quinta-feira, 30 de março de 2017

Domingo da Santa Cruz em Moscou

No último dia 18 de março o Patriarca Kirill da Igreja Ortodoxa Russa celebrou a Vigília do Domingo da Santa Cruz, III Domingo da Grande Quaresma, com o rito da Adoração da Cruz:






No domingo, dia 19 de março, o Patriarca celebrou a Divina Liturgia na igreja de São Jó, Patriarca de Moscou, junto ao Mosteiro da Assunção:

Ângelus do Papa: III Domingo da Quaresma - Ano A

Papa Francisco
Ângelus
III Domingo da Quaresma, 19 de março de 2017

Amados irmãos e irmãs, bom dia!
O Evangelho deste III Domingo da Quaresma, apresenta-nos o diálogo de Jesus com a samaritana (Jo 4,5-42). O encontro aconteceu quando Jesus atravessava a Samaria, região entre a Judeia e a Galileia, habitada por pessoas que os judeus desprezavam, considerando-a cismática e herege. Mas será precisamente esta população uma das primeiras a aderir à pregação cristã dos Apóstolos. Enquanto os discípulos vão à aldeia procurar comida, Jesus permanece junto de um poço e pede de beber a uma mulher que ali tinha ido buscar água. E deste pedido começa um diálogo. «Como é que Tu, sendo judeu, te dignas pedir alguma coisa a uma samaritana?». Jesus responde: se soubesses quem sou, e o dom que tenho para ti, serias tu a pedir e eu te daria «água viva», uma água que sacia qualquer sede e se torna fonte inexaurível no coração de quem a bebe (vv. 10-14).

Ir ao poço buscar água é cansativo e tedioso; seria bom ter à disposição uma fonte a jorrar! Mas Jesus fala de uma água diversa. Quando a mulher se apercebe que o homem com o qual está a falar é um profeta, confidencia-lhe a própria vida e apresenta-lhe questões religiosas. A sua sede de afeto e de vida plena não foi satisfeita pelos cinco maridos que tivera, aliás, viveu desilusões e enganos. Por isso a mulher fica admirada com o grande respeito que Jesus tem por ela e quando Ele lhe fala até da verdadeira fé, como relação com Deus Pai «em espírito e verdade», então ela intui que aquele homem poderia ser o Messias e Jesus - o que é raríssimo - confirma-o: «Sou Eu, que falo contigo» (v. 26). Ele diz que é o Messias a uma mulher com uma vida tão dissoluta.

Queridos irmãos! A água que dá a vida eterna foi infundida nos nossos corações no dia do nosso Batismo; nele Deus transformou-nos e encheu-nos da sua graça. Mas talvez este grande dom o tenhamos esquecido, ou reduzido a um mero dado civil; e talvez vamos à procura de «poços» cujas águas não nos matam a sede. Quando esquecemos a verdadeira água, vamos à procura de poços que não têm água limpa. Então este Evangelho é precisamente para nós! Não só para a samaritana, mas para nós. Jesus fala-nos como falou à samaritana. Certamente nós já o conhecemos, mas talvez ainda não o tenhamos encontrado pessoalmente. Sabemos quem é Jesus, mas talvez não o tenhamos encontrado pessoalmente, nem falado com Ele, e ainda não o reconhecemos como o nosso Salvador. Este tempo de Quaresma é a ocasião boa para nos aproximarmos d’Ele, encontrá-lo na oração num diálogo direto, falar com Ele, ouvi-lo; é a ocasião para ver o seu rosto também no rosto de um irmão ou de uma irmã que sofre. Deste modo podemos renovar em nós a graça do Batismo, matar a sede na fonte da Palavra de Deus e do seu Espírito Santo; e assim descobrir também a alegria de nos tornarmos artífices de reconciliação e instrumentos de paz na vida diária.

A Virgem Maria nos ajude a beber constantemente da graça, daquela água que brota da rocha que é Cristo Salvador, para que possamos professar com convicção a nossa fé e anunciar com alegria as maravilhas do amor de Deus misericordioso e fonte de todo o bem.


Fonte: Santa Sé.

Homilia: III Domingo da Quaresma - Ano A

São Beda, o Venerável
Sermão sobre a samaritana no poço de Jacó
Se conhecesses o dom de Deus

Naquele tempo, Jesus chegou a uma cidade da Samaria, chamada Sicar, perto do terreno que Jacó tinha dado ao seu filho José. Era aí que ficava o poço de Jacó. Vejam como o Senhor vinha cansado do caminho: Ele pode se cansar entre nós e por nós, estando, ao mesmo tempo, sempre em si mesmo sem nenhum movimento e em perpétuo repouso; e sendo estável em seu movimento e em sua estabilidade móvel. Sentou-se, então, sobre a fonte para aliviar-se de seu cansaço, e em tudo isso teve respeito à sua dignidade e magistério, porque estar sentado é próprio dos mestres que ensinam.
E veio à cidade dos samaritanos para dar-lhes de passagem algum benefício de sua sacra doutrina; e teve por bem achegar-se à herança que Jacó deu a seu filho José, a fim de mostrar a todos como Ele era verdadeiramente Aquele ao qual o santo José havia prefigurado, e aquele ao qual o verdadeiro sol e a verdadeira lua adoram, e ao qual todas as estrelas servem. Ele era, igualmente, aquele José ao qual os irmãos cruéis – que eram os judeus – perseguiam injustamente. Sentou-se sobre a fonte, porque sabia muito bem que ali viria uma mulher, que desde a eternidade Ele soberanamente tinha escolhido para que viesse a crer e se salvar. E assim segue:
Chegou uma mulher da Samaria para tirar água. Jesus lhe disse: Dá-me de beber. Mas o que é isto, o Senhor pede de beber a uma mulher samaritana, prometendo-lhe - como logo o veremos - a abundância de uma fonte para que bebam os que n’Ele crerem? Mas, na realidade, o Senhor tinha sede, não tanto de beber água, mas da saúde espiritual daquela mulher; e que tal sede era de fato assim, as seguintes palavras o declaram: O meu alimento é fazer a vontade de meu Pai. Pois acrediteis, este é o seu beber, este o seu comer; o seu desejo de alimento e de bebida era ver cumprida naquela mulher a soberana vontade do Pai. Mas a mulher, tendo ainda entendimento carnal, e crendo que a sede do Senhor era corporal, respondeu-lhe:
Como é que tu, sendo judeu, pedes de beber a mim, que sou uma mulher samaritana? A razão de seu espanto explica-se nas seguintes palavras: De fato, os judeus não se dão com os samaritanos. E isto de tal maneira que não dão nem recebem nada deles: os têm por inimigos, porque lhes têm sua terra ocupada, e tendo-os por desprezíveis porque adoram os ídolos juntamente com Deus. Por isso era tido como injurioso chamar um samaritano. Desta injúria se serviram muitas vezes os judeus contra nosso Redentor, chamando-o também de samaritano. Ouçamos o que o Senhor respondeu a esta mulher que ainda estava em trevas e não tinha nenhuma luz:
Se tu conhecesses o dom de Deus, e quem é que te diz: “Dá-me de beber”, tu mesma lhe pedirias a Ele, e Ele te daria água viva. O dom de Deus não é outra coisa a não ser o Espírito Santo: este é o dom que o Senhor enviou aos seus amigos depois de sua gloriosa Ascensão. Porque, como a santa Escritura o diz: Subindo ao céu levou cativa a catividade, e deu dádivas aos homens; e o santo evangelista diz em outro lugar: Não foi ainda dado o Espírito Santo, porque Jesus Cristo ainda não estava glorificado pela sua Ascensão, de maneira que o Senhor declara à boa mulher que Ele não tinha sede da água que ela pensava, porque sua sede era da sua fé, e para isto queria dar-lhe o dom do Espírito Santo, com o qual apagasse nela a sede espiritual que tinha. Esta água é a mesma da qual o Senhor falou quando estava no templo dizendo: O que tem sede venha a mim e beba, e de seu interior manarão fontes de água viva. O sagrado evangelista, ao declarar estas palavras, acrescentou: Isto dizia o Senhor a respeito do Espírito que havia de vir sobre todos os que cressem n’Ele.


