domingo, 31 de maio de 2020

O ícone de Pentecostes

“Celebremos Pentecostes: a vinda do Espírito. Cumpriu-se a promessa, completa está a esperança!”­ - [1]

Glorifiquemos a uma só voz o Espírito Altíssimo! Em nossa série de postagens sobre os ícones das festas litúrgicas, vamos refletir sobre o ícone de Pentecostes, festa celebrada 50 dias após a Páscoa e que conclui este tempo especial de graça.

Origem e conteúdo da festa:

O domingo de Pentecostes (do grego pentecosté, cinquenta), assim como a Páscoa, é anterior ao Novo Testamento: ambas eram originalmente festas da colheita na tradição judaica, que depois passaram a celebrar a saída do Egito (Páscoa) e a entrega da Lei no monte Sinai (Pentecostes).

Esta celebração da aliança também é conhecida como Festa das Semanas, pois é comemorada sete semanas após a Páscoa. Este duplo número sete indica a plenitude, o coroamento dos cinquenta dias pascais. Como indica Adolf Adam, o Pentecostes não é uma celebração isolada do Espírito Santo, mas sim uma celebração autenticamente pascal.

Com efeito, no início da Igreja o Tempo Pascal era visto como um único dia de festa. Somente a partir do século IV o último dia deste ciclo passa a ser celebrado com mais solenidade, recordando a entrega da nova lei do Espírito (At 2,1-11).

No Rito Romano este dia foi acrescido de uma vigília à semelhança da Vigília Pascal, com várias leituras e a celebração dos sacramentos da Iniciação Cristã, ao passo que na tradição bizantina foi enriquecido por uma série de sete orações proferidas de joelhos no final da Divina Liturgia [2].

Ainda na tradição bizantina, assim como na festa da Ascensão, o Pentecostes adquire o status de uma “Liturgia cósmica”, na qual céu e terra concelebram, unidos pelo Espírito Santo. Dado seu caráter litúrgico, que comporta uma dimensão escatológica, esta festa é mais do que a recordação do acontecimento histórico da vinda do Espírito Santo sobre os Apóstolos: é uma ação de graças pela presença do Espírito do Ressuscitado na Igreja. Por isso o ícone da festa, como veremos, está cheio de anacronismos.

Além disso, destaca-se o tema da unidade, feito o paralelo com o episódio da torre de Babel (Gn 11,1-9): se nesta ocasião, pelo orgulho dos homens houve a separação das línguas, agora, pela humildade de Deus, manifesta no mistério pascal de Cristo, todos compreendem a única linguagem do amor. Assim sintetiza o kontákion da festa:

Quando o Altíssimo desceu à Terra para confundir as línguas, dispersou os povos; mas, quando distribuiu as línguas de fogo, chamou-nos todos à unidade. Glorifiquemos a uma só voz o Espírito Santíssimo” [3].

O ícone


O ambiente: O ambiente é o Cenáculo, a “sala superior” onde Jesus celebrou a última Ceia com seus Apóstolos (Lc 22,7-13), onde estes encontraram pela primeira vez o Ressuscitado (Jo 20,19-23), onde permaneceram em oração com Maria (At 1,12-14) e onde agora recebem o Espírito Santo.

Ao fundo do ícone encontramos duas casas ou torres, que nos indicam que estamos na “sala superior”, além de traçar o paralelo entre Antigo e Novo Testamento: as duas torres costumam ser unidas por um véu, o mesmo do ícone da Anunciação, indicando a presença do amor de Deus em ambas as alianças.

No centro, às vezes encontramos um semicírculo azul, imagem do céu, do qual saem doze raios de luz, símbolo do Espírito Santo que desce sobre os Apóstolos. Em outras versões os raios estão ausentes e o Espírito é representado pelas línguas de fogo sobre a cabeça de cada Apóstolo. Em outras versões, sobretudo a partir de influências ocidentais, o Espírito aparece ao centro na forma de uma pomba, como apareceu no Batismo do Senhor.

O ancião: Na parte inferior do ícone, em um semicírculo, encontramos um ancião coroado como um rei. Em alguns ícones está escrito seu nome: ho kosmos, o mundo. Não se trata, porém, de uma imagem da criação, mas sim da humanidade (donde a coroa, que indica a dignidade de filhos de Deus dos homens).

O ancião está representado sob um lugar escuro, símbolo das trevas da ignorância e da idolatria, que estão agora para ser iluminadas pela luz do Espírito Santo, espalhada na terra através do anúncio do Evangelho. O ancião segura justamente um lençol com doze rolos, indicando a pregação dos Doze Apóstolos.

Outra interpretação para o ancião é o Antigo Testamento: sua caracterização lembra muito a do rei Davi nos ícones orientais. Assim, ele “estaria simbolizando os ‘muitos profetas e justos que desejaram ver o que veem vossos olhos e não o viram, e ouvir o que ouvem vossos ouvidos, e não o ouviram’, como diz o próprio Senhor Jesus” (Mt 13,17; Lc 10,23-24) [4].

A associação do ancião com o Antigo Testamento é reforçada pelos doze rolos, que indicam o anúncio do Evangelho às doze tribos de Israel (Mt 19,28). Porém, tal anúncio não é restrito a um povo, mas se destina a todos, como canta o tropário da festa:

Bendito és tu, Cristo, nosso Deus, que tornaste sábios a simples pescadores, enviando-lhes o Espírito Santo e, por eles, colheste na rede o universo inteiro. Glória a ti, Amigo dos homens” [5].

Maria e o assento vazio: Em algumas versões deste ícone encontramos no centro do grupo dos Apóstolos a figura de Maria; em outras, porém, ela está ausente, deixando um assento vazio. Ambas as versões possuem o seu simbolismo.

A presença de Maria evoca seu papel de “centro moral” da Igreja após a Ascensão (no ícone desta festa ela ocupa também uma posição de destaque). Além disso, evoca sua presença orante junto aos Apóstolos à espera da vinda do Espírito Santo (At 1,14).

Se Maria está presente, ela é a única personagem sem a língua de fogo sobre a cabeça: “tendo ela concebido por obra do Espírito Santo, sua pessoa já estava transformada pelo próprio Espírito” [6]. Por isso muitos iconógrafos defendem sua ausência, dando espaço para o simbolismo do assento vazio.

O trono vazio enfatiza o alcance escatológico da festa: “é o trono vacante da segunda vinda (hetimasia), como sinal da contínua espera do Esposo” [7]. Tal trono evoca a ausência física do Mestre e a expectativa da Igreja-Esposa que, congregada no Espírito Santo, grita a cada Liturgia: “Amém! Vem, Senhor Jesus” (Ap 22,20).

Os Apóstolos: Por fim, encontramos neste ícone os Doze Apóstolos, que estão sentados em dois grupos de seis sobre um banco ou estrado em forma de semicírculo ou “ferradura”. Mais do que recordar que estamos no Cenáculo (pois no ícone da última Ceia encontramos a mesma formação), o semicírculo nos coloca aqui em um contexto litúrgico.

