos acima, pudesse ser realizada por qualquer sacerdote (presbítero ou Bispo).
Esta é a normativa presente no Ritual de Bênçãos promulgado após o Concílio Vaticano II [2], embora atualmente se recomende erigir as estações da Via Sacra fora da igreja, de modo a não confundir o “devocional” e o “litúrgico”, valorizando assim a “dimensão eclesiológica” das paredes do templo, com as dozes cruzes em alusão aos Apóstolos e à Jerusalém celeste (cf. Ap 21) [3].
3. Formas alternativas da Via Sacra
Apesar da
consolidação das 14 estações a partir do século XVIII, em alguns lugares se
costuma acrescentar uma 15ª estação em honra da Ressurreição do Senhor,
sobretudo quando a Via Sacra é rezada fora do Tempo da Quaresma e da Semana
Santa.
Além disso, vale
a pena destacar alguns formulários “alternativos” da Via Sacra a serem
valorizados ao lado do “esquema tradicional” [sobre os quais há postagens próprias aqui em nosso blog]:
- a Via Sacra Bíblica, com 14 estações
tomadas exclusivamente dos relatos dos Evangelhos. Este esquema foi proposto
pela primeira vez durante o Jubileu de 1975, sendo retomado em várias ocasiões
durante a Via Sacra presidida pelo Papa no Coliseu;
- a Via Lucis (Caminho da Luz), uma Via Sacra pascal, com 14 estações
recordando os mistérios desde a Ressurreição do Senhor até a vinda do Espírito
Santo em Pentecostes, fazendo um excelente paralelo com a Via Crucis e completando a meditação do Mistério Pascal de Cristo;
- relacionados à
Via Sacra encontram-se ainda a Via Matris (Caminho da Mãe), na qual
se propõe a meditação das sete dores de Maria; e a Via Sanguinis (Caminho do
Sangue), que recorda as sete efusões do sangue de Jesus para nossa salvação.
Desde 1964, por
iniciativa de São Paulo VI (†1978), os Papas presidem anualmente a Via Sacra junto ao Coliseu na noite da Sexta-feira Santa. A partir de 1993, por sua vez, os
Papas presidem a Via Sacra também nas edições internacionais da Jornada Mundial
da Juventude.
Desde 1985,
através da iniciativa de São João Paulo II (†2005), o Papa convida um fiel ou
grupo de fiéis a preparar as meditações que acompanham a Via Sacra da Sexta-feira Santa no Coliseu. Assim, temos no site da Santa Sé um vasto
“repertório” de textos que podem ser utilizados em nossas comunidades.
4. Como
rezar a Via Sacra
Como o próprio
nome indica, a Via Sacra é um caminho. Portanto, reza-se essa devoção
caminhando, ou melhor, peregrinando ao longo das 14 estações.
Quando a Via Sacra é rezada dentro das igrejas, porém, é comum que os fiéis permaneçam em seus lugares e o caminho processional seja realizado apenas por quem preside o rito e pelos ministros ou fiéis com a cruz e as velas. Nesse caso os fiéis se voltam sempre para a cruz, que vai percorrendo as estações.
À frente dos
fiéis, com efeito, caminha sempre a cruz, neste caso comumente sem o Cristo, uma vez que
este é representado nas estações da Via Sacra. A cruz pode ser ladeada por duas
velas acesas (ou duas tochas, quando se reza ao ar livre). Ao longo do caminho os
ministros ou fiéis que carregam a cruz e as velas podem revezar-se, favorecendo
a participação de todos.
Se a Via Sacra é
presidida por um sacerdote ou diácono, este pode revestir a batina com
sobrepeliz ou a túnica, sobre a qual usará a estola vermelha, cor dos ofícios
da Paixão (cf. Instrução Geral sobre o
Missal Romano, 3ª edição, n. 346). Nada impede, porém, que essa devoção
seja conduzida por um fiel leigo.
A Via Sacra
começa com o sinal da cruz e uma saudação de quem preside, geralmente seguida
de uma monição introdutória e/ou de uma oração inicial.
Segue-se o
recorrido das 14 estações: quem preside anuncia a estação e em seguida propõe
um versículo ou aclamação. Em alguns lugares há o costume de todos se ajoelharem durante essa aclamação, permanecendo em pé durante o restante da celebração. O versículo geralmente é este:
Nós vos
adoramos, Senhor Jesus Cristo, e vos bendizemos.
R. Porque pela vossa Santa Cruz remistes o
mundo.
Adoramus te, Christe, et benedicimus tibi,
R.
Quia per Sanctam Crucem tuam redemisti mundum.
Um leitor proclama
então um breve texto bíblico relacionado à estação. Não há um texto fixo para cada
estação: podem tomar-se textos adequados dos Evangelhos da Paixão, dos Salmos,
dos “cânticos do Servo Sofredor” de Isaías, das Lamentações de Jeremias... Esta
proclamação da Palavra de Deus deve considerar-se sempre como o elemento mais
importante dessa e de qualquer devoção cristã.
Após a leitura
bíblica, o leitor (ou leitores) pode ler uma breve meditação, que convém ser
adaptada ao contexto dos participantes (por exemplo: uma Via Sacra com
crianças, com jovens, com enfermos...), mas sempre à luz da Palavra de Deus.
Quem preside
recita então uma oração e todos rezam o “Pai nosso”. Pode-se acrescentar também
uma “Ave Maria” e um “Glória ao Pai...”.
