sábado, 30 de janeiro de 2021

Homilia: IV Domingo do Tempo Comum - Ano B

São Jerônimo
Comentário sobre o Evangelho de São Marcos
Não digas o Santo de Deus, mas o Deus Santo

Entram em Cafarnaum e, num dia de sábado, Jesus entrou na sinagoga e lhes ensinava: que abandonassem o ócio do sábado e assumissem as obras do Evangelho. Ensinava como quem tem autoridade e não como os escribas. Pois não dizia: “isto diz o Senhor”, ou “aquele que me enviou diz o seguinte”, mas falava na primeira pessoa, o mesmo que outrora falara pelos profetas. Uma coisa é dizer “está escrito”, outra “isto diz o Senhor” e, outra ainda, “em verdade vos digo”.

Observai outra passagem: Diz: está escrito na Lei: não matarás, não repudiarás a tua mulher. Está escrito. Por quem está escrito? Por Moisés, mas Deus o ordenando. Se está escrito pelo dedo de Deus, como te atreves a dizer: em verdade vos digo, se não és tu mesmo o que antes deste a Lei? Ninguém se atreve a mudar a lei, se não é o rei. A Lei foi dada pelo Pai ou pelo Filho? Responde, herege! Aceito de bom grado o que digas: para mim foram os dois. Se a deu o Pai, também é o Pai quem a muda, portanto o Filho é igual ao Pai, porque muda a Lei juntamente com quem a deu. Seja que Ele a deu, seja que Ele a muda, demonstra a mesma autoridade ao tê-la dado ou ao tê-la mudado, coisa que ninguém pode fazer além do rei.

Admiravam-se dos seus ensinamentos. Eu me pergunto: O que tinha ensinado de novo? O que de novo tinha pregado? Dizia por si mesmo as mesmas coisas que tinham dito os profetas. Mas admiravam-se por isto, porque ensinava como quem tem autoridade e não como os escribas. Não ensinava como um mestre, mas como o Senhor; não falava apoiando-se em outra autoridade superior, mas falava Ele mesmo com a autoridade que lhe era própria. Falava, assim, em definitivo, porque com sua própria essência estava dizendo o que tinha dito mediante os profetas. Sou quem falava, eis que estou presente.

O espírito impuro que tinha estado na sinagoga e que os tinha levado à idolatria, do qual está escrito: Fostes seduzidos pelo espírito da fornicação, era o espírito que tinha saído de um homem, e percorria o deserto, o que buscou repouso e não encontrou e que, tomando consigo a outros sete demônios, regressou à sua antiga morada. Naquele tempo, esses espíritos estavam na sinagoga e não podiam suportar a presença do Salvador. Que têm em comum Cristo e Belial? Impossível que os dois habitem na mesma comunidade. Encontrava-se na sinagoga um homem possuído por um espírito impuro, que começou a gritar, dizendo: O que há entre ti e nós? É somente um, mas fala em nome de muitos. Por ele ser vencido, compreendeu que tinham sido vencidos também os seus companheiros, e começou a gritar. Começou a gritar como quem está imerso na dor, como quem não pode suportar a flagelação.

E começou a gritar, dizendo: Que há entre ti e nós, Jesus Nazareno? Vieste para nos destruir? Sei quem és, o Santo de Deus. Imerso nos tormentos e manifestando com seus gritos o tamanho dos mesmos, contudo, não põe fim às suas mentiras. Vê-se obrigado à dizer a verdade, obrigam-lhe os tormentos, mas a malícia o impede. Que há entre ti e nós, Jesus Nazareno? Por que não confessa que é o Filho de Deus? Atormenta-te o Nazareno e não o Filho de Deus? Sentes seus castigos e não confessas seu nome? Isto com respeito a Jesus Nazareno.

Vieste para nos destruir? É certo isto que dizes: Vieste para nos destruir. Sei quem és. Vejamos o que ele acrescenta: o Santo de Deus. Não foi Moisés o santo de Deus? Não foi Isaías? Não foi Jeremias? Disse o Senhor: Antes que nascesses, te santifiquei no seio materno. Isto foi dito a Jeremias, e não foi o santo de Deus? Mas por que não dizes a cada um deles: Sei quem és, o Santo de Deus? Ó, que mente tão perversa! Imerso na tortura e nos tormentos, apesar de conhecer a verdade, não quer confessá-la! Sei quem és, o Santo de Deus. Não digas o Santo de Deus, mas o Deus Santo. Finge saber quem é, mas não o sabes. Porque uma das duas: ou o sabes e hipocritamente te calas, ou simplesmente não o sabes. Pois Ele não é o Santo de Deus, mas o Deus Santo.


Fonte: Lecionário Patrístico Dominical, pp. 377-379. Para adquiri-lo no site da Editora Vozes, clique aqui.

Para ler uma homilia de São João Crisóstomo para este domingo, clique aqui.

sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

XXII Catequese do Papa sobre a oração

Papa Francisco
Audiência Geral
Quarta-feira, 27 de janeiro de 2021
A oração (22): A oração com as Sagradas Escrituras

Estimados irmãos e irmãs, bom dia!
Hoje gostaria de me concentrar na oração que podemos fazer a partir de um trecho da Bíblia. As palavras da Sagrada Escritura não foram escritas para permanecer presas nos papiros, nos pergaminhos ou no papel, mas para serem recebidas por uma pessoa que reza, fazendo-as brotar no próprio coração. A palavra de Deus vai ao coração. O Catecismo afirma: «A leitura da Sagrada Escritura deve ser acompanhada de oração - a Bíblia não pode ser lida como um romance - para que seja possível o diálogo entre Deus e o homem» (n. 2653). Assim a oração te conduz, pois é um diálogo com Deus. Aquele versículo da Bíblia foi escrito também para mim, há muitos séculos, para me trazer uma palavra de Deus. Foi escrito para cada um de nós. Esta experiência acontece a todos os crentes: uma passagem da Escritura, ouvida muitas vezes, de repente um dia fala-me e ilumina uma situação que estou vivendo. Mas é necessário que eu esteja presente nesse dia, no encontro com essa Palavra, que esteja ali, ouvindo a Palavra. Todos os dias Deus passa e lança uma semente no terreno da nossa vida. Não sabemos se hoje encontrará terra árida, espinhos ou terra fértil que faça crescer essa semente (cfMc 4,3-9). Depende de nós, da nossa oração, do coração aberto com que nos aproximamos das Escrituras para que elas possam tornar-se para nós a Palavra viva de Deus. Deus passa, continuamente, através da Escritura. E repito o que disse na semana passada, citando Santo Agostinho: “Tenho medo do Senhor quando passa”. Por que ter medo? Que eu não o ouça, que não me aperceba que é o Senhor.
Através da oração realiza-se uma nova encarnação do Verbo. E nós somos os “tabernáculos” onde as palavras de Deus querem ser recebidas e guardadas, para poder visitar o mundo. Por esta razão, devemos aproximar-nos da Bíblia sem segundas intenções, sem a instrumentalizar. O crente não procura nas Sagradas Escrituras o apoio para a própria visão filosófica ou moral, mas porque espera um encontro; sabe que essas palavras foram escritas no Espírito Santo, e que por isso nesse mesmo Espírito devem ser acolhidas, devem ser compreendidas, para que o encontro se realize.
Incomoda-me quando ouço cristãos a recitar versículos da Bíblia como papagaios. “Oh, sim, o Senhor diz..., Ele assim o quer...”. Mas, com aquele versículo, encontraste-te com o Senhor? Não é apenas um problema de memória: é um problema de memória do coração, aquela que te abre para o encontro com o Senhor. E aquela palavra, aquele versículo, leva-te ao encontro com o Senhor.
Portanto, lemos as Escrituras para que elas “nos leiam”. E é uma graça ser capaz de se reconhecer nesta ou naquela personagem, nesta ou naquela situação. A Bíblia não é escrita para uma humanidade genérica, mas para nós, para mim, para ti, para homens e mulheres em carne e osso, homens e mulheres que têm nome e sobrenome, como eu, como tu. E a Palavra de Deus, impregnada do Espírito Santo, quando é recebida com um coração aberto, não deixa as situações como antes, nunca, muda alguma coisa. E esta é a graça e a força da Palavra de Deus.
A tradição cristã é rica de experiências e reflexões sobre a oração com a Sagrada Escritura. Em particular, afirmou-se o método da “lectio divina”, nascido em um ambiente monástico, mas agora praticado também por cristãos que frequentam as paróquias. Trata-se antes de tudo de ler a passagem bíblica com atenção, mais ainda, eu diria com “obediência” ao texto, a fim de compreender o que ele significa em si mesmo. Em seguida entra-se em diálogo com a Escritura, para que aquelas palavras se tornem um motivo de meditação e oração: permanecendo sempre fiel ao texto, começo a perguntar-me o que ele “diz a mim”. Este é um passo delicado: não devemos resvalar para interpretações subjetivas, mas inserir-nos no sulco vivo da Tradição, que une cada um de nós à Sagrada Escritura. E o último passo da lectio divina é a contemplação. Aqui as palavras e os pensamentos dão lugar ao amor, como entre os noivos que por vezes se olham em silêncio. O texto bíblico permanece, mas como um espelho, como um ícone a ser contemplado. E assim tem-se o diálogo.
Através da oração, a Palavra de Deus vem habitar em nós e nós habitamos nela. A Palavra inspira bons propósitos e apoia a ação; dá-nos força, dá-nos serenidade, e até quando nos põe em crise, nos dá paz. Em dias “maus” e confusos, assegura ao coração um núcleo de confiança e amor que o protege dos ataques do maligno.
É assim que a Palavra de Deus se faz carne - permito-me usar esta expressão: faz-se carne -  naqueles que a acolhem em oração. Em alguns textos antigos emerge a intuição de que os cristãos se identificam tão intimamente com a Palavra que, mesmo se todas as Bíblias do mundo fossem queimadas, um “molde” dela ainda poderia ser salvo através da marca que deixou na vida dos santos. Esta é uma bonita expressão.
A vida cristã é obra de obediência e ao mesmo tempo de criatividade. Um bom cristão deve ser obediente, mas deve ser criativo. Obediente porque ouve a Palavra de Deus; criativo, porque tem dentro o Espírito Santo que o impele a praticá-la, a anunciá-la. Jesus diz isto no final de um dos seus discursos proferidos em parábolas, com esta comparação: «Todo o escri­ba instruído acerca do reino dos céus é semelhante a um pai de família que tira coisas novas e velhas do seu tesouro» - o coração (Mt 13,52). As Sagradas Escrituras são um tesouro inesgotável. Que o Senhor nos conceda, a todos nós,  haurir  delas cada vez mais através da oração. Obrigado.