As igrejas da tradição siríaca possuíam nos primeiros séculos um estrado no seu centro, composto por um ambão (bema) e assentos para os sacerdotes, de onde se celebrava a Liturgia da Palavra. Tal formação quer salientar aqui, pois, a centralidade da Palavra de Deus, inspirada pelo Espírito Santo, que impulsiona os missionários de ontem e de hoje a anunciá-la “até os confins da terra” (At 1,8).

Desde o momento em que receberam o Espírito, os Apóstolos anunciaram a Palavra, a Boa Nova, o Evangelho, o qual vem expressar-se no estarem juntos como numa reunião ou sínodo. É esta a razão pela qual os ícones que representam os Concílios Ecumênicos reproduzem o mesmo esquema iconográfico desta festa” [8]: a Igreja é o perene Pentecostes!

Dentre os Apóstolos vemos alguns anacronismos que nos recordam que este ícone transcende a história: presidindo os dois grupos de Apóstolos, ladeando a Virgem Maria ou o trono vazio, estão, como no ícone da Ascensão, Pedro e Paulo.

Além de Paulo, podemos encontrar aqui ainda outros dois “intrusos”: os evangelistas Marcos e Lucas. Ao lado de Pedro estão Mateus e Marcos e ao lado de Paulo, João e Lucas. Estes seis personagens são os únicos que seguram os rolos das Escrituras nas mãos, indicando a autoridade de Pedro e Paulo e os quatro Evangelhos, reforçando assim a centralidade da Palavra de Deus neste ícone, inspirada pelo Espírito Santo.

A ele nos dirigimos, concluindo esta análise, com as palavras que abrem praticamente todos os ofícios litúrgicos bizantinos:

Rei celeste, Consolador, Espírito da verdade, presente em toda a parte e ocupando todo lugar; tesouro de bens e dispensador da vida, vem e habita em nós; purifica-nos de toda a impureza e salva as nossas almas, tu que és bom” [9]

[1] PASSARELLI, Gaetano. O ícone de Pentecostes. São Paulo: Ave Maria, 1997, p. 43. Coleção: Iconostásio, 17.
[2] Sobre a história desta celebração confira:
ADAM, Adolf. O Ano Litúrgico: Sua história e seu significado segundo a renovação litúrgica. São Paulo: Loyola, 2019, pp. 65-66.
DONADEO, Madre Maria. O Ano Litúrgico Bizantino. São Paulo: Ave Maria, 1998, pp. 75-79.
RIGHETTI, Mario. Historia de la Liturgia, v. I: Introducción general; El año litúrgico; El Breviario. Madrid: BAC, 1945, pp. 856-862.
[3] DONADEO, op. cit., p. 76.
[4] PASSARELLI, op. cit., p. 33.
[5] DONADEO, op. cit., p. 76.
[6] PASSARELLI, op. cit., p. 24.
[7] ibid., p. 35.
[8] ibid., p. 31.
[9] DONADEO, op. cit., p. 76.

sábado, 30 de maio de 2020

Homilia: Solenidade de Pentecostes

Santo Agostinho
Tratado sobre a 1ª Carta de São João
 Pergunta ao teu coração se existe nele lugar para o amor fraterno

Este é o seu mandamento: que creiamos no nome de seu Filho, Jesus Cristo, e que nos amemos uns aos outros. Logo percebes que este é o seu mandamento; percebes que quem age contra este mandamento comete pecado, pecado de que carece aquele que nasceu de Deus. Tal como Ele nos ordenou: que nos amemos mutuamente. Percebes que não nos ordena outra coisa, a não ser que nos amemos uns aos outros. Quem guarda seus mandamentos permanece em Deus e Deus nele; nisto conhecemos que permanece em nós: pelo Espírito que nos deu.
Acaso não é evidente que a obra do Espírito Santo no homem é que nele está a dileção e o amor? Acaso não é evidente o que diz o Apóstolo Paulo: O amor de Deus foi derramado em nossos corações com o Espírito Santo que nos foi dado? Falava, pois, do amor e dizia que devemos interrogar nosso coração na presença de Deus. No caso de que não nos condene nossa consciência, isto é, se dá testemunho de que o amor fraterno é a fonte de tudo o que de bom existe em nossas obras.
Acrescentamos ainda que, falando do mandamento, João diz: E este é o seu mandamento: que creiamos no nome de seu Filho, Jesus Cristo, e que nos amemos uns aos outros. Quem guarda seus mandamentos permanece em Deus e Deus nele; nisto conhecemos que permanece em nós: pelo Espírito que nos deu. Realmente, se comprovas possuir a caridade, possuis o Espírito de Deus para compreender, o qual é muito necessário.
Nos primeiros tempos, o Espírito Santo descia sobre os crentes e falava em línguas que não tinham aprendido, cada um na língua que o Espírito lhe sugeria. Eram sinais apropriados aos tempos, porque era muito conveniente que o Espírito Santo fosse significado por este dom da universalidade das línguas, já que através de todas as línguas iria difundir-se o Evangelho de Deus por todo o orbe da terra. Uma vez que isto foi significado, o sinal passou.
Acaso hoje esperamos que aqueles sobre quem se impõem as mãos para que recebam o Espírito Santo se ponham a falar em línguas? Ou será que, quando impusemos as mãos a estas crianças, estava cada um de vós inclinado a ver se falariam em línguas? E ao comprovar que não falavam em línguas, houve algum de vós de coração tão perverso que dissesse: “Estes não têm recebido o Espírito Santo, porque, se houvessem recebido, falariam em línguas como aconteceu naquela ocasião”? E se agora não se comprova a presença do Espírito Santo mediante este tipo de milagres, o que fazer, como conhecer que alguém recebeu o Espírito Santo?
Que cada um interrogue o seu coração: se ama ao irmão, o Espírito Santo permanece nele. Que veja e se examine aos olhos de Deus, que veja se ama a paz e a unidade, se ama a Igreja difundida por toda a terra. Que não ame somente ao irmão que tem diante de si, porque são muitos os irmãos que não vemos e aos quais estamos vinculados na unidade do Espírito. Há algo de estranho que não estejam conosco? Formamos um só corpo, temos uma só cabeça no céu. Portanto, se queres saber se recebeste o Espirito Santo, pergunta ao teu coração, não aconteça que tenhas o sacramento e te falte a virtude do sacramento. Pergunta ao teu coração se nele há um lugar para o amor fraterno, e fica tranquilo. Não pode haver amor sem o Espírito de Deus, visto que Paulo exclama: O amor de Deus foi derramado em nossos corações com o Espírito Santo que nos foi dado.


Fonte: Lecionário Patrístico Dominical, pp. 114-115. Para adquiri-lo no site da Editora Vozes, clique aqui.

