Em
sua série de Catequeses sobre os salmos e cânticos da Liturgia das Horas, o Papa Bento XVI refletiu
sobre os textos das Vésperas da quinta-feira da IV semana do Saltério nos dias
11 de janeiro (Sl 143,1-8) e 25 de janeiro de 2006 (Sl 143,9-15).
Como
afirmamos anteriormente, não foram retomados os cânticos do Apocalipse, sobre
os quais João Paulo II já havia refletido.
162. Oração pela vitória e pela paz I: Sl
143(144),1-8
11 de janeiro de 2006
1. O nosso
itinerário pelo Saltério usado na Liturgia das Vésperas chega agora a um hino
real, o Salmo 143, do qual foi proclamada a primeira parte: de fato, a Liturgia
propõe este cântico subdividindo-o em dois momentos.
A primeira parte
(vv. 1-8) revela de modo claro a característica literária desta composição: o salmista
recorre a citações de outros textos sálmicos, articulando-os em um novo projeto
de canto e oração.
Precisamente
porque o Salmo pertence a uma época sucessiva é fácil pensar que o rei exaltado
já não tem os traços do soberano davídico, pois a realeza hebraica concluiu-se
com o exílio da Babilônia do século VI a. C., mas representa a figura luminosa
e gloriosa do Messias, cuja vitória não é um acontecimento bélico-político, mas
uma intervenção de libertação contra o mal. Portanto a palavra “messias” - que
em hebraico indica o “ungido”, o “consagrado”, como era o soberano - é
substituída pelo “Messias” por excelência que, na releitura cristã, tem o rosto
de Jesus Cristo, “filho de Davi, filho de Abraão” (Mt 1,1).
"Bendito seja o Senhor, meu rochedo" (Sl 143,1) (Transfiguração do Senhor - Igreja de São Roque, Veneza) |
2. O hino inicia
com uma bênção, ou seja, com uma exclamação de louvor dirigida ao Senhor,
celebrado com uma pequena ladainha de títulos salvíficos: ele é o rochedo seguro e estável, é amor, refúgio defensivo, libertador,
fortaleza, abrigo, escudo que repele
qualquer ataque do mal (vv. 1-2). Há também a imagem marcial do Deus que
adestra para a guerra o seu fiel, para que saiba enfrentar as hostilidades do
ambiente, os poderes obscuros do mundo.
Diante do Senhor
onipotente, o orante, mesmo na sua dignidade real, sente-se débil e frágil.
Então ele faz uma profissão de humildade, que é formulada com as palavras dos
Salmos 8 e 38. De fato, ele se sente “como um sopro”, semelhante a uma sombra
passageira, frágil e inconsistente, imerso no fluxo do tempo que passa, marcado
pelos limites que são característicos da criatura (v. 4).
3. Eis, então, a
pergunta: por que Deus cuida e pensa nesta criatura tão miserável e caduca? A
esta pergunta (v. 3) responde a grandiosa irrupção divina, a chamada “teofania”,
que é acompanhada por um cortejo de elementos cósmicos e acontecimentos
históricos, orientados para celebrar a transcendência do Rei supremo do ser, do
universo e da história.
Eis os montes
que fumegam em erupções vulcânicas (v. 5), raios que se assemelham a setas que
afugentam os inimigos (v. 6), eis o “abismo das águas” oceânicas, que são
símbolo do caos, do qual, contudo, o rei é salvo por obra da própria mão divina
(v. 7). Em segundo plano permanecem os ímpios que dizem “falsidade” e “juram
falso” (vv. 7-8), uma representação concreta, segundo o estilo semítico, da
idolatria, da perversão moral, do mal que verdadeiramente se opõe a Deus e ao
seu fiel.