Fonte: Santa Sé

Tríplice múnus dos fiéis

Após refletir sobre o sacerdócio batismal dos fiéis nos últimos textos do ano de 2020, o site Vatican News dedicou os três primeiros textos do ano de 2021 à participação dos fiéis no tríplice múnus de Cristo, Sacerdote, Profeta e Rei:

O múnus sacerdotal do cristão
06 de janeiro de 2021

No nosso espaço “Memória Histórica - 50 anos do Concílio Vaticano II”, vamos falar hoje sobre “o múnus sacerdotal do cristão”.
Neste ano de 2021 que se inicia, daremos continuidade a este nosso espaço dedicado ao aprofundamento dos Documentos conciliares, sempre contando com a preciosa contribuição do Padre Gerson Schmidt, que tem nos acompanhando na exposição destes temas.
Neste primeiro programa do ano, o sacerdote incardinado na Arquidiocese de Porto Alegre nos fala sobre o “múnus sacerdotal do cristão”, dando assim continuidade ao programa precedente, quando falou da “Tríplice missão do Povo de Deus”:

O Concílio Vaticano II deu destaque a tríplice missão do leigo - o múnus sacerdotal, profético e real. Na Exortação Apostólica pós-sinodal Cristhifideles Laici, João Paulo II salienta a missão sacerdotal do cristão leigo, afirmada pela Lumen Gentium no número 34: “Os fiéis leigos participam no múnus sacerdotal pelo qual Jesus se ofereceu a Si mesmo sobre a Cruz e continuamente Se oferece na celebração da Eucaristia para glória do Pai e pela salvação da humanidade. Incorporados em Cristo Jesus, os batizados unem-se a Ele e ao Seu sacrifício, na oferta de si mesmos e de todas as suas atividades (cf. Rm 12,1-2)”.
Ao falar dos fiéis leigos, o Concílio diz: “Todos os seus trabalhos, orações e empreendimentos apostólicos, a vida conjugal e familiar, o trabalho de cada dia, o descanso do espírito e do corpo, se forem feitos no Espírito, e as próprias incomodidades da vida, suportadas com paciência, se tornam em outros tantos sacrifícios espirituais, agradáveis a Deus por Jesus Cristo (cf. 1Pd 2,5); sacrifícios estes que são piedosamente oferecidos ao Pai, juntamente com a oblação do Corpo do Senhor, na celebração da Eucaristia. E deste modo, os leigos, agindo em toda a parte santamente, como adoradores, consagram a Deus o próprio mundo”.
A Constituição Dogmática Lumen Gentium, falando da consagração do mundo pelo apostolado dos leigos, ainda diz: “O supremo e eterno sacerdote Cristo Jesus, querendo também por meio dos leigos continuar o Seu testemunho e serviço, vivifica-o pelo Seu Espírito e sem cessar os incita a toda a obra boa e perfeita. E assim, àqueles que intimamente associou à própria vida e missão, concedeu também participação no seu múnus sacerdotal, a fim de que exerçam um culto espiritual, para glória de Deus e salvação dos homens. Por esta razão, os leigos, enquanto consagrados a Cristo e ungidos no Espírito Santo, têm uma vocação admirável e são instruídos para que os frutos do Espírito se multipliquem neles cada vez mais abundantemente”.
Portanto, trabalhos, orações, empreendimentos, vida conjugal e familiar, incomodidades da vida, sacrifícios outros, tudo oferecido ao Pai, na Eucaristia... serão maneiras de exercer o múnus sacerdotal do leigo, participando da missão sacerdotal de Cristo.
O Catecismo da Igreja Católica também fala sobre a participação dos leigos na missão sacerdotal de Cristo. No número 901 diz assim: “Os leigos, em virtude de sua consagração a Cristo e da unção do Espírito Santo, recebem a vocação admirável e os meios que permitem ao Espírito produzir neles frutos sempre mais abundantes. Assim, todas as suas obras, preces e iniciativas apostólicas, vida conjugal e familiar, trabalho cotidiano, descanso do corpo e da alma, se praticados no Espírito, e mesmo as provações da vida, pacientemente suportadas, se tornam ‘hóstias espirituais, agradáveis a Deus por Jesus Cristo’ (1Pd 2,5), hóstias que são piedosamente oferecidas ao Pai com a oblação do Senhor na celebração da Eucaristia. É assim que os leigos consagram a Deus o próprio mundo, prestando a Ele, em toda parte, na santidade de sua vida, um culto de adoração”.
No número 784 do Catecismo acentua-se essa vocação sacerdotal do Povo de Deus: “Ao entrar no Povo de Deus pela fé e pelo Batismo, recebe-se participação na vocação única deste povo, em sua vocação sacerdotal: ‘Cristo Senhor, Pontífice tomado dentre os homens, fez do novo povo um reino e sacerdotes para Deus Pai'. Pois os batizados, pela regeneração e unção do Espírito Santo, são consagrados para ser uma morada espiritual e sacerdócio santo”.
No número 902 do Catecismo diz-se ainda: “De maneira especial, os pais participam do múnus de santificação quando levam uma vida conjugal com espírito cristão e velando pela educação cristã dos filhos”.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

Catequeses sobre os Salmos (2): Laudes do domingo da I semana

O Papa João Paulo II refletiu sobre os salmos e o cântico das Laudes do domingo da I semana do Saltério nas Catequeses dos dias 25 de abril (Sl 62), 02 de maio (Dn 3,57-88.56) e 23 de maio de 2001 (Sl 149).