Confira também outra homilia de Santo Agostinho para esta Solenidade clicando aqui.

O Espírito Santo na Liturgia: Encontro de Pastoral Litúrgica 1998

Sempre no final do mês estamos recordando em nosso blog, de maneira retrospectiva, os Encontros de Pastoral Litúrgica (ENPL) promovidos anualmente pelo Secretariado Nacional de Liturgia de Portugal. Neste mês recordamos o 24º ENPL, realizado de 27 a 31 de julho de 1998 com o tema “O Espírito Santo na Liturgia”.

Este foi o segundo ano do triênio de preparação próxima para o Grande Jubileu do ano 2000, sendo cada ano dedicado a uma das Pessoas da Santíssima Trindade: Jesus Cristo (1997), o Espírito Santo (1998) e Deus Pai (1999).

Segue o áudio de seis conferências proferidas durante o encontro:

Pe. Dr. Joaquim Carreira das Neves, OFM
Nesta primeira conferência o palestrante, passando por diversos textos do Antigo e do Novo Testamentos, reflete sobre o Espírito Santo revelado nas Sagradas Escrituras.

2ª Conferência: O Espírito Santo e a Igreja
Pe. Dr. Jacinto Farias, SCJ
Aqui o palestrante reflete sobre a presença do Espírito Santo na Igreja enquanto Espírito da verdade e Espírito da liberdade, além da síntese entre os dois: Espírito de amor.

Côn. José Ferreira
Depois das duas palestras introdutórias, aqui se entra no tema da ação do Espírito Santo na Liturgia, relacionando-a ao exercício do múnus sacerdotal de Cristo.

Pe. Dr. José António Dionísio Sousa
Nesta palestra se refletiu sobre a presença do Espírito Santo na Missa, tanto na mesa da Palavra (enfatizando sua ação na proclamação da Palavra e no silêncio) quanto na mesa da Eucaristia (enfatizando a dupla epiclese, invocação do Espírito sobre os dons do pão e do vinho e sobre a assembleia).

Côn. Dr. João da Silva Peixoto
Aqui o palestrante reflete sobre a compreensão da presença e da ação do Espírito Santo nos sacramentos em geral ao longo da história da teologia, sobretudo relacionado ao tema da eficácia sacramental.

Pe. Dr. Carlos Fernando M. Correia
Por fim, nesta última conferência reflete-se sobre a presença do Espírito Santo nos vários tempos do Ano Litúrgico: Advento-Natal, Quaresma e Páscoa (com ênfase no Pentecostes).


sexta-feira, 29 de maio de 2020

Missa Crismal em Milão

Assim como a entrega do Creio aos catecúmenos, também a Missa Crismal teve de ser postergada este ano na Arquidiocese de Milão devido à pandemia do coronavírus.

A Missa teve lugar no Duomo de Milão nesta quinta-feira, 28 de maio, a última quinta-feira do Tempo Pascal, presidida pelo Arcebispo, Dom Mario Enrico Delpini, e com a presença de uma representação do clero da Arquidiocese ambrosiana.

Saudação inicial
Sacerdotes presentes
Homilia
Infusão do bálsamo no Crisma
Consagração do Crisma

IV Catequese do Papa sobre a oração

Papa Francisco
Audiência Geral
Quarta-feira, 27 de maio de 2020
A oração (4): A oração dos justos

Caros irmãos e irmãs, bom dia!
Dedicamos a catequese de hoje à oração dos justos.
O desígnio de Deus para a humanidade é bom, mas em nossa vida cotidiana experimentamos a presença do mal: é uma experiência de todos os dias. Os primeiros capítulos do livro de Gênesis descrevem a expansão progressiva do pecado nas vivências humanas. Adão e Eva (cf. Gn 3,3-7) duvidam das intenções benevolentes de Deus, pensando que estão lidando com uma divindade invejosa, que impede sua felicidade. Daí a rebelião: eles não acreditam mais em um Criador generoso, que deseja sua felicidade. O coração deles, cedendo à tentação do maligno, é tomado por delírios de onipotência: “Se comermos o fruto da árvore, nos tornaremos como Deus” (cf. v. 5). E esta é a tentação, ea ambição que entra no coração. Mas a experiência segue na direção oposta: seus olhos se abrem e descobrem que estão nus (v. 7), sem nada. Não se esqueça disso: o tentador é um mau pagador, ele paga mal.
O mal se torna ainda mais perturbador com a segunda geração humana, é mais forte: é a história de Caim e Abel (cf. Gn 4,1-16). Caim tem inveja de seu irmão: há o verme da inveja; embora seja o primogênito, ele vê Abel como um rival, alguém que mina sua primazia. O mal aparece em seu coração e Caim não pode dominá-lo. O mal começa a entrar no coração: os pensamentos são sempre sobre olhar mal para o outro, com suspeita. E isso também acontece com o pensamento: “Essa é uma pessoa má, ele vai me fazer mal”. E esse pensamento está entrando no coração… E, assim, a história da primeira fraternidade termina com um assassinato. Hoje, estou pensando na fraternidade humana… Guerras em todos os lugares.
Na descendência de Caim, se desenvolvem os trabalhos manuais e as artes, mas também a violência expressa pelo sinistro cântico de Lamec, que soa como um hino de vingança: «Eu matei um homem porque me feriu, e um menino, porque me machucou (...) Se Caim é vingado sete vezes, Lamec o será setenta e sete”(Gn 4,23-24). A vingança: “Você fez, pagará”. Mas isso não diz o juiz, sou eu quem diz. E eu me faço juiz da situação. E assim o mal se espalha de modo rápido e uniforme: “O Senhor viu que a maldade dos homens era grande na terra e que todo propósito íntimo de seu coração não era senão o mal, sempre” (Gn. 6,5) Os grandes afrescos do dilúvio universal (cap. 6-7) e a torre de Babel (cap. 11) revelam a necessidade de um novo começo, assim como de uma nova criação, que terá seu cumprimento em Jesus Cristo.
No entanto, nessas primeiras páginas da Bíblia, está escrita outra história, menos aparente, muito mais humilde e devota, o que representa o resgate da esperança. Mesmo que quase todos se comportem de maneira brutal, fazendo do ódio e da conquista o grande motor das vivências humanas, há pessoas capazes de orar a Deus com sinceridade, capazes de escrever o destino do homem de uma maneira diferente. Abel oferece a Deus um sacrifício de primícias. Após sua morte, Adão e Eva tiveram um terceiro filho, Set, de quem nasceu Enos (que significa “mortal”), e se diz: “Naquele tempo se começou a invocar o nome do Senhor” (4,26). Então Enoc aparece, uma pessoa que “caminha com Deus” e que é sequestrada ao céu (cf. 5,22.24). E, finalmente, há a história de Noé, um homem justo que “caminhou com Deus” (6,9), diante de quem Deus deixa seu propósito de eliminar a humanidade (cf. 6,7-8).
Lendo essas histórias, se tem a impressão de que a oração é tanto o terreno seguro quanto o refúgio do homem diante da onda do mal que cresce no mundo. Na verdade, também devemos orar para sermos salvos de nós mesmos. É importante rezar: “Senhor, por favor, salve-me de mim mesmo, das minhas ambições, das minhas paixões”. Os orantes das primeiras páginas da Bíblia são homens que trabalham pela paz: na verdade, a oração, quando é autêntica, liberta dos instintos de violência e é um olhar voltado para Deus, para que ele volte a cuidar do coração do homem. No Catecismo se lê: “Esta qualidade de oração é vivida por uma multidão de justos em todas as religiões” (CIC, 2569). A oração cultiva canteiros de renascimento em lugares onde o ódio do homem foi capaz de alargar o deserto. E a oração é poderosa, porque atrai o poder de Deus e o poder de Deus sempre dá vida, sempre. Ele é o Deus da vida e renasce a faz renascer.
Eis porque o senhorio de Deus transita na corrente desses homens e mulheres, muitas vezes incompreendidos ou marginalizados no mundo. Mas o mundo vive e cresce graças à força de Deus que esses servos dele atraem com sua oração. Eles são uma corrente que não é barulhenta, que raramente parece nas manchetes, mas é tão importante para restaurar a confiança no mundo! Lembro-me da história de um homem: um chefe de governo, importante, não deste tempo, de tempos passados. Um ateu que não tinha senso religioso em seu coração, mas quando criança ouvia sua avó orando, e isso permaneceu em seu coração. E em um momento difícil de sua vida, essa lembrança voltou ao seu coração e disse: “Mas a minha avó rezava...”. Assim, ele começou a orar com as fórmulas de sua avó e lá encontrou Jesus. A oração é uma corrente de vida, sempre: muitos homens e mulheres que oram semeiam a vida. A oração semeia a vida, a pequena oração: é por isso que é tão importante ensinar as crianças a orar. Dói-me quando encontro crianças que não podem fazer o sinal da cruz. Devemos ensiná-los a fazer bem o sinal da cruz, porque é a primeira oração. É importante que as crianças aprendam a orar. Porque, talvez, eles possam esquecer, seguir outro caminho; mas as primeiras orações aprendidas quando criança permanecem no coração, porque são uma semente da vida, a semente do diálogo com Deus.
O caminho de Deus na história de Deus passou por eles: passou por um “resto” da humanidade que não estava em conformidade com a lei do mais forte, mas pediu a Deus para realizar seus milagres e, acima de tudo, transformar nosso coração de pedra no coração da carne (cf. Ez 36,26). E isso ajuda a oração: porque a oração abre a porta para Deus, transformando nosso coração muitas vezes de pedra em um coração humano. E é preciso muita humanidade, e com a humanidade se reza bem.