Fonte: Lecionário Patrístico Dominical, pp. 61-63. Para adquiri-lo no site da Editora Vozes, clique aqui.

Confira também uma homilia de Santo Efrém para este domingo clicando aqui.

Fotos da Celebração Penitencial no Vaticano

No último dia 17 de março o Papa Francisco presidiu na Basílica de São Pedro uma Celebração Penitencial com confissão e absolvição individuais.

O Santo Padre foi assistido pelos Monsenhores Guido Marini e Kevin Gillespie. O livreto da celebração pode ser visto aqui.

Embora estivesse previsto, o Papa optou por não proferir homilia.

Incensação da cruz
Oração
Liturgia da Palavra
Evangelho

segunda-feira, 27 de março de 2017

II pregação de Quaresma do Padre Cantalamessa

Padre Raniero Cantalamessa
II pregação de Quaresma
17 de março de 2017
"O Espírito Santo nos introduz no mistério da divindade de Cristo"

1. A fé de Nicéia
Continuamos, nesta meditação, a reflexão sobre o papel do Espírito Santo no conhecimento de Cristo. A este respeito, não podemos silenciar uma ideia presente no mundo de hoje. Há muito tempo existe um movimento chamado “Hebreus messiânicos”, ou seja, Hebreus-cristãos. ("Cristo" e "cristão" são apenas a tradução grega do hebraico Messias messiânico!). Uma estimativa fala de cerca de 150 mil membros, divididos em grupos e associações entre eles, espalhados especialmente nos Estados Unidos, Israel e vários países europeus.
São hebreus que acreditam que Jesus, Yeshua, é o Messias prometido, o Salvador e o Filho de Deus, mas não querem absolutamente renunciar de sua identidade e tradição hebraica. Não aderem oficialmente a nenhuma das Igrejas cristãs tradicionais, porque pretendem reconectar-se e reviver a Igreja primitiva dos judeu-cristãos, cuja experiência foi interrompida bruscamente por conhecidos eventos traumáticos.
A Igreja Católica e as outras Igrejas sempre se abstiveram de promover, ou até mesmo nomear, este movimento por óbvias razões de diálogo com o hebraísmo oficial. Eu mesmo nunca falei deles. Mas agora está surgindo a convicção de que não é correto continuar a ignorá-los ou, pior, pô-los no ostracismo de um lado e do outro. Acaba de surgir na Alemanha um estudo de vários teólogos sobre o fenômeno[1]. Se eu falo nesta sede é por um motivo específico, pertinente ao tema destas meditações. Em uma pesquisa sobre os fatores e circunstâncias que estiveram presente na origem da sua fé em Jesus, mais de 60% das pessoas em causa respondeu: "uma transformação interior por obra do Espírito Santo"; em segundo lugar é a leitura da Bíblia e em terceiro os contatos pessoais[2]. É uma confirmação da vida que o Espírito Santo é aquele que dá o verdadeiro e íntimo conhecimento de Cristo.
Retomemos, portanto, o fio das nossas considerações históricas. Enquanto a fé cristã permaneceu restrita ao âmbito bíblico e judaico, a proclamação de Jesus como Senhor ("Creio em um só Senhor Jesus Cristo"), satisfazia todas as exigências da fé cristã e justificava o culto de Jesus “como Deus”. Senhor, Adonai, era, de fato, para Israel um título inequívoco; ele pertence somente a Deus. Chamar Jesus Senhor, portanto, é o mesmo que proclamá-lo Deus. Temos provas irrefutáveis do papel desempenhado pelo título Kyrios no início da Igreja como expressão de culto divino atribuído a Cristo. Na sua versão aramaica Maran-atha (O Senhor vem), ou Marana-tha (Vem, Senhor!), já aparece em São Paulo como fórmula litúrgica (1 Cor 16, 22) e é uma das poucas palavras preservadas na língua da comunidade primitiva[3].
Mas assim que o cristianismo entrou no mundo greco-romano ao redor, o título de Senhor, Kyrios, não era suficiente. O mundo pagão conhecia muitos e diversos "senhores", em primeiro lugar, é claro, o imperador romano. Era necessário encontrar uma outra maneira de garantir a plena fé em Cristo e o seu culto divino. A crise ariana ofereceu uma oportunidade.
Isso nos leva à segunda parte do artigo sobre Jesus, que foi adicionada ao símbolo da fé no Concílio de Nicéia, em 325: “nascido do Pai antes de todos os séculos: Deus de Deus, Luz da Luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro; gerado, não criado, consubstancial (homoousios) ao Pai”.
O bispo de Alexandria, Atanásio, indiscutível paladino da fé de Nicéia, está bem convencido de que não foi ele, nem a Igreja de seu tempo, que descobriu a divindade de Cristo. Todo o seu trabalho consistirá, pelo contrário, em mostrar que esta sempre foi a fé da Igreja; que nova não é a verdade, mas a heresia contrária. A sua convicção sobre este ponto encontra uma confirmação na carta que Plínio o Jovem, governador da Bitinia, escreveu ao imperador Traiano por volta do ano 111 d.C. A única informação confiável que ele diz que tem sobre os cristãos é que “normalmente se reunem antes do amanhecer, em um dia fixo da semana, e cantam hinos a Cristo como a Deus” ("carmenque Christo quasi Deo dicere[4]").
A crença na divindade de Cristo, portanto, já existia e é só ignorando completamente a história que alguém poderia afirmar que a divindade de Cristo é um dogma querido e imposto pelo imperador Constantino no Concílio de Nicéia. A contribuição dos Padres de Nicéia, e em particular de Atanásio, foi, antes de mais nada, a de remover os obstáculos que haviam impedido até então um reconhecimento pleno e sem reticências da divindade de Cristo nas discussões teológicas.
Um desses obstáculos era o hábito grego de definir a essência divina com o termo agennetos, ingênito. Como proclamar que o Verbo é verdadeiro Deus, uma vez que ele é Filho, ou seja, gerado do Pai? Era fácil para Ario estabelecer a equivalência: gerado, igual feito, ou seja, passar gennetos a genetos, e concluir com a célebre frase que fez explodir o caso: "Houve um tempo em que não havia" (en ote ouk en). Isso era equivalente a fazer de Cristo uma criatura, embora não "como as outras criaturas". Atanásio resolve a disputa com uma observação elementar: O termo agenetos foi inventado pelos gregos porque ainda não conheciam o Filho[5]" e defendeu com garra a expressão “gerado, mas não feito”, genitus non factus, de Nicéia.
Outro obstáculo cultural para o pleno reconhecimento da divindade de Cristo, no qual Ario podia apoiar a sua tese, era a doutrina de uma divindade intermediária, o deuteros theos, responsável pela criação do mundo. De Platão em diante, isso tornou-se um dado comum em muitos sistemas religiosos e filosóficos da antiguidade. A tentação de assimilar o Filho, “por meio do qual todas as coisas foram criadas”, a esta entidade intermediária ficava insinuando-se na especulação cristã (Apologistas, Orígenes), embora estranha à vida interna da Igreja. O resultado era um esquema tripartido do ser: no topo, o Pai ingênito; depois dele, o Filho (e mais tarde também o Espírito Santo); em terceiro lugar, as criaturas.
A definição do "genitus non factus” e do homoousios, remove este obstáculo e obra a catarse cristã do universo metafísico dos gregos. Com esta definição, uma única linha de demarcação é desenhada sobre a vertical do ser. Existem apenas dois modos de ser: o do criador e o das criaturas e o Filho se coloca no primeiro modo, não no segundo.
Querendo colocar em uma frase o significado perene da definição de Nicéia, poderíamos formular desta forma: em cada época e cultura, Cristo deve ser proclamado "Deus", não em algum significado derivado ou secundário, mas na acepção mais forte que a palavra "Deus" tem em tal cultura.
É importante saber o que motiva Atanásio e os outros teólogos ortodoxos na batalha, ou seja, de onde lhes vêm uma certeza tão absoluta. Não da especulação, mas da vida; mais precisamente, da reflexão sobre a experiência que a Igreja, graças à ação do Espírito Santo, faz da salvação em Cristo Jesus.
O argumento soteriológico não nasce com a controvérsia ariana; ele está presente em todas as grandes controvérsias cristológicas antigas, daquela antignóstica àquela antimonotelita. Na sua formulação clássica soa assim: "O que não é assumido não é salvo" ("Quod non est assumptum non est sanatum[6]"). No uso que lhe dá Atanásio, ele pode ser entendido da seguinte maneira: "Aquilo que não é assumido por Deus não é salvo", onde a força está naquele breve adendo “por Deus”. A salvação exige que o homem não seja assumido por qualquer intermediário, mas pelo próprio Deus: "Se o Filho é uma criatura - escreve Atanásio – o homem permaneceria mortal, não estando unido a Deus", e ainda: "O homem não seria divinizado, se o Verbo que se tornou carne não fosse da mesma natureza do Pai[7]”.
No entanto, é necessário fazer um esclarecimento importante. A divindade de Cristo não é um "postulado" prático, como é, para Kant, a própria existência de Deus[8]. Não é um postulado, mas a explicação de um dado de fato. Seria um postulado - e, portanto, uma dedução teológica humana – se partisse de uma certa ideia de salvação e dessa se deduzisse a divindade de Cristo como a única capaz de obrar tal salvação; no entanto, é a explicação de um dado se parte, como faz Atanásio, de uma experiência de salvação e mostra-se como ela não poderia existir se Cristo não fosse Deus. Em outras palavras, não é na salvação que se fundamenta a divindade de Cristo, mas é na divindade de Cristo que se fundamenta a salvação.