3. Sede de Deus: Sl 62(63),2-9
25 de abril de 2001

1. O Salmo 62, no qual nos detemos para refletir, é o salmo do amor místico que celebra a adesão total a Deus, partindo de um anseio quase físico e chegando à sua plenitude num abraço íntimo e perene. A oração faz-se desejo, sede e fome, porque envolve a alma e o corpo.
Como escreve Santa Teresa de Ávila, “a sede exprime o desejo de algo, mas um desejo tão intenso que perecemos se dele nos privamos” (Caminho de perfeição, c. XIX). Deste salmo, a Liturgia propõe-nos as primeiras duas estrofes, que estão centradas precisamente nos símbolos da sede e da fome, enquanto a terceira estrofe faz oscilar um horizonte obscuro, do juízo divino sobre o mal, em contraste com a luminosidade e a candura do resto do salmo.

2. Então, iniciemos a nossa meditação com o primeiro cântico, o da sede de Deus (cf. vv. 2-4). É a aurora, o sol que está a nascer no céu obscuro da Terra Santa, e o orante começa o seu dia, indo ao templo para buscar a luz de Deus. Ele tem necessidade daquele encontro com o Senhor de maneira quase instintiva, dir-se-ia “física”. Assim como a terra árida é morta, enquanto não for irrigada pela chuva, e assim como nas fendas do terreno ela se parece com uma boca dessedentada e seca, assim o fiel aspira por Deus para ser por Ele saciado e poder assim existir em comunhão com Ele.
O profeta Jeremias já tinha proclamado: o Senhor é “fonte de águas vivas”, reprovando o povo por ter cavado “cisternas rotas, que não podem reter as águas” (Jr 2,13). O próprio Jesus exclamará em voz alta: “Se alguém tem sede venha a mim e beba... que acredite em mim” (Jo 7,37-38). Em plena tarde de um dia ensolarado e silencioso, Ele promete à mulher samaritana: “Quem beber da água que Eu lhe der, jamais terá sede, porque a água que Eu lhe der se tornará nele uma nascente de água a jorrar para a vida eterna” (Jo 4,14).

3. No que diz respeito a este tema, a oração do Salmo 62 relaciona-se com o cântico de outro salmo maravilhoso: “Assim como a corça suspira pelas correntes de água, assim também a minha alma suspira por Vós, ó meu Deus. A minha alma tem sede do Senhor, do Deus vivo” (Sl 41,2-3). Pois bem, na língua do Antigo Testamento, o hebraico, a “alma” é expressa com o termo nefesh, que em alguns textos designa a “garganta” e em muitos outros chega a indicar todo o ser da pessoa.
Compreendido nesta acepção, o vocábulo ajuda a entender como é essencial e profunda a necessidade de Deus; sem Ele faltam a respiração e a própria vida. Por isso, o salmista chega a pôr em segundo plano a própria existência física, se vier a faltar a união com Deus: “O vosso amor vale mais do que a vida” (Sl 62,4). Inclusivamente no Salmo 72, se repetirá ao Senhor: “Além de Vós, nada mais anseio sobre a terra. A minha carne e o meu coração já desfalecem, mas o Senhor é para sempre a rocha do meu coração e a minha herança... o meu bem é estar perto de Deus” (Sl 72,25-26.28).

"Sois vós, ó Senhor, o meu Deus! Desde a aurora ansioso vos busco!" (Sl 62,2)
(Madalena e os Apóstolos correm ao túmulo na manhã da Ressurreição - Evgeny Demakov)

4. Depois do cântico da sede, eis que se modula nas palavras do salmista o cântico da fome (vv. 6-9). Provavelmente, com as imagens do “grande banquete” e da saciedade, o orador remete para um dos sacrifícios que se celebravam no templo de Sião: o sacrifício chamado “de comunhão”, ou seja, um banquete sagrado em que os fiéis comiam a carne das vítimas imoladas. Outra necessidade fundamental da vida é aqui utilizada como símbolo da comunhão com Deus: a fome é saciada quando se escuta a Palavra divina e se encontra o Senhor. Com efeito, “o homem não vive somente de pão, mas de tudo o que sai da boca do Senhor” (Dt 8,3; cfMt 4,4). E aqui o pensamento do cristão corre para aquele banquete que Cristo preparou na última noite da sua vida terrestre, e cujo profundo valor Ele já tinha explicado durante o discurso de Cafarnaum: “A minha carne é, em verdade, comida e o meu sangue é, em verdade, bebida. Quem come a minha carne e bebe o meu sangue fica em mim e eu nele” (Jo 6,55-56).

5. Através do alimento místico da comunhão com Deus, “a alma une-se a Ele”, como declara o salmista. Uma vez mais, a palavra “alma” refere-se a todo o ser humano. Não é sem motivo que se fala de um abraço, de um abraço quase físico: Deus e o homem já estão em plena comunhão, e dos lábios da criatura não pode brotar senão o louvor jubiloso e agradecido. Mesmo quando estamos na noite escura, sentimo-nos protegidos sob as asas de Deus, como a arca da aliança é coberta pelas asas dos querubins. E então floresce a expressão extática da alegria: “de vossas asas à sombra eu exulto”. O medo dissolve-se, o abraço não se aperta ao vazio, mas ao próprio Deus, enquanto a nossa mão se entrelaça com o poder da Sua direita (cfSl 62,8-9).

Participação dos fiéis na Liturgia

Prosseguindo com suas reflexões sobre a relação entre os leigos e a Liturgia, após tratar dos ministérios litúrgicos e da Iniciação Cristã, o site Vatican News dedicou seus últimos três textos do ano de 2020 sobre o tema da participação dos fiéis na Liturgia, fundamentada no sacerdócio batismal:

O sacerdócio dos cristãos
16 de dezembro de 2020

No nosso espaço “Memória Histórica - 50 anos do Concílio Vaticano II”, vamos falar hoje sobre o sacerdócio dos cristãos.
“É desejo ardente na mãe Igreja que todos os fiéis cheguem àquela plena, consciente e ativa participação nas celebrações litúrgicas (...). Na reforma e incremento da sagrada Liturgia, deve dar-se a maior atenção a esta plena e ativa participação de todo o povo, porque ela é a primeira e necessária fonte onde os fiéis hão de beber o espírito genuinamente cristão. Esta é a razão que deve levar os pastores de almas a procurarem-na com o máximo empenho, através da devida educação” (Sacrosanctum Concilum, n. 14).
A Constituição Conciliar Sacrosanctum Concilum dedica seu capítulo I aos “Princípios gerais em ordem à reforma e incremento da Liturgia”, onde na II parte fala da “Educação litúrgica e participação ativa dos fiéis”. Pelo Batismo, cada cristão passa a ter uma identidade única: é sacerdote, rei e profeta e rei. Por meio de passagens bíblicas e documentos da Igreja, Padre Gerson Schmidt nos ajuda a entender como os cristãos podem exercer o sacerdócio ao qual são chamados:

Ao selar a aliança no deserto do Sinai com o povo libertado da escravidão do Egito, Deus tinha dito: “Se ouvirdes a minha voz e guardardes a minha aliança, sereis para mim uma propriedade particular entre todos os povos... Vós sereis para mim um reino de sacerdotes e uma nação santa” (Ex 19,5-6).
É este texto que ressoa nas palavras de São Pedro em sua Primeira Carta: “Dedicai-vos a um sacerdócio santo, a fim de oferecerdes sacrifícios espirituais aceitáveis a Deus por Jesus Cristo”; e: “Vós sois uma raça eleita, um sacerdócio real, uma nação santa, o povo de particular propriedade, a fim de que proclameis as excelências daquele que vos chamou das trevas para a sua luz maravilhosa” (1Pd 2,5.9).
No mesmo sentido diz o Livro do Apocalipse que Jesus “fez de nós um reino de sacerdotes para Deus, seu Pai” (Ap 1,6). Como no Antigo, assim também no Novo Testamento este sacerdócio é um sacerdócio espiritual que, no entanto, não exclui, e sim inclui o oferecimento de sacrifícios rituais, na Igreja o sacrifício eucarístico. É igualmente claro que o exercício deste sacerdócio se estende a toda a Liturgia, a todas as celebrações. E, finalmente, não há dúvidas de que este povo sacerdotal são todos os batizados. Como no Batismo nascemos pelo dom do Espírito Santo como filhos e filhas de Deus em Jesus Cristo, assim somos no Batismo ungidos sacerdotes no sumo sacerdote Jesus Cristo.
E o sacerdócio dos ordenados? Como diz o termo que o especifica, “sacerdócio ministerial”: ele está a serviço do sacerdócio comum de todos os batizados. Os ordenados ajudam todo o povo dos batizados a viver e exercer o seu sacerdócio espiritual e ritual.
Sobretudo na Liturgia se exerce o sacerdócio de Jesus Cristo, do qual participam todos os batizados e, de modo particular, os ordenados. É neste sentido que a Constituição sobre a Liturgia - a Sacrosanctum Concilum - fala da “plena, consciente e ativa participação das celebrações, que a própria natureza da Liturgia exige e à qual, por força do Batismo, o povo cristão, geração escolhida, sacerdócio régio, nação santa, povo de conquista tem direito e obrigação” (n. 14).
No mesmo sentido, a Constituição diz ainda: “As ações litúrgicas (...) são (...) celebrações da Igreja, que é o sacramento da unidade, isto é, o povo santo, unido e ordenado sob a direção dos Bispos. Por isso, estas celebrações pertencem a todo o Corpo da Igreja, e o manifestam e afetam” (n. 26).
O fiel, por força do Batismo, tem direito e dever dessa integração e participação, que a própria natureza da Liturgia exige. A sagrada Liturgia é a primeira e necessária fonte do genuíno Cristianismo. Não nos adentramos em um verdadeiro ser cristão batizado se não mergulhamos nessa fonte da vida cristã que é a Eucaristia.
Segundo o Discurso do Papa Francisco na 68ª Semana Nacional Litúrgica, “o Concílio Vaticano II fez maturar depois, como bom fruto da árvore da Igreja, a Constituição sobre a sagrada Liturgia Sacrosanctum Concilium, cujas linhas de reforma geral respondiam às necessidades reais e à esperança concreta de uma renovação: desejava-se uma Liturgia viva para uma Igreja toda vivificada pelos mistérios celebrados. Tratava-se de expressar de maneira renovada a vitalidade perene da Igreja em oração, tendo o cuidado de que «os cristãos não entrem neste mistério de fé como estranhos ou espectadores mudos, mas participem na ação sagrada, consciente, ativa e piedosamente, por meio de uma boa compreensão dos ritos e orações» (SC, n. 48)”.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

Ordenação Episcopal no Patriarcado de Constantinopla

No último dia 25 de janeiro, Festa de São Gregório Nazianzeno no calendário bizantino [1], o Patriarca Bartolomeu presidiu na Catedral de São Jorge em Istambul a Divina Liturgia para a Ordenação Episcopal do Arquimandrita Vissarion Komzias, nomeado como novo Metropolita de Espanha e Portugal:

Profissão de fé do Bispo eleito

Divina Liturgia

Incensação

Fotos das Vésperas da Conversão de São Paulo em Roma

No dia 25 de janeiro de 2021, devido a uma ciatalgia, o Papa Francisco não pode presidir, como de costume, as II Vésperas da Solenidade da Conversão de São Paulo na Basílica de São Paulo fora dos Muros por ocasião da conclusão da Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos

O Santo Padre foi substituído pelo Cardeal Kurt Koch, Presidente do Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos, que foi assistido por Monsenhor Marco Agostini. O livreto da celebração pode ser visto aqui.

Oração diante do túmulo de São Paulo

Oração das Vésperas

Salmodia

Homilia do Papa: Vésperas da Conversão de São Paulo

Solenidade da Conversão de São Paulo Apóstolo
Celebração das II Vésperas
54ª Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos
Homilia do Papa Francisco
Basílica de São Paulo Fora dos Muros
Segunda-feira, 25 de janeiro de 2021

Devido a uma ciatalgia, o Papa não pode presidir a celebração, sendo substituído pelo Cardeal Kurt Koch, Presidente do Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos, que leu a homilia preparada pelo Santo Padre:

«Permanecei no meu amor» (Jo 15,9). Jesus associa este pedido à imagem da videira e dos ramos, a última que nos dá nos Evangelhos. O próprio Senhor é a videira, a videira «verdadeira» (Jo  15,1), que não atraiçoa as expectativas, mas permanece fiel no amor e nunca falha, apesar dos nossos pecados e divisões. Nesta videira que é Ele, estamos enxertados como ramos todos nós, batizados: quer dizer que só unidos a Jesus é que podemos crescer e dar fruto. Nesta tarde, contemplemos esta unidade indispensável, que tem vários níveis. Pensando na videira, poderíamos imaginar a unidade formada por três círculos concêntricos, como os de um tronco.

O primeiro círculo, o mais interno, é o permanecer em Jesus. Daqui parte o caminho de cada um rumo à unidade. Na realidade mutável e complexa de hoje, arrastados daqui e dali, é fácil perder a linha. Muitos se sentem intimamente divididos, incapazes de encontrar um ponto firme, uma estrutura estável nas circunstâncias variáveis da vida. Jesus indica-nos o segredo da estabilidade: permanecer n’Ele. No texto que escutamos, repete sete vezes este conceito (cf. Jo  15,4-7.9-10). Sabe que, sem Ele, nada podemos fazer (cf. v. 5). E mostrou-nos também como fazer, dando-nos o exemplo: cada dia retirava-Se em lugares desertos para orar. Precisamos da oração, como de água, para viver. A oração pessoal, o estar com Jesus, a adoração, é o essencial deste permanecer n’Ele. É o meio para colocar no coração do Senhor tudo aquilo que povoa o nosso coração: esperanças e temores, alegrias e dores. Mas sobretudo, centrados em Jesus na oração, experimentamos o seu amor. E daí recebe vida a nossa existência, como o ramo que toma a seiva do tronco. Esta é a primeira unidade, a nossa integridade pessoal, obra da graça que recebemos permanecendo em Jesus.

O segundo círculo é o da unidade com os cristãos. Somos ramos da mesma videira, somos vasos comunicantes: o bem e o mal que realiza cada um revertem-se sobre os outros. Além disso, na vida espiritual, vigora uma espécie da «lei da dinâmica»: na medida em que permanecemos em Deus, aproximamo-nos dos outros e, na medida em que nos aproximamos dos outros, permanecemos em Deus. Significa que, se invocarmos Deus em espírito e verdade, daí brota a exigência de amar os outros e, vice-versa, «se nos amarmos uns aos outros, Deus permanece em nós» (1Jo 4,12). A oração só pode levar ao amor, caso contrário é vão ritualismo. Com efeito, não é possível encontrar Jesus sem o seu Corpo, composto de muitos membros, tantos quantos são os batizados. Se a nossa adoração for genuína, cresceremos no amor por todos aqueles que seguem Jesus, independentemente da comunhão cristã a que pertençam, porque, mesmo se não são «dos nossos», são d’Ele.
Constatamos, porém, que amar os irmãos não é fácil, porque se apresentam imediatamente os seus defeitos e as suas faltas, e voltam à mente as feridas do passado. Aqui vem em nosso auxílio a ação do Pai que, como sábio agricultor (cfJo 15,1), sabe bem o que fazer: «Ele corta todo o ramo que não dá fruto em Mim e poda o que dá fruto, para que dê mais fruto ainda» (Jo 15,2). O Pai corta e poda. Por quê? Porque, para amar, precisamos ser despojados daquilo que nos extravia e nos faz debruçar sobre nós mesmos, impedindo-nos de dar fruto. Por isso peçamos ao Pai para cortar em nós os preconceitos contra os outros e os apegos mundanos que impedem a plena unidade com todos os seus filhos. Assim, purificados no amor, saberemos colocar em segundo plano os empecilhos terrenos e os obstáculos de outrora, que hoje nos desviam do Evangelho.