quinta-feira, 28 de maio de 2020

Jubileu da Diocese de Roma no ano 2000

No dia 28 de maio do ano 2000 o Papa João Paulo II presidiu na Praça de São Pedro a Missa do VI Domingo da Páscoa (Ano B) por ocasião do Jubileu da Diocese de Roma no contexto do Ano Santo. Confira sua homilia na ocasião:

Jubileu da Diocese de Roma
Homilia do Papa João Paulo II
28 de maio de 2000

1. “Assim como o Pai me amou, também Eu vos amei: permanecei no meu amor” (Jo 15,9). Na véspera da sua morte, Cristo abre o próprio coração aos discípulos reunidos no Cenáculo, deixando-lhes o seu testamento espiritual. No período pascal, a Igreja regressa constantemente em espírito ao Cenáculo, para ouvir de novo com reverência as palavras do Senhor e delas haurir luz e conforto para o seu caminho ao longo das sendas do mundo.
A nossa Igreja de Roma, que celebra o seu Jubileu, retorna hoje ao Cenáculo com o coração trepidante. Volta ali para se deixar interpelar pelo Mestre divino, para meditar sobre as suas palavras e descobrir a resposta mais oportuna aos pedidos que Ele lhe apresenta.
A palavra que hoje a nossa Igreja escuta dos lábios do seu Senhor é vigorosa e clarividente: “Permanecei no meu amor... O meu mandamento é este: amai-vos uns aos outros, como Eu vos amei” (Jo 15,9.12). Como deixar de sentir particularmente “nossas” estas palavras de Jesus? Não tem acaso a Igreja de Roma a tarefa específica de “presidir na caridade” à inteira oecumene cristã? (cf. Santo Inácio, Ad Rom, inscr.). Sim, o mandamento do amor compromete a nossa Igreja de Roma com vigor e exigência especiais.
E o amor é exigente. Cristo diz: “Não existe amor maior do que dar a vida pelos amigos” (Jo 15,13). O amor levará Jesus à cruz. Cada discípulo deve recordar-se disto. O amor provém do Cenáculo e para ali reconduz. Com efeito, depois da Ressurreição será de novo ao Cenáculo que os Apóstolos irão com a mente, para evocar as palavras pronunciadas por Jesus na Quinta-Feira Santa, conscientes do conteúdo salvífico das mesmas. Em virtude do amor de Cristo, recebido e retribuído, eles já são seus amigos: “Não vos chamo servos, pois o servo não sabe o que o patrão faz; chamo-vos amigos, porque vos comuniquei tudo o que ouvi do meu Pai” (Jo 15,15).

João Paulo II toma posse da Basílica do Latrão,
Catedral do Bispo de Roma (1978)

Congregados no Cenáculo depois da Ressurreição e da Ascensão ao Céu do Mestre divino, os Apóstolos compreenderão plenamente o sentido das suas palavras: “Não fostes vós que me escolhestes, mas fui Eu que vos escolhi” (Jo 15,16). Sob a ação do Espírito Santo, estas palavras farão deles a comunidade salvífica, que é a Igreja. Os Apóstolos entenderão que foram eleitos para a especial missão de testificar o amor: “Assim como o Pai me amou, também Eu vos amei: permanecei no meu amor”.
Hoje, este mandamento chega a nós: enquanto cristãos, somos chamados a ser testemunhas do amor. Este é o “fruto” que somos chamados a dar, e este fruto “permanece” no tempo e para a eternidade!