XIV Catequese do Papa sobre a esperança

Papa Francisco
Audiência Geral
Quarta-feira, 15 de março de 2017
A esperança (14): Rm 12,9-13

Bom dia, estimados irmãos e irmãs!
Sabemos bem que o grande mandamento que o Senhor Jesus nos deixou é o de amar: amar a Deus com todo o coração, com toda a alma e com toda a mente, e amar o próximo como a nós mesmos (cf. Mt 22,37-39), ou seja, somos chamados ao amor, à caridade. E esta é a nossa vocação mais sublime, a nossa vocação por excelência; e a ela está vinculado também o júbilo da esperança cristã. Quem ama tem a alegria da esperança, de chegar a encontrar o grande amor que é o Senhor.
No trecho da Carta aos Romanos que há pouco ouvimos (Rm 12,9-13), o Apóstolo Paulo alerta-nos: existe o risco de que a nossa caridade seja hipócrita, que o nosso amor seja hipócrita. Então, devemos interrogar-nos: quando se verifica esta hipocrisia? E como podemos estar certos de que o nosso amor é sincero, que a nossa caridade é autêntica? Que não fingimos que praticamos a caridade ou que o nosso amor não é uma telenovela: amor sincero, forte...
hipocrisia pode insinuar-se em toda a parte, até no nosso modo de amar. Isto verifica-se quando o nosso amor é interesseiro, impelido por interesses pessoais; e quantos amores interesseiros existem... quando os serviços de caridade nos quais parece que trabalhamos são realizados para nos mostrarmos ou para nos sentirmos satisfeitos: «Mas como sou bom!». Não, isto é hipocrisia! Ou então quando visamos situações que tenham «visibilidade» para mostrar a nossa inteligência ou a nossa capacidade. Por detrás de tudo isto existe uma ideia falsa, enganadora, ou seja, se amamos é porque somos bons; como se a caridade fosse uma criação do homem, um produto do nosso coração. Ao contrário, a caridade é antes de tudo uma graça, um presente; poder amar é uma dádiva de Deus, que devemos pedir. E Ele concede-o de bom grado, se lho pedirmos. A caridade é uma graça: não consiste em fazer transparecer o que nós somos, mas aquilo que o Senhor nos oferece e que nós recebemos livremente; e não se pode expressar no encontro com o próximo, se antes não for gerado pelo encontro com o semblante manso e misericordioso de Jesus.
Paulo convida-nos a reconhecer que somos pecadores e que até o nosso modo de amar é marcado pelo pecado. No entanto, ao mesmo tempo faz-se portador de um anúncio novo, um anúncio de esperança: o Senhor abre-nos um caminho de libertação, uma vereda de salvação. É a possibilidade de vivermos, também nós, o grande mandamento do amor, de nos tornamos instrumentos da caridade de Deus. E isto acontece quando nos deixamos curar e renovar o coração por Cristo ressuscitado. O Senhor ressuscitado que vive no meio de nós, que vive ao nosso lado, é capaz de curar o nosso coração: e fá-lo se lho pedirmos. É Ele quem nos permite, não obstante a nossa pequenez e pobreza, experimentar a compaixão do Pai e celebrar as maravilhas do seu amor. Então, compreende-se que tudo o que podemos ver e fazer pelos irmãos é apenas a resposta àquilo que Deus fez e continua a fazer por nós. Aliás, é o próprio Deus que, fazendo morada no nosso coração e na nossa vida, continua a aproximar-se e a servir todos aqueles que encontramos todos os dias no nosso caminho, a começar pelos últimos e pelos mais necessitados, nos quais Ele é o primeiro que se reconhece.
Então, com estas palavras o Apóstolo Paulo não quer tanto repreender-nos, como ao contrário encorajar-nos e reavivar a nossa esperança. Com efeito, todos nós fazemos a experiência de não viver o mandamento do amor plenamente ou como deveríamos. Mas também isto é uma graça, porque nos leva a compreender que sozinhos não somos capazes de amar de maneira autêntica: temos necessidade de que o Senhor renove continuamente este dom no nosso coração, através da experiência da sua misericórdia infinita. Só assim voltaremos a apreciar as pequenas coisas, as coisas simples, ordinárias; só assim voltaremos a valorizar todas estas pequenas coisas de todos os dias e seremos capazes de amar os outros como Deus os ama, desejando o seu bem, isto é, que sejam santos, amigos de Deus; e ficaremos contentes com a possibilidade de nos tornarmos próximos de quantos são pobres e humildes, como Jesus faz com cada um de nós quando nos afastamos dele, de nos inclinarmos aos pés dos irmãos como Ele, Bom Samaritano, faz com cada um de nós, mediante a sua compaixão e o seu perdão.
Amados irmãos, o que o Apóstolo Paulo nos recordou é o segredo para sermos - uso as suas palavras - o segredo para sermos «alegres na esperança» (Rm 12,12): alegres na esperança. O júbilo da esperança, pois sabemos que em cada circunstância, até na mais adversa e inclusive através dos nossos próprios fracassos, o amor de Deus não esmorece. Então, com coração visitado e habitado pela sua graça e pela sua fidelidade, vivamos na jubilosa esperança de partilhar com os irmãos, no pouco que podemos, aquilo que recebemos dele todos os dias. Obrigado!


Fonte: Santa Sé

Fotos da Missa do Papa no II Domingo da Quaresma

No último dia 12 de março o Papa Francisco celebrou a Santa Missa do II Domingo da Quaresma na Paróquia de Santa Madalena de Canossa em Roma.

O Santo Padre foi assistido por Mons. Guido Marini.