O terceiro círculo da unidade, o mais largo, é a humanidade inteira. Neste âmbito, podemos refletir sobre a ação do Espírito Santo. Na videira que é Cristo, Ele é a seiva que chega a todas as partes. Mas o Espírito sopra onde quer, e por todo o lado quer reconduzir à unidade. Leva-nos a amar não só àqueles que nos amam e pensam como nós, mas a todos, como Jesus nos ensinou. Torna-nos capazes de perdoar aos inimigos, e as injustiças sofridas. Impele-nos a ser ativos e criativos no amor. Lembra-nos que o próximo não é só quem partilha os nossos valores e ideias, mas que somos chamados a fazer-nos próximo de todos, bons Samaritanos duma humanidade vulnerável, pobre e sofredora - hoje, tão sofredora -, que jaz por terra nas estradas do mundo e que Deus, na sua compaixão, deseja levantar. O Espírito Santo, autor da graça, ajuda-nos a viver na gratuidade, a amar mesmo quem não nos retribui, porque é no amor puro e desinteressado que o Evangelho dá fruto. É pelos frutos que se reconhece a árvore: pelo amor gratuito, se reconhece se pertencemos à videira de Jesus.
O Espírito Santo ensina-nos, assim, o amor concreto por todos os irmãos e irmãs com quem partilhamos a mesma humanidade, aquela humanidade que Cristo uniu inseparavelmente a Si, dizendo-nos que O encontraremos sempre nos mais pobres e necessitados (cfMt 25,31-45). Servindo-os juntos, descobrir-nos-emos irmãos e cresceremos na unidade. O Espírito, que renova a face da terra, exorta-nos também a cuidar da nossa casa comum, a fazer opções ousadas no modo como vivemos e consumimos, porque o contrário de dar fruto é a exploração, e é indigno desperdiçar os preciosos recursos de que muitos estão privados.

Nesta tarde o próprio Espírito, artífice do caminho ecumênico, levou-nos a rezar juntos. E ao mesmo tempo em que experimentamos a unidade que deriva de nos dirigirmos a Deus com uma só voz, desejo agradecer a todos aqueles que rezaram nesta Semana e continuarão a rezar pela unidade dos cristãos. Dirijo a minha saudação fraterna aos representantes das Igrejas e Comunidades eclesiais aqui reunidos: aos jovens ortodoxos e ortodoxos orientais que estudam em Roma com o apoio do Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos; aos professores e alunos do Instituto Ecumênico de Bossey, que deveriam ter vindo a Roma como nos anos anteriores, mas não puderam por causa da pandemia e acompanham-nos através dos mass-media. Queridos irmãos e irmãs, permaneçamos unidos em Cristo! Que o Espírito Santo, derramado nos nossos corações, nos faça sentir filhos do Pai, irmãos e irmãs entre nós, irmãos e irmãs na única família humana. Que a Santíssima Trindade, comunhão de amor, nos faça crescer na unidade.


Fonte: Santa Sé

terça-feira, 26 de janeiro de 2021

Missas votivas da Terra Santa (1): Introdução

Eu sou o Alfa e o Ômega, diz o Senhor Deus, Aquele que é, Aquele que era e Aquele que há de vir” (Ap 1,8).

Dentre os diversos formulários de oração propostos pelo Missal Romano, encontramos as Missas votivas, celebradas para favorecer a devoção dos fiéis. Dentre estas Missas, porém, não constam “os mistérios da vida do Senhor ou da bem-aventurada Virgem Maria (...), pelo fato de sua celebração estar unida ao ciclo do Ano Litúrgico” (Introdução Geral do Missal Romano, 3ª edição, n. 375) [1].

Assim, não há a “Missa votiva do Natal” ou a “Missa votiva da Páscoa”. Porém, como veremos, encontramos algumas Missas votivas dos mistérios do Senhor nos santuários da Terra Santa: são as “Missas votivas do lugar”.

Hodie” (Hoje): A Liturgia, atualização da história da salvação

Segundo o Catecismo da Igreja Católica, “a Liturgia cristã não se limita a recordar os acontecimentos que nos salvaram: atualiza-os, torna-os presentes” (n. 1104).

Os acontecimentos salvíficos, como a Morte e a Ressurreição de Cristo, ocorreram “uma vez por todas” (cf. Hb 7,27; 9,12; 10,10). Porém, “toda vez que” os celebramos, eles se tornam presentes: “Todas as vezes, pois, que comeis desse pão e bebeis desse cálice, anunciais a morte do Senhor, até que Ele venha” (1Cor 11,26).

Não se trata de repetição, como prossegue o Catecismo: “O Mistério Pascal de Cristo celebra-se, não se repete; as celebrações é que se repetem. Mas em cada uma delas sobrevém a efusão do Espírito Santo, que atualiza o único mistério” (n. 1104).

“Quando a Igreja celebra o mistério de Cristo, há uma palavra que ritma a sua oração: Hoje!, como um eco da oração que lhe ensinou o seu Senhor e do chamamento do Espírito Santo” (Catecismo da Igreja Católica, n. 1165).

Cristo Pantocrator, Senhor do tempo e da história
(Basílica do Santo Sepulcro, Jerusalém)

Mas embora em cada celebração litúrgica todo o mistério da salvação esteja presente, a Igreja nos propõe, de maneira pedagógica, a celebração anual dos mistérios do Senhor, transformando assim o chronós (tempo cronológico) em kairós (tempo favorável, tempo da salvação) [2]:

“A santa mãe Igreja considera seu dever celebrar, em determinados dias do ano, a memória sagrada da obra de salvação do seu divino Esposo. Em cada semana, no dia a que chamou domingo, celebra a da Ressurreição do Senhor, como a celebra também uma vez no ano na Páscoa, a maior das solenidades, unida à memória da sua Paixão. Distribui todo o mistério de Cristo pelo correr do ano, da Encarnação e Nascimento à Ascensão, ao Pentecostes, à expectativa da feliz esperança e da vinda do Senhor” (Constituição Sacrosanctum Concilium, n. 102).

Hic” (Aqui): As Missas votivas nos Santuários da Terra Santa

Após esta introdução, entramos no tema proposto: as Missas votivas dos Santuários da Terra Santa. Nestes lugares onde aconteceram os eventos da história da salvação, os peregrinos podem celebrar a “Missa votiva do lugar”, nas quais o grande eco não é tanto o “hoje” (hodie), mas o “aqui” (hic).

Fotos do III Domingo do Tempo Comum em Manila

No último dia 24 de janeiro o Administrador Apostólico da Arquidiocese de Manila (Filipinas), Dom Broderick Pabillo, celebrou a Santa Missa do III Domingo do Tempo Comum no Santuário de São José em Mandaluyong, município da região metropolitana de Manila.

A escolha do Santuário, confiado aos Oblatos de São José, deve-se ao "Ano de São José", de 08 de dezembro de 2020 a 08 de dezembro de 2021, com a concessão de especiais indulgências.

Devido à solenidade da ocasião, foram utilizados paramentos brancos (festivos), substituindo os verdes previstos para o Tempo Comum, como permite o Missal Romano.

Imagem de São José proposta à veneração dos fiéis
Detalhe da casula
Procissão de entrada
Incensação da imagem de São José
Ritos iniciais

Ângelus: III Domingo do Tempo Comum - Ano B

Papa Francisco
Ângelus
Domingo, 24 de janeiro de 2021

Amados irmãos e irmãs, bom dia!
O trecho do Evangelho deste domingo (Mc 1,14-20) mostra-nos, por assim dizer, a «passagem do testemunho» de João Batista para Jesus. João foi o seu precursor, preparou-lhe o terreno e o caminho: então Jesus pode começar a sua missão e anunciar a salvação já presente; a salvação era Ele. A sua pregação é resumida nestas palavras: «Completou-se o tempo e o Reino de Deus está próximo; fazei penitência e crede no Evangelho» (v. 15). Simplesmente! Jesus não usava meias-palavras. É uma mensagem que nos convida a refletir sobre dois temas essenciais: o tempo e a conversão.