terça-feira, 26 de maio de 2020

Regina Coeli do Papa: Ascensão do Senhor - Ano A

Papa Francisco
Regina Coeli
Domingo, 24 de maio de 2020

Amados irmãos e irmãs, bom dia!
Hoje, em Itália e noutros países, celebra-se a solenidade da Ascensão do Senhor. O trecho evangélico (cf. Mt 28,16-20) mostra-nos os Apóstolos reunidos na Galileia, «no monte que Jesus lhes tinha indicado» (v. 16). Aqui tem lugar o último encontro do Senhor Ressuscitado com os seus na montanha. A “montanha” tem uma forte carga simbólica. Numa montanha, Jesus proclamou as Bem-aventuranças (cf. Mt 5,1-12); nas montanhas, retirou-se para rezar (cf. Mt 14,23); ali acolheu as multidões e curou os doentes (cf. Mt 15,29). Mas desta vez, na montanha, já não é o Mestre que age e ensina, cura, mas o Ressuscitado que pede aos discípulos para agir e proclamar, confiando-lhes o mandato de continuar a sua obra.
Investe-os da missão junto de todos os povos. Ele diz: «Ide, pois, e fazei discípulos de todas as nações, batizando-os em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, ensinando-as a cumprir tudo quanto vos tenho mandado» (vv. 19-20). Os conteúdos da missão confiada aos Apóstolos são estes: proclamar, batizar, ensinar e percorrer o caminho traçado pelo Mestre, ou seja, o Evangelho vivo. Esta mensagem de salvação implica antes de mais o dever do testemunho - sem testemunho não se pode anunciar - ao qual também nós, discípulos de hoje, somos chamados, para dizer a razão da nossa fé. Face a uma tarefa tão exigente, e pensando nas nossas fraquezas, sentimo-nos inadequados, como certamente se sentiram os próprios Apóstolos. Mas não devemos desanimar, recordando as palavras que Jesus lhes dirigiu antes de subir ao Céu: «E Eu estarei convosco todos os dias, até ao fim do mundo» (v. 20).
Esta promessa assegura a presença constante e consoladora de Jesus entre nós. Mas como  se realiza esta presença? Através do seu Espírito, que leva a Igreja a caminhar na história como companheira de viagem de cada homem. Este Espírito, enviado por Cristo e pelo Pai, opera a remissão dos pecados e santifica todos aqueles que, arrependidos, se abrem com confiança ao seu dom. Com a promessa de permanecer conosco até ao fim dos tempos, Jesus inaugura o estilo da sua presença no mundo como  Ressuscitado. Jesus está presente no mundo mas com outro estilo, o estilo do Ressuscitado, ou seja, uma presença que se revela na Palavra, nos Sacramentos, na ação constante e interior do Espírito Santo. A festa da Ascensão diz-nos que Jesus, embora tenha subido ao Céu para habitar gloriosamente à direita do Pai, está ainda e sempre entre nós: disto deriva a nossa força, a nossa perseverança e a nossa alegria, precisamente da presença de Jesus entre nós com o poder do Espírito Santo.
Que a Virgem Maria acompanhe a nossa viagem com a sua proteção materna: dela aprendemos a doçura e a coragem de sermos,  no mundo, testemunhas do Senhor Ressuscitado.


Fonte: Santa Sé

segunda-feira, 25 de maio de 2020

Vigília in Traditio Symboli em Milão

No último sábado, 23 de maio, o Arcebispo de Milão, Dom Mario Enrico Delpini, presidiu na Catedral de Santa Maria Nascente, o Duomo de Milão, a Vigília in Traditio Symboli (da Entrega do Símbolo).

Esta Vigília, na qual os jovens catecúmenos recebem a oração do Creio em preparação para os Sacramentos da Iniciação Cristã, acontece sempre no Rito Ambrosiano no sábado que antecede a Semana Santa. Porém este ano, devido à pandemia do coronavírus, a celebração teve de ser adiada.

Entrada do Arcebispo
Ritos iniciais

Entronização da cruz

Jubileu dos Cientistas no ano 2000

No dia 25 de maio do ano 2000, o Cardeal Paul Poupard, Presidente do Pontifício Conselho para a Cultura, presidiu a Santa Missa na Basílica de São Pedro por ocasião do Jubileu dos Cientistas no Ano Santo.

No final da Missa o Papa João Paulo II foi até a Basílica e proferiu o seguinte discurso:

Jubileu dos Cientistas
Discurso do Papa João Paulo II
 25 de maio de 2000
  
Senhores Cardeais,
Amados irmãos no episcopado e no sacerdócio,
Caros Amigos que representais o mundo da ciência e da investigação!
1. Acolho-vos com profunda alegria por ocasião da vossa peregrinação jubilar. Agradeço ao Cardeal Paul Poupard, Presidente do Pontifício Conselho para a Cultura, as palavras de boas-vindas e a organização deste Jubileu, com todos os seus colaboradores. Exprimo a minha viva gratidão ao Professor Nicola Cabibbo, Presidente da Pontifícia Academia das Ciências, a homenagem que acabou de me dirigir em nome de todos vós.
No decurso dos séculos passados, a ciência, cujas descobertas são fascinantes, ocupou um lugar determinante e às vezes foi considerada como o único critério da verdade ou como a via da felicidade. Uma reflexão baseada exclusivamente em elementos científicos tentara habituar-nos a uma cultura da suspeita e da dúvida. Ela recusava-se a considerar a existência de Deus e a examinar o homem no mistério da sua origem e do seu fim, como se tal perspectiva pudesse pôr em discussão a própria ciência. Às vezes ela pensou que Deus fosse uma simples construção da mente, incapaz de resistir ao conhecimento científico. Semelhantes atitudes levaram a afastar a ciência do homem e do serviço que é chamada a prestar-lhe.

2. Hoje, “um grande desafio... é saber realizar a passagem, tão necessária como urgente, do fenômeno ao fundamento. Não é possível deter-se simplesmente na experiência; mesmo quando esta exprime e manifesta a interioridade do homem e a sua espiritualidade, é necessário que a reflexão especulativa alcance a substância espiritual e o fundamento que a sustenta” (Encíclica Fides et ratio, 81). A investigação científica baseia-se, também ela, nas capacidades de a mente humana descobrir aquilo que é universal. Esta abertura ao conhecimento introduz no significado último e fundamental da pessoa humana no mundo (cf. ibid.).
“Os céus narram a glória de Deus, e a obra das suas mãos anuncia o firmamento” (Sl 18,2); por outras palavras, o salmista evoca o “testemunho silencioso” da admirável obra do Criador, inscrita na própria realidade da criação. Aqueles que estão empenhados na investigação são chamados a fazer, num certo sentido, a mesma experiência do salmista e a procurar a mesma maravilha. “É necessário cultivar o espírito de modo a desenvolver-lhe a capacidade de admirar, intuir, contemplar, formar um juízo pessoal e cultivar o sentido religioso, moral e social” (Gaudium et spes, 59).