Procissão de entrada
Incensação do altar

Ritos iniciais
Liturgia da Palavra

Homilia do Papa: II Domingo da Quaresma - Ano A

Visita Pastoral à Paróquia romana de Santa Madalena de Canossa
Homilia do Papa Francisco
Domingo, 12 de março de 2017

Neste trecho do Evangelho (Mt 17, 1-9), faz-se referência duas vezes à beleza de Jesus, de Jesus-Deus, de Jesus luminoso, de Jesus cheio de alegria e de vida. Primeiro, na visão: “E foi transfigurado”. Transfigura-se diante deles, dos discípulos: “O seu rosto brilhou como o sol e as suas vestes tornaram-se brancas como a luz». E Jesus transforma-se, transfigura-se. A segunda vez, enquanto desciam do monte, Jesus ordenou-lhes que não falassem desta visão antes que Ele ressuscitasse da morte, ou seja, na ressurreição Jesus terá - tivera, mas naquele momento ainda não tinha ressuscitado - o mesmo rosto luminoso, brilhante, será assim! Mas o que pretendia dizer? Que entre esta transfiguração, tão bonita, e aquela ressurreição, haverá outro rosto de Jesus: haverá um rosto não tão belo; haverá um rosto feio, desfigurado, torturado, desprezado, ensanguentado pela coroa de espinhos... Todo o corpo de Jesus será precisamente como algo para deitar fora. Duas transfigurações e no meio Jesus Crucificado, a cruz. Devemos olhar muito para a cruz! É Jesus-Deus - “este é o meu Filho”, “este é o meu Filho muito amado!” - Jesus, o Filho de Deus, o próprio Deus, no qual o Pai pôs todo o seu enlevo: ele aniquilou-se para nos salvar! E para usar uma palavra demasiado forte, muito forte, talvez uma das palavras mais fortes do Novo Testamento, uma palavra que Paulo usa: fez-se pecado (cf. 2Cor 5,21). O pecado é a coisa mais desagradável; o pecado é a ofensa a Deus, a bofetada a Deus, é dizer não a Deus: “Não me importo de ti, prefiro isto...”. E Jesus fez-se pecado, aniquilou-se, abaixou-se até ali... E a fim de preparar os discípulos para não se escandalizar por o ver assim, na cruz, fez esta transfiguração.

Nós estamos habituados a falar dos pecados: quando nos confessamos - “Cometi este e aquele pecado” - e também na Confissão, quando somos perdoados, sentimos que estamos perdoados porque Ele assumiu este pecado na Paixão: Ele fez-se pecado. Nós estamos habituados a falar dos pecados dos outros. Não é bom fazê-lo... Em vez de falar dos pecados do próximo, não digo que nos façamos nós pecado, porque não podemos, mas olhemos para os nossos pecados e para Ele, que se fez pecado.

Este é o caminho rumo à Páscoa, rumo à Ressurreição: ir em frente com a segurança desta transfiguração; ver este rosto tão luminoso, tão belo que será o mesmo na Ressurreição e o mesmo que encontraremos no Céu, e ver também o outro rosto, que se fez pecado, pagando assim, por todos nós. Jesus fez-se pecado, fez-se maldição de Deus por nós: o Filho bendito, na Paixão tornou-se maldito porque assumiu sobre si os nossos pecados (cf. Gl 3,10-14). Pensemos nisto. Quanto amor! Quanto amor! E pensemos também na beleza do rosto transfigurado de Jesus que encontraremos no Céu. E que esta contemplação dos dois rostos de Jesus - o transfigurado e o que se fez pecado, feito maldição - nos encoraje a ir em frente pelo caminho da vida, pelo caminho da vida cristã. Nos encoraje a pedir perdão pelos nossos pecados, a não pecar tanto... Nos encoraje sobretudo a ter confiança, porque se Ele se fez pecado foi porque assumiu sobre si os nossos. E Ele está sempre disposto a perdoar-nos. Devemos apenas pedi-lo.


Fonte: Santa Sé.

sábado, 25 de março de 2017

Ângelus do Papa: II Domingo da Quaresma - Ano A

Papa Francisco
Ângelus
II Domingo da Quaresma, 12 de março de 2017

Amados irmãos e irmãs, bom dia!
O Evangelho deste II Domingo da Quaresma apresenta-nos a narração da Transfiguração de Jesus (Mt 17,1-9). Tomou consigo em particular três apóstolos, Pedro, Tiago e João, subiu com eles a um alto monte, e lá deu-se este singular fenómeno: o rosto de Jesus «brilhou como o sol e as suas vestes tornaram-se brancas como a luz» (v. 2). Deste modo o Senhor fez resplandecer na sua própria pessoa aquela glória divina que se podia obter com a fé na sua pregação e nos seus gestos milagrosos. E a transfiguração, no monte, é acompanhada pela aparição de Moisés e Elias, «que conversavam com Ele» (v. 3).

A «luminosidade» que caracteriza este evento extraordinário simboliza a sua finalidade: iluminar as mentes e os corações dos discípulos para que possam compreender claramente quem é o seu Mestre. É um raio de luz que se abre de repente sobre o mistério de Jesus e ilumina toda a sua pessoa e toda a sua vicissitude.

Agora decididamente encaminhado para Jerusalém, onde deverá sofrer a condenação à morte por crucificação, Jesus quer preparar os seus para este escândalo - o escândalo da cruz - para este escândalo demasiado forte para a sua fé e, ao mesmo tempo, prenunciar a sua ressurreição, manifestando-se como o Messias, o Filho de Deus. Com efeito, Jesus estava a demonstrar-se um Messias diverso em relação às expetativas, àquilo que eles imaginavam acerca do Messias, como era o Messias: não um rei poderoso e glorioso, mas um servo humilde e desarmado; não um senhor de grandes riquezas, sinal de bênção, mas um homem pobre, que não tem onde reclinar a cabeça; não um patriarca com descendência numerosa, mas um solteiro sem casa nem refúgio. É deveras uma revelação invertida de Deus, e o sinal mais desconcertante desta escandalosa inversão é a cruz. Mas precisamente através da cruz Jesus chegará à ressurreição gloriosa, que será definitiva, não como esta transfiguração que durou um momento, um instante.

Jesus transfigurado no monte Tabor quis mostrar aos seus discípulos a sua glória, não para evitar que eles passassem através da cruz, mas para indicar onde carregar a cruz. Quem morre com Cristo, com Cristo ressuscitará. E a cruz é a porta da ressurreição. Quem luta juntamente com Ele, com Ele triunfará. Eis a mensagem de esperança que a cruz de Jesus contém, exortando à fortaleza na nossa existência. A Cruz cristã não é um adorno de casa nem um ornamento pessoal, mas a cruz cristã é uma chamada ao amor com o qual Jesus se sacrificou para salvar a humanidade do mal e do pecado. Neste tempo de Quaresma, contemplemos com devoção a imagem do crucificado, Jesus na cruz: ele é o símbolo da fé cristã, é o emblema de Jesus, morto e ressuscitado por nós. Façamos com que a Cruz ritme as etapas do nosso itinerário quaresmal para compreender cada vez mais a gravidade do pecado e o valor do sacrifício com o qual o Redentor salvou todos nós.

A Virgem Santa soube contemplar a glória de Jesus escondida na sua humildade. Que ela nos ajude a estar com Ele na oração silenciosa, a deixarmo-nos iluminar pela sua presença, para trazer ao coração, através das noites mais escuras, um reflexo da sua glória.


Fonte: Santa Sé.