Neste texto do evangelista Marcos, o tempo deve ser entendido como a duração da história da salvação realizada por Deus; portanto, o tempo “cumprido” é aquele em que esta ação salvífica atinge o seu ápice, a  plena realização: é o momento histórico em que Deus enviou o seu Filho ao mundo e o seu Reino se tornou mais “próximo” do que nunca. O tempo da salvação cumpriu-se porque veio Jesus. Contudo, a salvação não é automática; a salvação é um dom de amor e, como tal, oferecido à liberdade humana. Quando falamos de amor, falamos sempre de liberdade: um amor sem liberdade não é amor; pode ser interesse, pode ser receio, muitas coisas, mas o amor é sempre livre, e sendo livre requer uma resposta livre: exige a nossa conversão. Ou seja, trata-se de mudar a nossa mentalidade - nisto consiste a conversão, mudar a mentalidade - e mudar a nossa vida: já não seguindo os modelos do mundo, mas os de Deus, que é Jesus, seguindo Jesus, como Jesus fez e como Jesus nos ensinou. Trata-se de uma mudança decisiva de visão e atitude. Com efeito, o pecado, especialmente o pecado da mundanidade que é como o ar, permeia tudo, e trouxe uma mentalidade que tende à afirmação de si mesmo contra os outros e também contra Deus. Isto é curioso... Qual é a tua identidade? Muitas vezes ouvimos dizer que se exprime a própria identidade em termos de “contra”. É difícil expressar a própria identidade no espírito do mundo em termos positivos e salvíficos: é contra si mesmo, contra os outros e contra Deus. E para esta finalidade não hesita - a mentalidade do pecado, a mentalidade do mundo - em usar o engano e a violência. Engano e violência. Vejamos o que acontece com o engano e a violência: ganância, desejo de poder e não de serviço, guerras, exploração de pessoas... Esta é a mentalidade do engano que certamente tem a sua origem no pai do engano, o grande mentiroso, o diabo. Ele é o pai da mentira, Jesus definiu-o assim.

A mensagem de Jesus opõe-se a tudo isto, convidando-nos a reconhecer a nossa necessidade de Deus e da sua graça; a ter uma atitude equilibrada em relação aos bens terrenos; a sermos acolhedores e humildes para com todos; a conhecer-nos e a realizar-nos no encontro e no serviço aos outros. Para cada um de nós, o tempo em que podemos acolher a redenção é breve: é a duração da nossa vida neste mundo. É breve! Talvez pareça longo... Lembro-me que fui administrar os Sacramentos, a Unção dos enfermos a um idoso muito bom, muito bondoso, e naquele momento, antes de receber a Eucaristia e a Unção dos enfermos, disse-me esta frase: “A minha vida passou voando”, como se dissesse: acreditei que era eterna, mas... “a minha vida passou voando”. É assim que nós, idosos, sentimos que a vida voa. Acaba! E a vida é um dom do amor infinito de Deus, mas é também um tempo de verificação do nosso amor por Ele. Portanto, cada momento, cada instante da nossa existência é um tempo precioso para amar a Deus e para amar o próximo, e assim entrar na vida eterna.

A história da nossa vida segue dois ritmos: um é mensurável, constituído por horas, dias e anos; o outro é composto pelas fases do nosso desenvolvimento: nascimento, infância, adolescência, maturidade, velhice e morte. Cada vez, cada fase tem o seu valor e pode ser um momento privilegiado de encontro com o Senhor. A fé ajuda-nos a descobrir o significado espiritual destes tempos: cada um deles contém uma particular chamada do Senhor, à qual podemos dar uma resposta positiva ou negativa. No Evangelho vemos como Simão, André, Tiago e João responderam: eram homens maduros, tinham o seu trabalho de pescadores, tinham uma vida familiar... No entanto, quando Jesus passou e os chamou, «eles, no mesmo instante, deixaram as redes e seguiram-no» (Mc 1,18).

Queridos irmãos e irmãs, prestemos atenção e não deixemos Jesus passar sem o receber. Santo Agostinho dizia: “Tenho medo de Deus, quando Ele passa”. Medo do quê? De não o reconhecer, de não o ver, de não o acolher.

Que a Virgem Maria nos ajude a viver cada dia, cada momento como tempo de salvação, em que o Senhor passa e nos chama a segui-lo, cada um segundo a própria vida. E nos ajude a converter a mentalidade do mundo, a das fantasias do mundo, que são fogos de artifício, para a do amor e do serviço.

Depois do Ângelus:

Caros irmãos e irmãs!
Este domingo é dedicado à Palavra de Deus. Um dos grandes dons do nosso tempo é a redescoberta da Sagrada Escritura na vida da Igreja a todos os níveis. Nunca como hoje a Bíblia foi tão acessível a todos: em todas as línguas e agora também em formatos audiovisuais e digitais. São Jerónimo, cujo XVI centenário da morte recordei recentemente, diz que quem ignora a Escritura ignora Cristo, quem ignora a Escritura ignora Cristo (cfIn Isaiam Prol.). E vice-versa, é Jesus Cristo, Verbo que se fez carne, que morreu e ressuscitou, que nos abre a mente para a compreensão das Escrituras (cfLc 24,45). Isto acontece especialmente na Liturgia, mas também quando rezamos sozinhos ou em grupo, especialmente com o Evangelho e os Salmos. Agradeço e encorajo as paróquias pelos seus constantes esforços para educar para a escuta da Palavra de Deus. Que nunca nos falte a alegria de semear o Evangelho! E repito mais uma vez: tenhamos o hábito, tende o hábito de trazer sempre um pequeno Evangelho no bolso, na bolsa, para o poder ler durante o dia, pelo menos três, quatro versículos. O Evangelho sempre conosco!

Vocação dos primeiros discípulos
(Giorgio Vasari)

Fonte: Santa Sé.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2021

Fotos da Missa do III Domingo do Tempo Comum no Vaticano

No dia 24 de janeiro de 2021, devido a uma ciatalgia, o Papa Francisco não pode presidir, como estava previsto, a Santa Missa do III Domingo do Tempo Comum no altar da Cátedra da Basílica de São Pedro por ocasião do 2º "Domingo da Palavra de Deus", instituído pelo Motu Proprio Aperuit illis.

O Santo Padre foi substituído por Dom Rino Fisichella, Presidente do Pontifício Conselho para a Promoção da Nova Evangelização. O livreto da celebração pode ser visto aqui.

Procissão de entrada
Incensação
Ritos iniciais


Homilia do Papa: III Domingo do Tempo Comum - Ano B

Domingo da Palavra de Deus
Homilia do Papa Francisco
Basílica de São Pedro
III Domingo do Tempo Comum, 24 de janeiro de 2021

Devido a uma ciatalgia, o Papa não pode presidir a celebração, sendo substituído por Dom Rino Fisichella, Presidente do Pontifício Conselho para a Promoção da Nova Evangelização, que leu a homilia preparada pelo Santo Padre:

Neste Domingo da Palavra, ouvimos Jesus anunciar o Reino de Deus. Vejamos o que diz e a quem o diz.

O que diz. Jesus começa a pregar assim: «Completou-se o tempo e o Reino de Deus está próximo» (Mc 1,15). Deus está perto: é a primeira mensagem. O seu Reino desceu à terra. Deus não está - como frequentemente nos sentimos tentados a pensar - lá em cima nos céus, distante, separado da condição humana, mas está conosco. O tempo da distância acabou, quando Se fez homem em Jesus. Desde então, Deus está muito perto; nunca Se separará nem Se cansará da nossa humanidade. Esta proximidade é o início do Evangelho, é o que Jesus - sublinha o texto - «dizia» (Mc  1,15): não disse uma vez, e acabou; mas dizia, isto é, repetia-o continuamente. «Deus está próximo»: era o leitmotiv do seu anúncio, o coração da sua mensagem. E se este é o início e o refrão da pregação de Jesus, de igual modo deve constituir a constante da vida e do anúncio cristão. Antes de tudo, há que acreditar e anunciar que Deus Se aproximou de nós, que fomos perdoados, «misericordiados». Antes de qualquer palavra nossa sobre Deus, está a sua Palavra para nós, que continua a dizer-nos: «Não tenhas medo, estou contigo. Estou perto de ti e continuarei a estar».