3. Ao basearem-se numa atenta observação da complexidade dos fenômenos terrestres e ao seguiram o objeto e o método próprios de cada disciplina, os cientistas descobrem as leis que governam o universo e também as suas relações. Ficam atônitos e humildes diante da ordem criada e sentem-se atraídos pelo amor do Autor de todas as coisas. A fé, por sua vez, é capaz de integrar e assimilar toda a investigação, porque todas as pesquisas, através duma compreensão mais profunda da realidade criada em toda a sua especificidade, dão ao homem a possibilidade de descobrir o Criador, fonte e finalidade de todas as coisas. “As Suas perfeições invisíveis, tanto o Seu poder eterno como a Sua divindade, tornam-se visíveis quando as Suas obras são consideradas pela inteligência” (Rm 1,20).
Ao aprofundar o seu conhecimento do universo, e em particular do ser humano, que é o seu centro, o homem tem uma percepção velada da presença de Deus, uma presença que ele é capaz de discernir no “manuscrito silencioso” que o Criador inscreveu na criação, reflexo da sua glória e grandeza.
Deus gosta de ser ouvido no silêncio da criação, na qual a inteligência percebe a transcendência do Senhor da criação. Todos os que procuram compreender os segredos da criação e os mistérios do homem devem estar prontos a abrir a própria mente e o seu coração à verdade profunda que ali se manifesta e que “leva o intelecto a dar o próprio consenso” (Santo Alberto Magno, Comentário sobre João 6, 44).

4. A Igreja tem grande estima pela investigação científica e técnica, pois estas “constituem uma expressão significativa do domínio do homem sobre a criação” (Catecismo da Igreja Católica, n. 2293) e um serviço à verdade, ao bem e à beleza. De Copérnico a Mendel, de Alberto Magno a Pascal, de Galileu a Marconi, a história da Igreja e a história das ciências mostram-nos de maneira clara como há uma cultura científica arraigada no cristianismo. De fato, pode-se dizer que a investigação, explorando ao mesmo tempo aquilo que é maior e o que é mais pequenino, contribui para a glória de Deus que se reflete em toda a parte do universo.
A fé não teme a razão. Estas “constituem como que as duas asas pelas quais o espírito humano se eleva para a contemplação da verdade. Foi Deus quem colocou no coração do homem o desejo de conhecer a verdade e, em última análise, de conhecer a Ele, para que, conhecendo-O e amando-O, possa chegar também à verdade plena sobre si mesmo” (Fides et ratio, Proêmio). Se no passado a separação entre fé e razão foi um drama para o homem, que conheceu o risco de perder a sua unidade interior sob a ameaça de um saber cada vez mais fragmentado, a vossa missão consiste hoje em prosseguir a investigação convencidos de que, “para o homem inteligente [...] todas as coisas se harmonizam e concordam” (Gregório Palamas, Theophanes).
Convido-vos, então, a pedir ao Senhor que vos conceda o dom do Espírito Santo, pois amar a verdade é viver do Espírito Santo (cf. Santo Agostinho, Sermo, 267, 4), que nos permite aproximar-nos de Deus e em voz alta chamar-Lhe Abbá, Pai. Que nada vos impeça de invocá-Lo deste modo, ainda que submergidos no rigor das vossas análises sobre as coisas que Ele pôs diante dos nossos olhos.

5. Caros cientistas, grande é a responsabilidade a que sois chamados. A vós é pedido que atueis ao serviço do bem de cada pessoa e da inteira humanidade, atentos sempre à dignidade de todo o ser humano e ao respeito pela criação. Toda a abordagem científica tem necessidade dum apoio ético e duma sábia abertura a uma cultura respeitosa das exigências da pessoa. Precisamente isto é sublinhado pelo escritor Jean Guitton, quando afirma que na investigação científica jamais se deveria separar o aspecto espiritual do intelectual (cf. Le travail intellectuel. Conseil à ceux qui étudient et à ceux qui écrivent, 1951, p. 29). Além disso, ele recorda que, por essa razão, a ciência e a técnica necessitam dum apelo ao valor da interioridade da pessoa humana.
Dirijo-me com confiança a vós, homens e mulheres que vos encontrais nas trincheiras da investigação e do progresso! Ao perscrutardes constantemente os mistérios do mundo, deixai abertos os vossos espíritos aos horizontes que a fé vos abre de par em par. Firmemente ancorados nos princípios e valores fundamentais do vosso itinerário de homens de ciência e de fé, podeis estabelecer um diálogo profícuo e construtivo, também com quem está afastado de Cristo e da sua Igreja. Sede, portanto, antes de tudo apaixonados pesquisadores do Deus invisível, o único que pode satisfazer o anseio profundo da vossa vida, cumulando-vos com a sua graça.

6. Homens e mulheres de ciência, animados pelo desejo de testemunhar a vossa fidelidade a Cristo! O rico panorama da cultura contemporânea, no alvorecer do terceiro milênio, abre inéditas e promissoras perspectivas no diálogo entre a ciência e a fé, assim como entre a filosofia e a teologia. Participai com toda a vossa energia na elaboração duma cultura e dum projeto científico que deixem sempre transparecer a presença e a intervenção providencial de Deus.
Este Jubileu dos Cientistas constitui, quanto a isto, um encorajamento e um apoio para quantos procuram a verdade com sinceridade: confirma que se pode ser um pesquisador rigoroso em todos os campos do saber e um fiel discípulo do Evangelho. Como não recordar aqui o empenho espiritual de tantas pessoas quotidianamente dedicadas ao fatigante trabalho científico? Através de vós aqui presentes, quereria fazer chegar a minha saudação e o meu mais cordial encorajamento a cada uma delas.
Homens de ciência, sede construtores de esperança para a humanidade inteira! Deus vos acompanhe e torne frutuoso o vosso esforço ao serviço do autêntico progresso do homem.
Proteja-vos Maria, Sede da Sabedoria. Intercedam por vós Santo Tomás de Aquino e os outros Santos e Santas que, em vários campos do saber, ofereceram um notável contributo ao aprofundamento do conhecimento das realidades criadas à luz do mistério divino.
Da minha parte, acompanho-vos com atenção constante e amizade cordial. Asseguro-vos uma quotidiana lembrança na oração e abençoo-vos de coração, a vós, às vossas famílias e a quantos, de vários modos, cooperam com sincera e constante dedicação no progresso científico da humanidade.


Fonte: Santa Sé

domingo, 24 de maio de 2020

O ícone da Ascensão do Senhor

“Elevado foste à glória, ó Cristo nosso Deus, enchendo de alegria os discípulos com a promessa do Espírito Paráclito”­ - Tropário da festa [1]

40 dias após a Páscoa as igrejas do Oriente e do Ocidente celebram a festa da Ascensão do Senhor (no Brasil, transferida para o domingo seguinte). Em nossa série de postagens sobre os ícones das festas litúrgicas, vamos refletir sobre a representação gráfica desta celebração.

Origem e conteúdo da festa:

Até o século IV, a Ascensão era celebrada junto com o Pentecostes, cinquenta dias após a Páscoa, como testemunha a peregrina Etéria em seu Itinerarium. Descrevendo a Liturgia da Jerusalém do século IV, ela menciona uma “estação” no Monte das Oliveiras em honra da Ascensão na tarde do quinquagésimo dia após a Páscoa.