Homilia: II Domingo da Quaresma - Ano A

Santo Efrém
Sermão I sobre a Transfiguração
A transfiguração, suporte da fé dos discípulos

Naquele tempo, Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João, seu irmão, e os levou a um lugar à parte, sobre uma alta montanha. E foi transfigurado diante deles; o seu rosto brilhou como o sol e as suas roupas ficaram brancas como a luz.
Ele os levou até a montanha para mostrar-lhes a glória de sua divindade, e lhes ensinar que Ele era o Redentor de Israel, tal como já tinha revelado por seus profetas; e também para prevenir todo escândalo à vista dos sofrimentos que livremente iria sofrer por nós em sua natureza humana. Eles, de fato, o conheciam como homem, mas ignoravam que fosse Deus; conheciam-no como filho de Maria, um homem que vivia com eles no mundo, mas sobre a montanha revelou-lhes que era o Filho de Deus, e o próprio Deus.
Eles o tinham visto comer e beber, fatigar-se e descansar, cochilar e dormir, apavorar-se até gotejar de suor, coisas que não pareciam estar em harmonia com sua natureza divina, nem convir à sua humanidade. Por isso os trouxe sobre a montanha, para que o Pai o chamasse seu Filho, e lhes mostrasse que Ele era realmente Filho d’Ele, e que Ele era Deus. Ele os levou sobre a montanha e mostrou-lhes sua realeza antes de sofrer, seu poder antes de morrer, sua glória antes de ser ultrajado, e sua honra antes de sofrer a ignomínia. Assim, quando fora tomado e crucificado pelos judeus, seus Apóstolos compreendessem que não foi por fraqueza, mas por consentimento e de plena vontade para a salvação do mundo.
Ele os levou sobre a montanha e mostrou-lhes, antes de sua Ressurreição, a glória de sua divindade. Deste modo, quando ressuscitasse dentre os mortos na glória de sua divindade, seus discípulos reconheceriam que não recebia esta glória em recompensa de suas aflições, como se precisasse delas, mas porque já lhe pertencia bem antes dos séculos, com o Pai e para o Pai, assim como Ele mesmo lhe disse ao aproximar-se voluntariamente de sua Paixão: Pai, glorifica-me junto de ti, concedendo-me a glória que tive contigo, antes que o mundo fosse criado.
E então, na montanha, Ele mostrou aos seus Apóstolos a glória de sua divindade, oculta e escondida por sua humanidade. Porque eles viram o seu rosto brilhante como um relâmpago, e suas roupas brancas como a luz. Eles viram dois sóis, um no céu, como de costume, e um incomum; um visível no firmamento e iluminando o mundo, e outro, a sua face, visível somente a eles.


Fonte: Lecionário Patrístico Dominical, pp. 59-60. Para adquiri-lo no site da Editora Vozes, clique aqui.

Confira também uma homilia de Santo Anastácio Sinaíta para este domingo clicando aqui.

I pregação de Quaresma do Padre Cantalamessa

Padre Raniero Cantalamessa
I pregação de Quaresma
10 de março de 2017
“O Espírito Santo nos introduz no mistério do Senhorio de Jesus"

1. "Ele me fará testemunho"
Lendo a Oração da Coleta da Primeiro Domingo da Quaresma, me tocou este ano um detalhe. Nela, não se pede a Deus para para dar-nos a força de realizar alguma das obras clássicas deste tempo: jejum, oração, esmola; pede-se somente uma coisa: de fazer-nos "crescer no conhecimento de Cristo". Creio que seja realmente a obra mais bela e mais agradável ao Salvador e é o objetivo com o qual gostaria de contribuir com as meditações quaresmais deste ano.
Prosseguindo a reflexão iniciada na pregação do Advento sobre o Espírito Santo que deve permear toda a vida e anúncio da Igreja ("Teologia do terceiro artigo!"), nestas meditações quaresmais nos propomos subir da terceira para a segunda parte do Creio. Em outras palavras, buscaremos ressaltar como o Espírito Santo "no introduz na verdade plena" sobre Cristo e sobre seu mistério pascal, isto é, sobre o ser e sobre o agir do Salvador.
Do agir de Cristo em sintonia com o tempo litúrgico da Quaresma, procuraremos aprofundar o papel que o Espírito Santo desenvolve na morte e na ressurreição de Cristo e após ele, na nossa morte e na nossa ressurreição.
A segunda parte do Creio, na sua forma completa, diz assim: "Creio em um só Senhor, Jesus Cristo, Filho Unigênito de Deus, nascido do Pai antes de todos os séculos: Deus de Deus, Luz da Luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado não criado, consubstancial Pai: Por Ele todas as coisas foram criadas".
Esta parte central do Creio reflete dois estágios diferentes da fé. A frase "Creio em um só Senhor Jesus Cristo", reflete a primeiríssima fé da Igreja, logo após a Páscoa. O que segue nesta parte do Creio: "Filho Unigênito de Deus..." reflete um estágio posterior, mais evoluído, sucessivo à controvérsia ariana e ao Concílio de Nicéia. Dediquemos a presente meditação à primeira parte - "creio em um só Senhor Jesus Cristo" - e vejamos o que o Novo Testamento nos diz sobre o Espírito Santo como autor do verdadeiro conhecimento de Cristo.
São Paulo afirma que Jesus Cristo foi estabelecido "Filho de Deus com o poder mediante o Espírito de santidade" (Rom 1,4), isto é, por obra do Espírito Santo. Chega a afirmar que "ninguém pode dizer: Jesus é o Senhor, senão sob a ação do Espírito Santo" (1 Cor 12,3), isto é, graças a uma iluminação interior sua. Atribui ao Espírito Santo "a compreensão do mistério de Cristo" que foi dada a ele como a todos os santos apóstolos e profetas (cf. Ef 3, 4-5); diz que aqueles que creem serão capazes de "compreender a largura, o comprimento, a altura e a profundidade e conhecer a caridade (o amor) de Cristo que desafia todo o conhecimento" somente se forem "repletos do Espírito" (Ef 3, 16-19).
No Evangelho de João, Jesus mesmo anuncia esta obra do Paráclito em relação a eles. Ele tomará do que é seu e o anunciará aos discípulos; recordará a eles tudo aquilo que disse; os conduzirá à verdade plena sobre sua relação com o Pai e os fará testemunhas (cf. Jo 16, 7-15). Precisamente isto será, desde então, o critério para reconhecer se se trata do verdadeiro Espírito de Deus e não de outro espírito: se leva a reconhecer Jesus que veio na carne (cf. 1 Jo 4,2-3).
Alguns acreditam que a ênfase atual sobre o Espírito Santo possa colocar na sombra a obra de Cristo, como se esta fosse incompleta ou perfectível. É uma incompreensão total. O Espírito nunca diz "eu", nunca fala em primeira pessoa, não pretende fundar uma obra própria, mas sempre faz referência a Cristo. O Espírito Santo não faz coisas novas, mas faz novas todas as coisas! Não acrescenta nada às coisas "instituídas" por Jesus, mas as vivifica e renova.
A vinda do Espírito Santo em Pentecostes traduz-se em uma repentina iluminação de todas as ações e a pessoa de Cristo. Pedro concluiu o seu discurso de Pentecostes com a solene definição, que hoje se diria "urbi et orbi": "Que toda a casa de Israel saiba, portanto, com a maior certeza de que este Jesus que vós crucificastes, Deus o constituiu Senhor (Kyrios) e Messias" (At 2,36).
A partir daquele dia, a comunidade primitiva começou a repassar a vida de Jesus, a sua morte e a sua ressurreição, de maneira diversa; tudo pareceu claro, como se tivesse sido tirado um véu de seus olhos (cf. 2 Cor 3,16). Mesmo vivendo lado a lado com ele, sem o Espírito não tinham podido penetrar em profundidade em seu mistérios.
Hoje está em andamento uma reaproximação entre teologia ortodoxa e teologia católica sobre este tema da relação entre Cristo e o Espírito. O teólogo Johannes Zizioulas, em um encontro realizado em Bolonha em 1980, por um lado manifestava reservas sobre a eclesiologia do Concílio Vaticano II porque, segundo ele, "o Espírito Santo era introduzido na eclesiologia depois que se tinha construído o edifício da Igreja somente com material cristológico"; por outro, porém, reconhecia que também a teologia ortodoxa tinha necessidade de repensar a relação entre cristologia e pneumatologia, para não construir a eclesiologia somente sobre uma base pneumatológica. Em outras palavras, nós latinos somos estimulados a aprofundar o papel do Espírito Santo na vida interna da Igreja (que foi o que ocorreu após o Concílio), e os irmãos ortodoxos o de Cristo e da presença na Igreja na história.