A Palavra de Deus permite-nos tocar com a mão esta proximidade, já que ela - como diz o Deuteronômio - não está longe de nós, antes está muito perto do nosso coração (cf. Dt 30,14). É o antídoto contra o medo de enfrentar a vida sozinhos. Com efeito, o Senhor, através da sua Palavra, con-sola, isto é, permanece com quem está . Falando conosco, lembra-nos que estamos no seu coração, somos preciosos a seus olhos, estamos guardados na palma das suas mãos. A Palavra de Deus infunde esta paz, mas não deixa em paz. É Palavra de consolação, mas também de conversão. «Convertei-vos»: acrescenta Jesus imediatamente depois de ter proclamado a proximidade de Deus, porque com a sua proximidade acabou o tempo de deixarmos à distância Deus e os outros, acabou o tempo em que cada um só pensa em si e avança por conta própria. Isto não é cristão, porque a pessoa que experimenta a proximidade de Deus não pode colocar à distância o próximo, não pode deixá-lo distante na indiferença. Neste sentido, quem frequenta a Palavra de Deus, obtém viragens salutares na sua existência: descobre que a vida não é tempo para se guardar dos outros e proteger a si mesmo, mas ocasião para ir ao encontro dos outros em nome deste Deus próximo. Assim a Palavra, semeada no terreno do nosso coração, leva-nos a semear esperança através da proximidade. Precisamente como Deus faz conosco.

Vejamos agora a quem fala Jesus. Dirige-Se, em primeiro lugar, a pescadores da Galileia. Eram pessoas simples, que viviam do trabalho das suas mãos labutando duramente noite e dia. Não eram especialistas na Sagrada Escritura, nem se salientavam certamente por ciência e cultura. Moravam numa região heterogênea, com vários povos, etnias e cultos: era o lugar mais afastado da pureza religiosa de Jerusalém, o mais distante do coração do país. Mas Jesus começa de lá: não do centro, mas da periferia. E o faz também para nos dizer que ninguém fica marginalizado no coração de Deus. Todos podem receber a sua Palavra e encontrá-Lo pessoalmente. A propósito, há um significativo detalhe no Evangelho, quando se observa que a pregação de Jesus chega «depois» da de João (Mc 1,14). Trata-se de um depois decisivo, que marca a diferença: João acolhia as pessoas no deserto, aonde iam só aqueles que podiam deixar os lugares da sua vida. Diversamente, Jesus fala de Deus no coração da sociedade humana, a todos, onde quer que estejam. E não fala em horários e tempos pré-estabelecidos: «passando ao longo do mar», fala a pescadores enquanto «lançavam as redes» (Mc 1,16). Dirige-se às pessoas nos lugares e momentos mais comuns. Tal é a força universal da Palavra de Deus, que alcança a todos em cada uma das áreas da sua vida.

Mas a Palavra também tem uma força individual, isto é, incide sobre cada um de maneira direta, pessoal. Os discípulos nunca mais esquecerão as palavras ouvidas naquele dia nas margens do lago, perto do barco, dos familiares e colegas; palavras que marcarão para sempre a sua vida. Jesus diz-lhes: «Vinde comigo e farei de vós pescadores de homens» (Mc  1,17). Não os atrai com discursos elevados e inacessíveis, mas fala às suas vidas: a pescadores de peixes diz que serão pescadores de homens. Se lhes tivesse dito «vinde comigo, farei de vós Apóstolos; sereis enviados ao mundo e anunciareis o Evangelho com a força do Espírito; sereis mortos, mas tornar-vos-eis santos», podemos imaginar que Pedro e André Lhe teriam respondido: «Obrigado, mas preferimos as nossas redes e os nossos barcos». Mas Jesus chama-os partindo da sua vida: «Sois pescadores, vos tornareis pescadores de homens». Conquistados por esta frase, irão descobrindo passo a passo que viver a pescar peixes era pouco; o segredo da alegria está em fazer-se ao largo obedecendo à Palavra de Jesus. É assim que o Senhor procede conosco: procura-nos onde estamos, ama-nos como somos e, pacientemente, acompanha os nossos passos. Como àqueles pescadores, vai esperar-nos também aos locais da nossa vida. Com a sua Palavra, quer fazer-nos mudar de rumo, deixando de nos limitarmos a matar o tempo para nos fazermos ao largo com Ele.

Por isso, queridos irmãos e irmãs, não renunciemos à Palavra de Deus. É a carta de amor escrita para nós por Aquele que nos conhece como ninguém: lendo-a, voltamos a ouvir a sua voz, vislumbramos o seu rosto, recebemos o seu Espírito. A Palavra aproxima-nos de Deus: não a deixemos longe. Levemo-la sempre conosco, no bolso, no celular; reservemos-lhe um lugar digno nas nossas casas. Coloquemos o Evangelho num lugar onde nos lembremos de abri-lo diariamente, talvez no começo e no fim do dia, de tal modo que, no meio de tantas palavras que chegam aos nossos ouvidos, qualquer versículo da Palavra de Deus chegue ao coração. Para consegui-lo, peçamos ao Senhor a força de desligar a televisão e abrir a Bíblia, de apagar o celular e abrir o Evangelho. Neste Ano Litúrgico, estamos lendo o Evangelho de Marcos, o mais simples e curto. Por que não fazê-lo também em privado, meditando uma pequena passagem cada dia? Isto nos fará sentir próximo o Senhor e infundirá coragem no caminho da vida.


Fonte: Santa Sé.

Ordenação Episcopal no Rito Bizantino na Polônia

No dia 25 de novembro de 2020 as duas dioceses da Igreja Greco-Católica Ucraniana na Polônia foram reorganizadas de modo a formar uma terceira circunscrição eclesiástica: a Eparquia de Olsztyn-Gdańsk. Na mesma ocasião foi nomeado como seu primeiro Bispo o Padre Arkadiusz Trochanowski.

Este recebeu a ordenação episcopal no último dia 23 de janeiro na Catedral da Proteção da Mãe de Deus em Olsztyn. O ordenante principal foi o Arcebispo-Maior da Igreja Greco-Católica Ucraniana, Dom Sviatoslav Shevchuk (Святосла́в Шевчу́к). Os co-ordenantes foram os outros dois Bispos ucranianos na Polônia: Dom Eugeniusz Mirosław Popowicz, Metropolita de Przemyśl-Warszawa, e Dom Włodzimierz Roman Juszczak, Eparca de Wrocław-Koszalin.

Na véspera, dia 22, houve uma cerimônia na Catedral para a acolhida do Arcebispo-Maior, a leitura dos decretos de criação da Eparquia e de nomeação do Bispo e o juramento de fidelidade deste:

Dia 22 de janeiro: Juramento de fidelidade

Catedral da Proteção da Mãe de Deus em Olsztyn
Leitura dos decretos
Juramento de fidelidade do Bispo-eleito
Palavras do Arcebispo-Maior
Padre Arkadiusz Trochanowski com Dom Sviatoslav

Dia 23 de janeiro: Divina Liturgia e Ordenação Episcopal

domingo, 24 de janeiro de 2021

Hora Média na Festa de São Vicente em Lisboa: Fotos

Na última sexta-feira, 22 de janeiro, o Patriarca de Lisboa, Cardeal Manuel José Macário do Nascimento Clemente, presidiu a oração da Hora Média (15h) na Catedral Patriarcal de Santa Maria Maior, a Sé de Lisboa, por ocasião da Solenidade de São Vicente, Diácono e Mártir, Padroeiro do Patriarcado.