A partir do século V as duas festas começam a separar-se, uma vez que já encontramos homilias dos Santos Padres (como Agostinho ou João Crisóstomo) próprias para o dia da Ascensão.

No Rito Romano destaca-se ao longo da história a procissão em honra de Cristo Rei neste dia, como no Domingo de Ramos, recordando a caminhada dos Apóstolos até o Monte das Oliveiras e de volta a Jerusalém e a entrada triunfal de Jesus no céu. Com o tempo, porém, foi substituída pelas procissões penitenciais nos três dias anteriores (as chamadas Rogações) [2].

De toda forma, a festa da Ascensão conclui a celebração da Ressurreição na tradição bizantina, marcando o coroamento da missão terrena de Jesus. Ao mesmo tempo, serve de transição à festa de Pentecostes, celebrando o início da missão da Igreja com o envio dos Apóstolos, precedido pelos dias que estes passaram em oração junto com Maria. Todos estes elementos estão presentes no ícone da festa, como veremos a seguir.

O ícone


O ambiente: O ambiente do ícone é marcado pelas montanhas, em referência ao Monte das Oliveiras, local da Ascensão nos Atos dos Apóstolos (At 1,12). Ao mesmo tempo, a montanha evoca sempre o local da teofania, da manifestação de Deus, como retratado em diversos ícones.

Geralmente encontramos neste ícone quatro cumes rochosos, intercalados por quatro arbustos verdes. As quatro rochas representam “os quatro ângulos da terra ‘estéril’ e escrava da idolatria”, ao passo que os quatro arbustos são o “anúncio da Boa Nova, idealmente simbolizada pelos quatro evangelistas” [3].

Toda a cena da Ascensão se insere em uma “Liturgia cósmica”, na qual céu e terra “concelebram” (cf. Sacrosanctum Concilium, n. 08). Os arbustos indicam a participação da natureza nesta Liturgia: Deus manifesta-se ao mundo e o mundo vai ao seu encontro. Ao mesmo tempo, é exortação à Igreja a testemunhar o Evangelho de Jesus Cristo “a todas as nações (Mt 28,19) “até os confins da terra” (At 1,8).

Cristo: Na parte superior do ícone, ao centro, temos a figura de Cristo. Ele é representado ao mesmo tempo subindo aos céus e retornando “para julgar os vivos e os mortos”, como atesta o livro do Apocalipse: “Eis que ele vem com as nuvens, e todos os olhos o verão, até mesmo os que o transpassaram, e todas as tribos da terra” (Ap 1,7).

A dimensão escatológica do ícone é simbolizada pelo gesto de Cristo: está sentado no trono, em atitude de juiz, apontando para a terra com a mão direita, indicando assim seu senhorio sobre todas as coisas, e segurando com a esquerda o pergaminho, onde estão escritos os nossos pecados. Porém, seu rosto não expressa severidade, mas sim bondade, misericórdia.

Além disso, suas vestes não são mais as brancas da Ressurreição, mas sim as douradas da realeza: é o Rei-Pastor que veio ao encontro da ovelha perdida para conduzi-la ao paraíso. Junto com as vestes douradas possui a tradicional estola pendente do ombro direito, simbolizando sua missão sacerdotal, fazendo a ponte entre Deus e os homens.

Além disso, Cristo está sentado dentro de uma grande auréola, que indica o céu e, por seu formato circular, o eterno. Na Encarnação o eterno havia entrado na história; agora, na Ascensão, Ele eleva a nossa história, a nossa humanidade, à dimensão do eterno.

Maria: Na parte inferior do ícone, ao centro, bem abaixo de Cristo, encontra-se a Virgem Maria. O livro dos Atos dos Apóstolos atesta sua presença junto à primeira comunidade reunida em oração, à espera do Espírito Santo (At 1,14).

Embora a Sagrada Escritura não mencione sua presença no Monte das Oliveiras, sua presença aqui traça um paralelo com sua presença junto à cruz: “(...) convinha de fato que aquela que, como Mãe, tinha sofrido mais que qualquer outro na tua Paixão, fosse cumulada de alegria acima de qualquer outra alegria na glorificação do teu corpo” [4]. Se Maria é a Mãe das dores quando o corpo do Filho é elevado na cruz, agora é a Mãe da alegria quando seu corpo é elevado ao céu!

Além disso, tanto após a Morte do Senhor quanto após sua Ascensão, Maria se torna o “centro moral” da Igreja, ao redor da qual vão reunir-se os Apóstolos. Sua autoridade é visível no ícone através da presença da auréola sobre sua cabeça (sendo a única pessoa, além de Cristo e dos anjos a possui-la), de um pequeno pedestal sob seus pés e do gesto das mãos elevadas, tipicamente sacerdotal.

Com suas mãos elevadas, o gesto do orante na iconografia cristã, Maria parece estar dirigindo aos Apóstolos e a todos que contemplam o ícone o convite dirigido aos fiéis pelo sacerdote no início da Oração Eucarística ou Anáfora nas várias tradições: “Corações ao alto!”.

Os Apóstolos: Ladeando a Virgem Maria encontramos os Apóstolos, divididos em dois grupos de seis, um presidido por Pedro e o outro por Paulo.

Embora a figura de Paulo seja aqui anacrônica, justifica-se pela autoridade que possuía na Igreja primitiva junto com Pedro. Ambos são chamados na tradição bizantina de “protocorifeus do coro dos Apóstolos” [5]. Prova disso, em nosso ícone, é o fato de serem os únicos a portar os rolos da Escritura nas mãos.

Todos os Doze Apóstolos estão olhando para cima, para Cristo, com atitude surpresa, alguns com as mãos levantadas: encarnam o espanto do homem diante do mistério. Ao mesmo tempo, porém, simbolizam a espera do cumprimento da promessa de Jesus: o envio do Espírito Santo.

Passarelli chama a atenção para o fato de que geralmente nenhum dos Apóstolos está vestido de verde, cor associada ao Espírito Santo na tradição bizantina, pois ainda “vai começar neles a renovação” [6], no dia de Pentecostes.

Os anjos: Por fim, temos no ícone ao menos quatro anjos: dois (ou mais) que sustentam Cristo em sua Ascensão e dois junto aos Apóstolos.

Primeiramente os anjos junto a Cristo cumprem aqui a função das crianças no ícone da entrada em Jerusalém: são os arautos do rei, que anunciam a sua chegada, como testemunha Romanos, o Melode:

Os primeiros anjos gritaram a todas as Potências celestes: abri as portas, abri as entradas triunfais para o céu, porque já está para subir o Rei da glória (Sl 23,7-8). Estendei-vos, nuvens, sob Aquele que está pronto para a Ascensão. Preparai-vos, ares, para acolher Aquele que está próximo a cruzar-vos. Abri-vos, céus. Acolhei-o, céu dos céus, porque sobre até ti Aquele que disse aos seus: Não me separarei de vós; Eu estou convosco” [7].