2. Conhecimento objetivo e conhecimento subjetivo de Cristo
Voltemos, portanto, ao papel do Espírito Santo em relação ao conhecimento de Cristo. Delineiam-se já, no âmbito do Novo Testamento, dois tipos de conhecimento de Cristo, ou dois âmbitos onde o Espírito desenvolve a sua ação. Existe um conhecimento objetivo de Cristo, de seu ser, de seu mistério e de sua pessoa, e existe um conhecimento mais subjetivo, funcional e interior, que tem por objeto o que Jesus "faz por mim", mais do que aquilo que ele "é em si mesmo".
Em Paulo prevalece ainda o interesse pelo conhecimento daquilo que Cristo fez por nós, pela obra de Cristo e em particular o seu mistério pascal; já em João prevalece o interesse por aquilo que Cristo é: o "Logos" eterno que estava junto de Deus e veio na carne, que é "um com o Pai" (Jo 10,30).
Para João, Cristo é sobretudo o Revelador, para Paulo é sobretudo o Salvador. Mas é somente nos fatos sucessivos que estas duas tendências ficarão evidentes. Fazemos uma breve referência a elas, porque isto nos ajudará a compreender qual é o dom que o Espírito Santo faz, neste campo, na Igreja hoje.
Na época patrística, o Espírito Santo aparece sobretudo como garante da tradição apostólica em torno a Jesus, contra as inovações dos gnósticos. À Igreja - afirma Santo Irineu - foi confiado o Dom de Deus que é o Espírito; dele não são partícipes os que se separam da verdade pregada pela Igreja com suas falsas doutrinas. As Igrejas apostólicas - argumenta Tertuliano - não podem ter errado ao pregar a verdade. Pensar o contrário, significaria que "o Espírito Santo, para esta finalidade enviado por Cristo impetrado pelo Pai como mestre da verdade, ele que é o vigário de Cristo e o seu administrador, teria falhado no cumprimento de sua missão”. 
Na época das grandes controvérsias dogmáticas, o Espírito Santo é visto como o custódio da ortodoxia cristológica. Nos concílios, a Igreja tem a firme certeza de ser "inspirada" pelo Espírito ao formular a verdade sobre as duas naturezas de Cristo, a unidade de sua pessoa, a totalidade de sua humanidade. O acento, portanto, é claramente sobre o conhecimento objetivo, dogmático, eclesial de Cristo.
Esta tendência predominou, na teologia, até a Reforma. Com uma diferença, porém. Os dogmas que no momento de serem formulados eram questões vitais, fruto de viva participação, de toda a Igreja, uma vez sancionados e transmitidos, tendem a perder pungência, a tornarem-se formais. "Duas naturezas, uma pessoa", torna-se uma fórmula bela e acabada, mais do que o ponto de chegada de um longo e sofrido processo. Certamente não faltaram, em todo este tempo, esplêndidas experiências de um conhecimento de Cristo íntimo, pessoal, repleto de fervorosa devoção a Cristo, como aquelas de São Bernardo e de São Francisco de Assis; mas isso não influenciava muito na teologia. Também hoje disso se fala na história da espiritualidade, não naquela da teologia.
Os reformadores protestantes invertem esta situação e dizem: "Conhecer Cristo significa reconhecer os seus benefícios, não pesquisar as suas naturezas e os modos de encarnação". O Cristo "para mim" aparece em primeiro plano. Ao conhecimento objetivo, dogmático, se opõe um conhecimento subjetivo, íntimo; ao testemunho externo da Igreja e das próprias Escrituras sobre Jesus, se antepõe o "testemunho interno" que o Espírito Santo dá a Jesus no coração de cada cristão.
Quando, mais tarde, esta novidade teológica tenderá, ela mesma, no protestantismo oficial, a transformar-se em "morta ortodoxia", surgirão periodicamente movimentos, como o Pietismo no âmbito luterano e o Metodismo no anglicano, para trazê-la novamente à vida. O ápice do conhecimento de Cristo coincide, nestes âmbitos, com o momento em que, movido pelo Espírito Santo, o cristão toma conhecimento de que Jesus morreu "por ele", precisamente por ele, e o reconhece como seu Salvador pessoal:
"Pela primeira vez de todo o coração eu acreditei;
acreditei de fé divina,
e no Espírito Santo encontrei a força
de chamar meu o Salvador.
Senti o sangue da expiação de meu Senhor
diretamente derramado em minha alma".
Completemos este rápido olhar para a história, acenando a uma terceira fase na maneira de perceber a relação entre o Espírito Santo e o conhecimento de Cristo, aquela que caracterizou os séculos do Iluminismo, do qual nós somos herdeiros diretos. Volta a predominar um conhecimento objetivo, separado; não mais, porém, do tipo ontológico, como na época antiga, mas histórico.
Em outras palavras, não interessa saber quem é Jesus Cristo (a pré-existência, as naturezas, a pessoa), mas quem ele foi na realidade da história. É a época da busca do assim chamado "Jesus histórico"!
Nesta fase, o Espírito Santo não desempenha mais nenhum papel no conhecimento de Cristo; está totalmente ausente. O "testemunho interno" do Espírito Santo passa a ser identificado com a razão e com o espírito humano. O "testemunho externo" é o único importante, mas com ele não se entende mais o testemunho apostólico da Igreja, mas unicamente aquele da história, comprovado com os diversos métodos críticos. O pressuposto comum deste esforço era de que para encontrar o verdadeiro Jesus, é necessário buscar fora da Igreja, separá-lo "das vendas do dogma eclesiástico".
Sabemos qual foi o êxito de toda esta busca do Jesus histórico: o fracasso, o que não significa que não tenha trazido muitos frutos positivos. Persiste ainda, a este respeito, um equívoco de fundo. Jesus Cristo - e depois dele outros homens, como São Francisco de Assis - simplesmente não vive na história, mas criou uma história, e vive agora na história que criou, como um som na onde que provocou. O esforço obstinado dos historiadores racionalistas parece aquele de separá-lo da história que criou, para restituí-lo àquela comum e universal, como se assim fosse possível perceber melhor o som na sua originalidade, separando-o da onda que o transporta. A história que Jesus iniciou, ou a onda que emitiu, é a fé da Igreja animada pelo Espírito Santo e é somente por meio dela que se remete à sua fonte.
Não está excluída com isto a legitimidade também da normal busca histórica sobre ele, mas esta deveria ser mais consciente de seu limite e reconhecer que não exaure tudo o que se pode saber de Cristo. Como o ato mais nobre da razão é reconhecer que existe algo que a supera, assim o ato mais honesto do historiador é reconhecer que existe algo que não se pode alcançar somente com a história.

Exercícios Espirituais da Cúria Romana

Entre os dias 05 e 10 deste mês de março o Papa Francisco e os membros da Cúria Romana participaram dos Exercícios Espirituais de Quaresma na Casa de Retiros Jesus Mestre em Ariccia, próximo a Roma.

O pregador foi o padre franciscano Giulio Michelini, que refletiu sobre a Paixão segundo o Evangelho de Mateus.

O Papa chega à casa de retiros
Entrada na capela
Preparação para as Vésperas

Oração das Vésperas

quinta-feira, 23 de março de 2017

Domingo da Ortodoxia em Moscou

No último dia 05 de março o Patriarca Kirill da Igreja Ortodoxa Russa celebrou na Catedral Patriarcal do Cristo Salvador em Moscou a Divina Liturgia do I Domingo da Grande Quaresma, o Domingo da Ortodoxia.