Imagem de São Vicente, Diácono e Mártir
Oração da Hora Média: Hino

Salmodia
Homilia

Hora Média na Festa de São Vicente em Lisboa: Homilia

Homilia na Solenidade de São Vicente, Padroeiro do Patriarcado de Lisboa
O grão caído na terra, que continua a dar fruto

Se o grão de trigo cair na terra e não morrer, fica só ele; mas, se morrer, dá muito fruto” (Jo 12,24). Ouvimos esta frase a Jesus, na solenidade de São Vicente, Padroeiro principal do Patriarcado e ícone ancestral da cidade de Lisboa.
Fazemo-lo no atual contexto pandêmico, com todo o cuidado requerido, em atenção ao bem de todos. Tendo muito presentes os que neste momento mais lutam para minorar os seus danos e sufragando a muitos, que entretanto faleceram.
Com tudo isto, qual o eco daquela frase de Jesus? Que reflexão sugere e que consequência induz?
Refere o grão de trigo, depois a terra onde se desfaz e finalmente o fruto, o muito fruto que alcança. Sequência imprescindível e completa, aliás comprovada em quem a enunciou. Estamos aqui, dois milênios depois da vida e morte de Jesus - pequeno grão, quase despercebido na vastíssima terra em que caiu. E o mesmo fato de estarmos aqui, confirma a verdade da frase que proferiu, correspondendo em absoluto à vida que viveu. Deu muito fruto, como quer frutificar em cada um de nós. Nada se garantiu de fora, tudo se realizou por si. Todas as tradições evangélicas, acentuando este ou aquele aspecto da vida de Jesus, são unânimes neste ponto. O cálice que quis beber foi o da sua entrega por nós e a sede que gritou na cruz foi a que havemos de ter por Ele. Partilha total do que trouxe de Deus Pai - corpo, sangue, alma e divindade - tudo desfeito na terra que somos, para nos refazer n’Ele e com Ele.
Não desistamos de nos admirar com tal fato. Fato e não apenas ideia a concretizar talvez. Estamos aqui, ouvindo estas palavras e refazendo estes gestos, unicamente porque Alguém, já distante no tempo e afastado no lugar, caiu à terra como um grão de trigo e agora se alarga na imensa seara que somos.
Reparemos na desproporção: um só grão de trigo e uma seara depois... A única razão que explica a ultrapassagem de qualquer limite espaço-temporal encontra-se na totalidade da entrega. Qualitativa, porque assim nos deu tudo o que recebeu de Deus Pai; e quantitativa, porque morreu por todos, tornando aquela hora nona em que expirou no tempo inteiro da humanidade de antes e depois. É este o “muito fruto”, só assim alcançado.
Transportava-O um Espírito que nos legou também. Espírito que levou tantos homens e mulheres, século após século e nas mais diversas circunstâncias, a reproduzirem o mesmo movimento de entrega total, por essa terra além. Em quantos canoniza, a Igreja reconhece a entrega de Jesus reproduzida, sendo esse o devido critério. Não se guardaram nem se perderam em si mesmos. Compartilharam o que tinham, desfizeram-se como grãos de trigo no rincão que lhes coube da vasta terra de todos. Muitas vezes sem ninguém, ou quase ninguém, dar por isso na altura, como aconteceu com Jesus. Reconhecidos depois, pelo fruto que tiveram e muito bem fez a tantos.
É esta a qualidade evangélica das coisas e a comprovação inegável que alcançam, à luz da Páscoa de Cristo. A vida amplia-se infinitamente quando, do princípio ao fim do seu percurso natural, se faz sobrenatural pela totalidade da entrega. Nem precisa de muito tempo, podendo consumar-se num momento, desde que seja inteiramente dom.

Assim foi com São Vicente, diácono de Cristo na antiga Saragoça, supliciado em Valência. Não sabemos muito do que foi antes. Sabemos sobretudo o que foi então, quando chegou a altura de servir os seus irmãos com o testemunho total da fé que o transportava. E, precisamente por ser total, mesmo no suplício, alcançou fama e fruto que ninguém conteve. Nem demorou muito o renome e o louvor do seu exemplo, nos sermões de Agostinho ou na poesia de Prudêncio, prova certa do fruto que alcançara.
Cabe lembrar alguns versos de Prudêncio, célebre autor hispânico do século IV para o V. Referem-se ao martírio de São Vicente e, antes de tudo, à razão de suportá-lo, mais forte do que o suplício. Como sempre e ainda aqui, o grão de trigo desfaz-se e germina pela própria força intrínseca que detém. Íntima, inabalável e inteiramente livre. Do corpo mortal ao corpo imortal, assim confessado pela boca do mártir: «Há um outro, um outro interior / que homem algum pode ferir / livre de tudo, sereno, intacto / isento das funestas dores» (in: Paulo Farmhouse Alberto, Santos e milagres na Idade Média em Portugal. São Vicente, Lisboa, Traduvárius, 2012, p. 57).
Impressiona sempre verificar nos mártires a plena liberdade com que se unem a Cristo e à sua cruz. Aí mesmo, onde nem o tormento físico tolheu a misericórdia pelos outros, do ladrão arrependido aos próprios que o matavam: «Perdoa-lhes, Pai, porque não sabem o que fazem» (Lc 23,34). Dizer assim, naquela dolorosa circunstância, só é possível quando a absoluta liberdade interior coincide com a inteira caridade em relação a todos, todos mesmo. Assim em Cristo e, por Cristo, em Vicente. 
Porque aí não chegamos, é a razão também de aqui estarmos. Por intercessão de São Vicente, pedimos a liberdade que ele ganhou de Cristo, ultrapassando o pecado que nos prende pela grande caridade que nos salva. Já assim se rezava junto das suas relíquias, apenas um século passado sobre o martírio. São também versos de Prudêncio, que podemos localizar hoje aqui: «Se este dia de festa celebramos / devidamente, de palavras e coração / se diante da proteção gozosa / das tuas relíquias nos prostramos / desce até aqui por um momento / trazendo-nos o favor de Cristo / para que as nossas almas carregadas / sintam o alívio da sua indulgência» (ibid., p. 78). É sobretudo assim que o grão semeado dá inteiro fruto.
Quando Lisboa passou a ser portuguesa, não tardou que o nosso primeiro rei lhe trouxesse as relíquias. A nau que transportava os seus restos mortais e os corvos que os guardavam tornaram-se emblema da cidade. Mas foi a sua memória mantida que deu muito fruto nos devotos que acorreram e nas vidas que se refizeram, corporal e espiritualmente falando. Como pode e deve acontecer conosco, em torno dos restos materiais tão escassos daquela vida tão grande que assinalam. Mantém-se a desproporção evangélica: um só grão desfeito na terra, muito fruto garantido assim.

Fazemo-lo no tempo difícil que vivemos. Com Vicente, a luta era contra a idolatria que lhe queriam impor. Conosco, é contra a pandemia que rouba muitas vidas e exige tanto esforço. A idolatria definhava as almas, como a pandemia o faz hoje aos corpos. Comum é em muitos - e deve ser em todos - a determinação anímica de persistir, fiéis, solícitos e prestáveis, no que couber a cada um, por ação ou resguardo, apoiando como puder doentes e cuidadores, pessoas sós ou deprimidas, mais novos ou mais velhos. E as duas atitudes se conjugam, porque grandes atuações requerem fortes motivações - como a de Vicente, diácono e mártir. Não faltam os exemplos concretos de abnegação e serviço, em todas as frentes do combate à atual pandemia. É essa mesma entrega abnegada, por conhecida ou discreta que seja, que tem em si mesma a garantia da vitória. Pequenos grãos e fruto certo na nossa terra comum.
Diácono porque servidor; e mártir por servir até ao fim. Os nossos diáconos estão e estarão à altura do seu padroeiro. Lembramo-los também, com a estima que nos merecem pelo seu indispensável ministério. Sem esquecer tantas pessoas que, na nossa cidade e diocese, em serviços públicos ou outros, respondem hoje com tanto esforço e generosidade à crise pandémica que sofremos. Também neles podemos verificar a presença e a ação do mesmo Espírito que de Cristo passou a Vicente e, com Vicente, se expande e atua. Como grão que caiu na terra e continuará a dar muito fruto. 

Lisboa, 22 de janeiro de 2021.

+ Manuel, Cardeal-Patriarca