4. Agora, em
nossa meditação, nos deteremos inicialmente na profissão de humildade do salmista,
e nos confiaremos às palavras de Orígenes, cujo comentário ao nosso texto
chegou até nós na versão latina de São Jerônimo. “O salmista fala da fragilidade
do corpo e da condição humana”, porque “no que diz respeito à condição humana,
o homem é uma nulidade. ‘Vaidade das vaidades, tudo é vaidade’, disse o Eclesiastes”. Mas volta então a pergunta
admirada e reconhecida: “‘Senhor, que é o homem, para cuidares dele?’... Que
grande felicidade é, para o homem, conhecer o seu Criador. Nisto, nos
diferenciamos das feras e dos outros animais, porque sabemos que temos o nosso
Criador, enquanto que eles não o sabem”. Vale a pena meditar um pouco sobre
estas palavras de Orígenes, que vê a diferença fundamental entre o homem e os
outros animais no fato de que o homem é capaz da verdade, capaz de um
conhecimento que se torna relação, amizade. É importante, em nosso tempo, que
não esqueçamos Deus, juntamente com todos os outros conhecimentos que
entretanto adquirimos, e são tantos! Eles tornam-se todos problemáticos, por
vezes perigosos, se falta o conhecimento fundamental que dá sentido e
orientação a tudo: o conhecimento de Deus Criador.
Voltemos a
Orígenes. Ele diz: “Não poderás salvar esta miséria que é o homem, se tu mesmo
não a assumes sobre ti. ‘Senhor, inclinai vossos céus e descei’. A tua ovelha
perdida não se poderá curar, se não for colocada sobre os teus ombros... Estas
palavras dirigem-se ao Filho: ‘Senhor, inclinai vossos céus e descei’...
desceste, abaixaste os céus e estendeste lá do alto a tua mão, e muitos acreditaram
em ti” (Orígenes-Jerônimo, 74 homilias
sobre o Livro dos Salmos, Milão, 1993, pp. 512-515). Para nós, cristãos,
Deus já não é, como na filosofia precedente ao Cristianismo, uma hipótese, mas
uma realidade, porque Deus “abaixou os céus e desceu”. O céu é Ele mesmo, e
desceu entre nós.
Justamente
Orígenes vê na parábola da ovelha perdida, que o pastor carrega sobre os
ombros, a parábola da Encarnação de Deus. Sim, na Encarnação Ele desceu e
assumiu sobre os ombros a nossa carne, a nós mesmos. Assim, o conhecimento de
Deus tornou-se realidade, amizade, comunhão. Demos graças ao Senhor porque “inclinou
os céus e desceu”, carregou sobre os seus ombros a nossa carne e nos guia pelas
estradas da nossa vida.
O Salmo, tendo
partido da descoberta de sermos débeis e estarmos afastados do esplendor
divino, chega no final a uma surpresa: ao nosso lado está o Deus-Emanuel, que
para o cristão tem o rosto amoroso de Jesus Cristo, Deus que se fez homem, que
se fez um de nós.
163. Oração pela vitória e pela paz II: Sl
143(144),9-15
25 de janeiro de 2006
1. Conclui-se
hoje a Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos, durante a qual refletimos
sobre a necessidade de invocar constantemente do Senhor o grande dom da plena
unidade entre todos os discípulos de Cristo. De fato, a oração contribui de
maneira substancial para tornar mais sincero e rico de frutos o comum
compromisso ecumênico das Igrejas e comunidades eclesiais.
Neste nosso
encontro desejamos retomar a meditação sobre o Salmo 143, que a Liturgia das
Vésperas nos propõe em dois tempos distintos (vv. 1-8 e vv. 9-15). A tonalidade
é sempre a hínica e no cenário, também neste segundo movimento do Salmo,
encontra-se a figura do “Ungido”, isto é, o “Consagrado” por excelência, Jesus,
que atrai todos a si para fazer de todos “uma só coisa” (cf. Jo 17,11.21). Não é por acaso que o cenário que dominará o
cântico se distingue pelo bem-estar, pela prosperidade e pela paz, os típicos
símbolos da era messiânica.
2. Por isso o
cântico é definido “novo”, palavra que na linguagem bíblica não evoca tanto a
novidade exterior das palavras, mas a plenitude última que sela a esperança (v.