Neste dia os fieis ortodoxos celebram a definição do culto das imagens pelo II Concílio de Niceia (787).

Patriarca abençoa os fieis
Litania da paz
Pequena Entrada


Ângelus do Papa: I Domingo da Quaresma - Ano A

Papa Francisco
Ângelus
I Domingo da Quaresma, 05 de março de 2017

Queridos irmãos e irmãs, bom dia!
Neste I Domingo da Quaresma, o Evangelho introduz-nos no caminho rumo à Páscoa, mostrando Jesus que permanece por quarenta dias no deserto, submetido às tentações do diabo (Mt 4,1-11). Este episódio coloca-se num momento específico da vida de Jesus: imediatamente depois do batismo no rio Jordão e antes do ministério público. Ele acabou de receber a solene investidura: o Espírito de Deus desceu sobre Ele, o Pai do céu declarou-o «Meu Filho muito amado» (Mt 3,17). Jesus já está pronto para iniciar a sua missão; e dado que ela tem um inimigo declarado, ou seja, Satanás, Ele enfrenta-o imediatamente, “corpo a corpo”. O diabo recorre precisamente ao título de “Filho de Deus” para afastar Jesus do cumprimento da sua missão: «Se tu és o Filho de Deus...», repete (vv. 3.6), e propõe-lhe que faça gestos milagrosos - que seja “feiticeiro” - como por exemplo transformar as pedras em pão para saciar a sua fome, e lançar-se abaixo dos muros do templo para ser salvo pelos anjos. A estas duas tentações, segue-se a terceira: adorar a ele, o diabo, para ter o domínio sobre o mundo (v. 9).

Mediante esta tríplice tentação, Satanás quer desviar Jesus do caminho da obediência e da humilhação - porque sabe que assim, por esta via, o mal será derrotado - e levá-lo pelo falso atalho do sucesso e da glória. Mas as flechas venenosas do diabo são todas «detidas» por Jesus com o escudo da Palavra de Deus (vv. 4.7.10.) que exprime a vontade do Pai. Jesus não profere qualquer palavra própria: responde somente com a Palavra de Deus. E assim o Filho, repleto da força do Espírito Santo, sai vitorioso do deserto.

Durante os quarenta dias da Quaresma, como cristãos somos convidados a seguir os passos de Jesus e a enfrentar o combate espiritual contra o Maligno com a força da Palavra de Deus. Não com a nossa palavra, não serve. A palavra de Deus: ela tem a força para derrotar Satanás. Por esta razão, é necessário familiarizar-se com a Bíblia: lê-la frequentemente, meditá-la, assimilá-la. A Bíblia contém a Palavra de Deus, que é sempre atual e eficaz. Alguém disse: o que aconteceria se tratássemos a Bíblia como tratamos o nosso celular? Se a trouxéssemos sempre conosco, ou pelo menos o pequeno Evangelho de bolso, o que aconteceria? Se voltássemos atrás quando o esquecemos: te esqueces do celular - oh, não o tenho, volto atrás para o procurar; se a abríssemos várias vezes por dia; se lêssemos as mensagens de Deus contidas na Bíblia como lemos as mensagens do celular, o que aconteceria? Obviamente a comparação é paradoxal, mas faz refletir. Com efeito, se tivéssemos sempre a Palavra de Deus no coração, nenhuma tentação poderia afastar-nos de Deus e nenhum obstáculo nos poderia fazer desviar do caminho do bem; saberíamos vencer as insinuações quotidianas do mal que está em nós e fora de nós; seríamos mais capazes de levar uma vida ressuscitada segundo o Espírito, acolhendo e amando os nossos irmãos, especialmente os mais débeis e necessitados, e também os nossos inimigos.

A Virgem Maria, ícone perfeito da obediência a Deus e da confiança incondicional à sua vontade, nos sustente no caminho quaresmal, para que nos coloquemos à escuta dócil da Palavra de Deus a fim de realizar uma verdadeira conversão do coração.


Fonte: Santa Sé.

Conclusões do Congresso Internacional de Música Sacra

“Cantate Domino Canticum Novum”
Uma Declaração Sobre a Situação Atual da Música Sacra

Nós, os abaixo-assinados músicos, pastores, professores, estudiosos, e amantes da música sacra, humildemente oferecemos esta declaração à comunidade católica ao redor do mundo, expressando nosso grande apreço pelo tesouro de música sacra da Igreja e nossa profunda preocupação com sua situação atual.

Introdução
Cantate Domino canticum novum, cantate Domino omnis terra (Salmo 96): este canto à glória de Deus ressoa por toda a história do cristianismo, desde os primeiros dias até hoje. Tanto a Sagrada Escritura quanto a Sagrada Tradição dão testemunho de grande amor à beleza e ao poder da música no culto a Deus Todo-Poderoso. O tesouro da música sacra sempre foi apreciado na Igreja Católica por seus santos, teólogos, papas e leigos.
Tal amor e prática da música é testemunhado em toda a literatura cristã e nos muitos documentos que os Papas devotaram à música sacra, desde Docta Sanctorum Patrum (1324) de João XXII, ao Annus Qui (1749) de Bento XIV, até o Motu Proprio Tra le Sollecitudini (1903) de S. Pio X, Musicae Sacrae Disciplina, de Pio XII, e o Quirógrafo sobre a Música Sacra (2003) de S. João Paulo II, e assim por diante. Esta vasta documentação nos impele a tomar com total seriedade a importância do papel da música na liturgia. Esta importância está relacionada à conexão profunda que existe entre a liturgia e a sua música, uma conexão de mão dupla: a boa liturgia enseja música esplêndida, mas um baixo padrão de música litúrgica também afeta tremendamente a liturgia. Tampouco se pode esquecer a importância ecumênica da música, quando se sabe que outras tradições cristãs – como anglicanos, luteranos, e ortodoxos orientais – possuem elevada estima pela dignidade da música sacra, como demonstram as suas próprias bem guardadas jóias musicais.
Estamos observando um marco importante, o qüinquagésimo aniversário da promulgação da Instrução sobre a Música na Liturgia, Musicam Sacram, de 5 de março de 1967, sob o pontificado do Beato Paulo VI. Relendo hoje o documento, não podemos deixar de pensar na via dolorosa percorrida pela música sacra nas décadas seguintes a Sacrosanctum Concilium. De fato, o que ocorria em algumas facções da Igreja naquele momento (1967) não estava de forma alguma de acordo com a Sacrosanctum Concilium ou com a Musicam Sacram. Algumas idéias que jamais estiveram presentes nos documentos do Concílio foram postas em prática à força, por vezes com falta de vigilância do clero e da hierarquia eclesiástica. Em alguns países, o tesouro da música sacra, que o Concílio pediu que fosse preservado, não só não o foi, como chegou a ser contestado, em total oposição ao Concílio, que afirmou claramente:
“A tradição musical da Igreja é um tesouro de inestimável valor, que excede todas as outras expressões de arte, sobretudo porque o canto sagrado, intimamente unido com o texto, constitui parte necessária ou integrante da Liturgia solene. Não cessam de a enaltecer, quer a Sagrada Escritura, quer os Santos Padres e os Romanos Pontífices, que ainda recentemente, a começar em S. Pio X, vincaram com mais insistência a função ministerial da música sacra no culto divino. A música sacra será, por isso, tanto mais santa quanto mais intimamente unida estiver à ação litúrgica, quer como expressão delicada da oração, quer como fator de comunhão, quer como elemento de maior solenidade nas funções sagradas. A Igreja aprova e aceita no culto divino todas as formas autênticas de arte, desde que dotadas das qualidades requeridas.” (SC 112)