Enquanto se
caminha até a próxima estação entoa-se uma antífona ou refrão. Em vários
lugares do mundo essa antífona consiste em um verso da sequência de Nossa
Senhora das Dores, Stabat Mater dolorosa.
No Brasil,
porém, se popularizou um conjunto de antífonas para as 14 estações
“tradicionais” da Via Sacra, com pequenas variações em algumas estrofes, unidas
a um refrão. Por exemplo:
A morrer
crucificado / Teu Jesus é condenado / Por teus crimes, pecador.
R:
Pela Virgem dolorosa, / vossa Mãe tão piedosa, / perdoai-me, bom Jesus.
No início e no
final da Via Sacra cabem também outros cantos em honra da cruz (Bendita e louvada seja; Vitória, tu reinarás...) e/ou em honra do mistério da Paixão
(Prova de amor maior não há; Eu vim para que todos tenham vida...).
Em suma, a Via
Sacra é uma prática de piedade na qual “palavra, silêncio, canto, caminhar
processional e parada reflexiva se alternam de modo equilibrado, contribuindo
para a obtenção de muitos frutos espirituais” (cf. Diretório sobre Piedade Popular e Liturgia, n. 135).
5. Alguns elementos da espiritualidade da Via
Sacra
“A Via Sacra é
uma via traçada pelo Espírito Santo, fogo divino que ardia no peito de Cristo (cf. Lc 12,49-50) e o impeliu rumo ao
Calvário; e é uma via amada pela Igreja, que conservou a memória viva das
palavras e dos acontecimentos dos últimos dias do seu Esposo e Senhor” (ibid., n. 133).
Além da
centralidade da Palavra de Deus, que citamos acima (cf. nn. 87-89) o Diretório
sobre Piedade Popular e Liturgia destaca outras expressões da
espiritualidade cristã presentes na devoção da Via Sacra:
- o gesto do
caminhar (procissão, peregrinação), que nos recorda que esta vida é caminho
rumo ao encontro com Cristo (cf. nn.
245-247 do o Diretório sobre o
sentido da procissão e os nn. 279-287 sobre a peregrinação);
- o mistério da
cruz, passagem do exílio terrestre à pátria celeste (cf. nn. 127-129);
- o propósito de
conformar-se à Paixão de Cristo (Fl
2,5: “Tende em vós os mesmos sentimentos de Cristo Jesus”), unindo nossas
cruzes do dia-a-dia à Cruz de Cristo [4];
- a recordação
dos santos homens e mulheres que acompanharam Jesus em sua Paixão: a Mãe das
dores, o discípulo amado, o ladrão penitente...
Jesus encontra-se com sua Mãe (Capela da IV Estação - Via Dolorosa, Jerusalém) |
Nas palavras do
Papa Bento XVI na primeira Sexta-feira Santa do seu pontificado, “a Via Crucis não é uma coleção das coisas
obscuras e tristes do mundo. Também não é um moralismo que se revela ineficiente.
Não é um grito de protesto que nada muda. A Via
Crucis é o caminho da misericórdia... e o caminho da salvação” [5].
Celebrando a Via
Sacra, imploramos a misericórdia de Deus (cf.
Hb 4,16) e, ao mesmo tempo, aprendemos a ser misericordiosos como Ele (cf. Lc 6,36). Portanto, “enquanto damos
graças ao Senhor, que morreu por nós na cruz, roguemos-Lhe para que nós também
saibamos morrer para o pecado e caminhar numa vida nova” (Bênção das estações da Via Sacra, Monição introdutória):
“Ó Deus, o vosso
Filho foi entregue por nós e ressuscitou para que nós, morrendo para o pecado,
vivêssemos para a justiça; vinde, pela graça da vossa bênção, conceder aos
fiéis que celebram o piedoso exercício da vossa Paixão, carregando sua cruz com
paciência, possam alegrar-se, um dia, com a revelação da vossa glória. Por
Cristo, nosso Senhor. Amém”
(Bênção das
estações da Via Sacra, Oração, 1ª opção).
Jesus recebe a Cruz (Igreja da Condenação - Jerusalém) |
Notas:
[1] Vale lembrar
também a peregrinação às sete igrejas em Roma, popularizada por São Filipe Néri
(†1595) a partir do Jubileu de 1575.
[2] RITUAL DE BÊNÇÃOS. Tradução portuguesa da edição típica para o Brasil. São Paulo:
Paulus, 1990, pp. 401-407.
[3] cf. PONTIFICAL ROMANO, Ritual
da dedicação de igreja e de altar. Tradução portuguesa para o Brasil da edição
típica. São Paulo: Paulus, 2000, pp. 430-461.
[4] cf. a Carta
Apostólica Salvifici doloris sobre o
sentido do sofrimento humano, promulgada por São João Paulo II em 1984.
[5] BENTO XVI. Discurso no final da Via Sacra no Coliseu,
14 de abril de 2006. Disponível no site da Santa Sé.
Referências:
ALSTON, George Cyprian. Way of the Cross. in: The
Catholic Encyclopedia, vol. 15, 1912. Disponível em: New Advent.
MARINI, Piero. La Via Crucis: Presentazione. Disponível no site da Santa Sé.
SAGRADA
CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO E A DISCIPLINA DOS SACRAMENTOS. Diretório
sobre Piedade Popular e Liturgia. São Paulo: Paulinas, 2003, pp.
117-120.
Postagem
publicada em 28 de março de 2012. Revista e ampliada em 09 de
novembro de 2021.
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