9). Canta-se, pois, a meta da história, na qual finalmente será silenciada a voz
do mal, que é descrita pelo salmista na “falsidade” e no “juramento falso”,
expressões destinadas a indicar a idolatria (v. 11).
Mas este aspecto
negativo é substituído, com um espaço muito maior, pela dimensão positiva, a do
novo mundo jubiloso que está para se afirmar. Este é o verdadeiro shalom, ou seja, a “paz” messiânica, um
horizonte luminoso que se desenvolve em uma sucessão de aspectos de vida
social: eles podem tornar-se também para nós um voto pelo nascimento de uma
sociedade mais justa.
3. Eis, antes de
tudo, a família (v. 12), que se baseia na vitalidade da geração. Os filhos,
esperança do futuro, são comparados a árvores vigorosas; as filhas são
representadas como colunas sólidas que sustêm o edifício da casa, semelhantes
às de um templo. Da família passa-se para a vida econômica, para o campo com os
seus frutos conservados nos depósitos agrários, com os rebanhos espalhados que pastam,
com os animais de trabalho que avançam nos campos férteis (vv. 13-14a).
O olhar
dirige-se depois para a cidade, isto é, para toda a comunidade civil que
finalmente goza do dom precioso da paz e da tranquilidade pública. De fato,
cessam para sempre as “brechas” que os invasores abrem nos muros urbanos durante
os assaltos; terminam as “incursões”, que trazem devastações e deportações
(“desterro”) e, por fim, não se ouve mais o “gemido” dos desesperados, dos
feridos, das vítimas, dos órfãos, triste herança das guerras (v. 14b).
4. Este retrato
de um mundo diverso, mas possível, é confiado à obra do Messias e também à do
seu povo. Todos juntos, sob a guia do Messias Cristo, devemos trabalhar por
este projeto de harmonia e de paz, cessando a ação destruidora do ódio, da
violência, da guerra. É preciso, pois, fazer uma escolha, declarando-se da parte
do Deus do amor e da justiça.
Por isso, o Salmo
conclui-se com as palavras: “Feliz o povo que tem o Senhor Deus por seu Deus!”.
Deus é o bem dos bens, a condição de todos os outros bens. Só um povo que
conhece a Deus e defende os valores espirituais e morais pode realmente
encaminhar-se rumo a uma paz profunda e tornar-se também uma força da paz para
o mundo, para os outros povos. Por conseguinte, pode entoar com o salmista um
“canto novo”, cheio de confiança e de esperança. A referência espontânea é à
nova aliança, à própria novidade que é Cristo e o seu Evangelho.
É quanto nos
recorda Santo Agostinho. Lendo este Salmo, ele interpreta também a palavra: “Vou
cantar-vos nas dez cordas da harpa” (v. 9). A harpa de dez cordas é para ele a
lei compendiada nos Dez Mandamentos. Mas destas dez cordas, destes dez
mandamentos, devemos encontrar a chave correta. Estas dez cordas dos dez
mandamentos só tocam bem, diz Santo Agostinho, se se fizerem vibrar pela
caridade do coração. A caridade é a plenitude da lei. Quem vive os mandamentos
como dimensão da única caridade, canta realmente um “canto novo”. A caridade
que nos une aos sentimentos de Cristo é o verdadeiro “canto novo” do “homem
novo”, capaz de criar também um “mundo novo”. Este Salmo convida-nos a cantar
“com a harpa de dez cordas”, com um coração novo, a cantar com os sentimentos
de Cristo, a viver os Dez Mandamentos na dimensão do amor, a contribuir assim
para a paz e a harmonia do mundo (cf.
Exposições sobre os Salmos, 143, 16: Nova
Biblioteca Agostiniana, XXVIII, Roma, 1977).
"Nossos filhos cresçam sadios e fortes floresçam" (cf. Sl 143,12) (Jesus, nascendo em uma família humana, abençoa as famílias) |
Fonte: Santa Sé (11 de janeiro e 25 de janeiro de 2006).
Nenhum comentário:
Postar um comentário