Os anjos que acompanham Jesus, como atesta o relato apócrifo do Apocalipse de Pedro, são de hierarquias inferiores, mais próximos a nós, que sobem com Jesus para anunciá-lo aos anjos de hierarquias superiores (querubins, serafins) e exortá-los a abrir as portas do céu.

Em contrapartida, o mesmo relato fala de dois anjos “cujos rostos não podíamos contemplar, porque emitiam luz mais brilhante que a do sol” [8], que se dirigem aos Apóstolos, exortando-os a não ficarem olhando para o céu.

Estes dois anjos aparecem no ícone na mesma linha dos Apóstolos, ladeando a Virgem Maria. Possuem, como atesta o relato bíblico, vestes muito brancas, além de cajados que indicam sua missão de mensageiros, como o anjo Gabriel no ícone da Anunciação.

Em algumas versões do ícone um dos anjos segura um rolo aberto com a citação dos Atos dos Apóstolos: “Homens da Galileia, por que estais aí a olhar para o céu? Este Jesus que foi arrebatado dentre vós para o céu, assim virá do mesmo modo como o vistes partir” (At 1,10-11).

Tendo cumprido o plano salvífico sobre nós, e reunido as criaturas terrestres às celestes, ascendeste ao céu em glória, Cristo nosso Deus, sem contudo te afastares de nós, mas permanecendo conosco clamas aos que te amam: Eu estou convosco e ninguém prevalecerá contra vós!
Kontákion da festa [9]

[1] PASSARELLI, Gaetano. O ícone da Ascensão. São Paulo: Ave Maria, 1997, p. 47. Coleção: Iconostásio, 16.
[2] Sobre a história desta celebração confira:
ADAM, Adolf. O Ano Litúrgico: Sua história e seu significado segundo a renovação litúrgica. São Paulo: Loyola, 2019, p. 64.
DONADEO, Madre Maria. O Ano Litúrgico Bizantino. São Paulo: Ave Maria, 1998, pp. 71-75.
RIGHETTI, Mario. Historia de la Liturgia, v. I: Introducción general; El año litúrgico; El Breviario. Madrid: BAC, 1945, pp. 850-856.
[3] PASSARELLI, op. cit., p. 08.
[4] DONADEO, op. cit., p. 74.
[5] A palavra coriphé em grego indica o “topo da cabeça”. No teatro grego era empregada para o regente do coro. Proto-corifeus seriam então os primeiros dentre os que ocupam o lugar mais alto, isto é, os primeiros dentre os Apóstolos.
[6] PASSARELLI, op. cit., p. 36.
[7] ibid., p. 22.
[8] ibid., p. 28.
[9] DONADEO, op. cit., p. 72.

sábado, 23 de maio de 2020

Homilia: Ascensão do Senhor - Ano A

São Máximo de Turim
Sermão 56
 A Ascensão de Cristo é o triunfo do vencedor

Se o grão de trigo não cai na terra e morre, fica infecundo; mas se morre, dá muito fruto. Floresceu, pois, novamente o Senhor ressuscitando do sepulcro; frutifica quando sobe ao céu. É flor quando é gerado nas profundezas da terra; é fruto quando é assentado em sua sublime sede. É grão – como Ele mesmo diz – quando, só, padece a cruz; é fruto quando se vê cercado da copiosa fé dos Apóstolos.
De fato, durante aqueles quarenta dias em que, depois da Ressurreição, conviveu com seus discípulos, instruiu-lhes em toda a maturidade da sabedoria e os preparou para uma safra abundante com toda a fecundidade de sua doutrina. Depois subiu ao céu, ou seja, ao Pai, levando o fruto da carne e deixando em seus discípulos as sementes da justiça.
Subiu, portanto, o Senhor ao Pai. Vossa santidade recordará, sem dúvida, que comparei o Salvador com aquela águia do salmista, da qual lemos que renova sua juventude. Realmente existe uma semelhança, e não pequena. Pois assim como a águia abandonando os vales se eleva às alturas e penetra impetuosa nos céus, assim também o Salvador abandonando as profundidades do abismo se elevou aos serenos picos do paraíso, e penetrou nas mais elevadas regiões do céu. E assim como a águia, abandonando a mesquinharia da terra, e voando para as alturas, usufrui da salubridade de um ar mais puro, assim também o Senhor, abandonando a imundície dos pecados terrenos e revoando em seus santos, alegra-se na simplicidade de uma vida mais pura.
De forma que a comparação com a águia se encaixa perfeitamente ao Salvador. Mas, então, como explicar o fato de que frequentemente a águia destroça sua presa e arrebata seguidamente a presa alheia? Contudo, tampouco nisto é dessemelhante ao Salvador. De certo modo arrastou com a presa quando ao homem que tinha assumido, arrancado das gargantas do inferno, o conduziu ao céu, e ao que era escravo de uma dominação alheia, isto é, da potestade diabólica, libertado da catividade, cativo o conduziu às regiões elevadas, como escreve o profeta: Subiu ao alto levando cativa a catividade e deu dons aos homens. Esta frase certamente significa que levou ao alto dos céus a catividade cativa. Uma e outra catividade são designadas com idêntica palavra. Mas ambas com um significado bem distinto, visto que a catividade do diabo reduz o homem à escravidão, enquanto que a catividade de Cristo restitui a liberdade.
Subiu, disse, ao alto levando cativa a catividade. Quão bem descreve o profeta o triunfo de Cristo! Pois, segundo dizem, a pompa da carruagem dos vencidos costuma preceder ao rei vencedor. Mas eis aqui que a catividade gloriosa não precede ao Senhor em sua Ascensão aos céus, mas que o acompanha; não é conduzida a carruagem à frente, mas sim que é ela a que leva ao Salvador. Por um inefável mistério, enquanto o Filho de Deus eleva ao céu o Filho do homem, a própria catividade é ao mesmo tempo portadora e portada. O que acrescenta: Deu dons aos homens, é o gesto típico do vencedor.


Fonte: Lecionário Patrístico Dominical, pp. 110-111. Para adquiri-lo no site da Editora Vozes, clique aqui.

Confira também uma homilia de São Leão Magno para esta Solenidade clicando aqui.

sexta-feira, 22 de maio de 2020

Solenidade da Ascensão do Senhor em Jerusalém

No último dia 21 de maio, 40 dias após a Páscoa, a igreja de Jerusalém celebrou a Solenidade da Ascensão do Senhor (no Brasil, transferida para o próximo domingo).

A oração das I Vésperas na tarde do dia 20 e a Missa na manhã do dia 21 foram presididas pelo Vigário da Custódia da Terra Santa, Padre Dobromir Jasztal, diante do Imbomón, a pequena Capela da Ascensão no Monte das Oliveiras.

Dia 20: I Vésperas

Procissão de entrada
Oração dentro da Capela da Ascensão

Oração das Vésperas