A Situação Atual
Diante da visão da Igreja, expressa tão freqüentemente, não podemos deixar de nos preocupar com a situação atual da música sacra, que é nada menos que desesperadora, com os abusos no domínio da música sacra tendo-se tornado hoje quase a norma e não mais a exceção. Resumimos a seguir alguns dos elementos que contribuem à atual situação deplorável da música sacra e da liturgia.
1. Perdeu-se o entendimento da “forma musical da liturgia”, isto é, o entendimento de que a música é parte inerente da própria essência da liturgia como o culto público, formal e solene de Deus. Devemos não apenas cantar na Missa, mas cantar a Missa. Por isso, como nos recordou a instrução Musicam Sacram, as partes do sacerdote deveriam ser cantadas nos tons dados no Missal, com o povo entoando as respostas; deveria ser encorajado o canto do Ordinário da Missa em gregoriano, ou com música nele inspirada; e o Próprio da Missa também deveria ocupar o lugar de destaque que cabe à sua proeminência histórica, à sua função litúrgica, e à sua profundidade teológica. Argumentos semelhantes aplicam-se ao canto do Ofício Divino. É uma exibição do vício da “preguiça litúrgica” recusar-se a cantar a liturgia, usar “música utilitária” em vez da música sacra, recusar-se a educar a si mesmo e aos outros sobre a tradição e os preceitos da Igreja, e nada fazer pelo desenvolvimento de um programa de música sacra.
2. Esta perda de entendimento litúrgico e teológico vai de mãos dadas com a adesão ao secularismo. O secularismo dos estilos de música popular tem contribuído para a dessacralização da liturgia, enquanto o secularismo do comercialismo baseado no lucro tem reforçado a imposição às paróquias de coleções de música medíocres. Ele encorajou o antropocentrismo na liturgia, que abala a sua própria natureza. Em vastos setores da Igreja, existe hoje uma relação incorreta com a cultura, que pode ser vista como uma “rede de conexões”. Com a situação atual de nossa música litúrgica (e da própria liturgia, porque as duas são interligadas), rompemos essa rede de conexões com nosso passado e tentamos estabelecer conexão com um futuro que não tem sentido sem o seu passado. A Igreja hoje não está utilizando ativamente as suas riquezas culturais para evangelizar, mas é ela mesma utilizada pela cultura secular prevalecente, nascida em oposição ao cristianismo, que desestabiliza o sentido de adoração que está no cerne da fé cristã.
Em sua homilia na Festa de Corpus Christi, em 4 de junho de 2015, o Papa Francisco falou da “admiração da Igreja perante esta realidade [da Santíssima Eucaristia]. Uma admiração que alimenta sempre a contemplação, a adoração e a memória”. Em muitas de nossas igrejas ao redor do mundo, onde está esse senso de contemplação, essa adoração, essa admiração diante do mistério da Eucaristia? Perderam-se porque estamos vivendo uma espécie de Alzheimer espiritual, uma doença que rouba de nós as nossas memórias espirituais, teológicas, artísticas, musicais e culturais. Foi dito que precisamos trazer a cultura de cada povo para a liturgia. Isto pode estar certo se entendido corretamente, mas não no sentido de que a liturgia (e a música) tornem-se o locus onde temos de exaltar a cultura secular. A liturgia é o locus onde a cultura – toda cultura – é elevada a outro nível e purificada.
3. Existem grupos na Igreja que pressionam por uma “renovação” que não reflete o ensinamento da Igreja, mas serve antes à agenda, à visão de mundo, e aos interesses deles. Esses grupos possuem membros que ocupam posições-chave de liderança, desde as quais põem em prática seus planos, sua idéia de cultura, e a forma como lidar com as questões contemporâneas. Em alguns países, lobbies poderosos contribuem para a substituição de facto de repertórios litúrgicos fiéis às diretivas do Vaticano II por repertórios de baixo nível. Assim, ficamos com um repertório de música litúrgica nova de padrão muito baixo, tanto no texto como na música. Isto é compreensível se refletimos que nada de valor duradouro pode advir da falta de treino e de conhecimento, especialmente quando se negligenciam os sábios preceitos da tradição da Igreja.
“Por tais motivos, o canto gregoriano foi sempre considerado como o modelo supremo da música sacra, podendo com razão estabelecer-se a seguinte lei geral: uma composição religiosa será tanto mais sacra e litúrgica quanto mais se aproxima no andamento, inspiração e sabor da melodia gregoriana, e será tanto menos digna do templo quanto mais se afastar daquele modelo supremo” (S. Pio X, Motu Proprio Tra le Sollecitudini).
Hoje, esse “modelo supremo” é freqüentemente descartado, se não mesmo desprezado. Todo o Magistério da Igreja recorda-nos a importância de aderir a esse modelo, não como forma de limitar a criatividade, mas como fundamento sobre o qual pode florescer a inspiração. Se desejamos que as pessoas busquem a Jesus, precisamos preparar a casa com o melhor que a Igreja pode oferecer. Não convidaremos pessoas à nossa casa, a Igreja, para oferecer-lhes um subproduto de música e arte, se podem encontrar um estilo de música popular muito melhor fora da Igreja. A liturgia é um limen, um limiar que nos permite passar de nossa existência diária ao culto dos anjos: Et ídeo cum Angelis et Archángelis, cum Thronis et Dominatiónibus, cumque omni milítia cæléstis exércitus, hymnum glóriæ tuæ cánimus, sine fine dicéntes...
4. Esse desdém pelo canto gregoriano e pelos repertórios tradicionais é sinal de um problema bem maior: o desdém pela Tradição. A Sacrosanctum Concilium ensina que a herança musical e artística da Igreja deve ser respeitada e estimada, pois ela é a corporificação de séculos de culto e prece, a mais alta culminância da criatividade e da espiritualidade humana. Houve tempo em que a Igreja não corria atrás da última moda, mas era a fonte e o árbitro da cultura. A falta de compromisso com a tradição colocou a Igreja e sua liturgia em um caminho sinuoso e incerto. A separação tentada entre o ensinamento do Vaticano II e o prévio ensinamento da Igreja é uma rua sem saída, e o único caminho para a frente é a hermenêutica da continuidade endossada pelo Papa Bento XVI. Recuperar a unidade, a integridade e a harmonia do ensinamento Católico é a condição para restaurar tanto a liturgia quanto a sua música a uma condição de nobreza. Como Papa Francisco nos ensinou em sua primeira encíclica: “o conhecimento de nós mesmos só é possível quando participamos duma memória mais ampla” (Lumen Fidei 38).
5. Outra causa da decadência da música sacra é o clericalismo, o abuso da posição e do status clerical. Membros do clero muitas vezes pouco educados na grande tradição da música sacra continuam a tomar as decisões sobre pessoal e políticas que contrariam o autêntico espírito da liturgia e a renovação da música sacra tão reclamada por nosso tempo. Com muita freqüência, contradizem os ensinamentos do Vaticano II em nome de um suposto “espírito do Concílio”. Além disso, especialmente em países de antiga herança cristã, membros do clero têm acesso a posições que não estão disponíveis a leigos, quando há músicos leigos plenamente capazes de oferecer um serviço profissional igual ou superior à Igreja.
6. Observamos também o problema da remuneração inadequada (e, por vezes, injusta) de músicos leigos. A importância da música sacra na liturgia católica requer que, em toda parte, ao menos alguns membros da Igreja sejam bem formados, bem equipados, e dedicados ao serviço do Povo de Deus nessa capacidade. Não é verdade que devemos dar a Deus o nosso melhor? Ninguém se surpreende ou se perturba ao saber que médicos necessitam de um salário para sobreviver, e ninguém aceitaria tratamento médico de voluntários sem treino; os sacerdotes têm seus salários, porque não podem viver sem comer e, se não comerem, não serão capazes de estudar as ciências teológicas ou rezar a Missa com dignidade. Se pagamos floristas e cozinheiros que ajudam nas paróquias, por que parece tão estranho que aqueles que desempenham atividades musicais para a Igreja tenham direito a justa compensação?