quinta-feira, 3 de março de 2022

Catequeses sobre os Salmos (58): Vésperas da quinta-feira da IV semana

Em sua série de Catequeses sobre os salmos e cânticos da Liturgia das Horas, o Papa Bento XVI refletiu sobre os textos das Vésperas da quinta-feira da IV semana do Saltério nos dias 11 de janeiro (Sl 143,1-8) e 25 de janeiro de 2006 (Sl 143,9-15).

Como afirmamos anteriormente, não foram retomados os cânticos do Apocalipse, sobre os quais João Paulo II já havia refletido.

162. Oração pela vitória e pela paz I: Sl 143(144),1-8
11 de janeiro de 2006

1. O nosso itinerário pelo Saltério usado na Liturgia das Vésperas chega agora a um hino real, o Salmo 143, do qual foi proclamada a primeira parte: de fato, a Liturgia propõe este cântico subdividindo-o em dois momentos.
A primeira parte (vv. 1-8) revela de modo claro a característica literária desta composição: o salmista recorre a citações de outros textos sálmicos, articulando-os em um novo projeto de canto e oração.
Precisamente porque o Salmo pertence a uma época sucessiva é fácil pensar que o rei exaltado já não tem os traços do soberano davídico, pois a realeza hebraica concluiu-se com o exílio da Babilônia do século VI a. C., mas representa a figura luminosa e gloriosa do Messias, cuja vitória não é um acontecimento bélico-político, mas uma intervenção de libertação contra o mal. Portanto a palavra “messias” - que em hebraico indica o “ungido”, o “consagrado”, como era o soberano - é substituída pelo “Messias” por excelência que, na releitura cristã, tem o rosto de Jesus Cristo, “filho de Davi, filho de Abraão” (Mt 1,1).

"Bendito seja o Senhor, meu rochedo" (Sl 143,1)
(Transfiguração do Senhor - Igreja de São Roque, Veneza)

2. O hino inicia com uma bênção, ou seja, com uma exclamação de louvor dirigida ao Senhor, celebrado com uma pequena ladainha de títulos salvíficos: ele é o rochedo seguro e estável, é amor, refúgio defensivo, libertador, fortaleza, abrigo, escudo que repele qualquer ataque do mal (vv. 1-2). Há também a imagem marcial do Deus que adestra para a guerra o seu fiel, para que saiba enfrentar as hostilidades do ambiente, os poderes obscuros do mundo.
Diante do Senhor onipotente, o orante, mesmo na sua dignidade real, sente-se débil e frágil. Então ele faz uma profissão de humildade, que é formulada com as palavras dos Salmos 8 e 38. De fato, ele se sente “como um sopro”, semelhante a uma sombra passageira, frágil e inconsistente, imerso no fluxo do tempo que passa, marcado pelos limites que são característicos da criatura (v. 4).

3. Eis, então, a pergunta: por que Deus cuida e pensa nesta criatura tão miserável e caduca? A esta pergunta (v. 3) responde a grandiosa irrupção divina, a chamada “teofania”, que é acompanhada por um cortejo de elementos cósmicos e acontecimentos históricos, orientados para celebrar a transcendência do Rei supremo do ser, do universo e da história.
Eis os montes que fumegam em erupções vulcânicas (v. 5), raios que se assemelham a setas que afugentam os inimigos (v. 6), eis o “abismo das águas” oceânicas, que são símbolo do caos, do qual, contudo, o rei é salvo por obra da própria mão divina (v. 7). Em segundo plano permanecem os ímpios que dizem “falsidade” e “juram falso” (vv. 7-8), uma representação concreta, segundo o estilo semítico, da idolatria, da perversão moral, do mal que verdadeiramente se opõe a Deus e ao seu fiel.

4. Agora, em nossa meditação, nos deteremos inicialmente na profissão de humildade do salmista, e nos confiaremos às palavras de Orígenes, cujo comentário ao nosso texto chegou até nós na versão latina de São Jerônimo. “O salmista fala da fragilidade do corpo e da condição humana”, porque “no que diz respeito à condição humana, o homem é uma nulidade. ‘Vaidade das vaidades, tudo é vaidade’, disse o Eclesiastes”. Mas volta então a pergunta admirada e reconhecida: “‘Senhor, que é o homem, para cuidares dele?’... Que grande felicidade é, para o homem, conhecer o seu Criador. Nisto, nos diferenciamos das feras e dos outros animais, porque sabemos que temos o nosso Criador, enquanto que eles não o sabem”. Vale a pena meditar um pouco sobre estas palavras de Orígenes, que vê a diferença fundamental entre o homem e os outros animais no fato de que o homem é capaz da verdade, capaz de um conhecimento que se torna relação, amizade. É importante, em nosso tempo, que não esqueçamos Deus, juntamente com todos os outros conhecimentos que entretanto adquirimos, e são tantos! Eles tornam-se todos problemáticos, por vezes perigosos, se falta o conhecimento fundamental que dá sentido e orientação a tudo: o conhecimento de Deus Criador.
Voltemos a Orígenes. Ele diz: “Não poderás salvar esta miséria que é o homem, se tu mesmo não a assumes sobre ti. ‘Senhor, inclinai vossos céus e descei’. A tua ovelha perdida não se poderá curar, se não for colocada sobre os teus ombros... Estas palavras dirigem-se ao Filho: ‘Senhor, inclinai vossos céus e descei’... desceste, abaixaste os céus e estendeste lá do alto a tua mão, e muitos acreditaram em ti” (Orígenes-Jerônimo, 74 homilias sobre o Livro dos Salmos, Milão, 1993, pp. 512-515). Para nós, cristãos, Deus já não é, como na filosofia precedente ao Cristianismo, uma hipótese, mas uma realidade, porque Deus “abaixou os céus e desceu”. O céu é Ele mesmo, e desceu entre nós.
Justamente Orígenes vê na parábola da ovelha perdida, que o pastor carrega sobre os ombros, a parábola da Encarnação de Deus. Sim, na Encarnação Ele desceu e assumiu sobre os ombros a nossa carne, a nós mesmos. Assim, o conhecimento de Deus tornou-se realidade, amizade, comunhão. Demos graças ao Senhor porque “inclinou os céus e desceu”, carregou sobre os seus ombros a nossa carne e nos guia pelas estradas da nossa vida.
O Salmo, tendo partido da descoberta de sermos débeis e estarmos afastados do esplendor divino, chega no final a uma surpresa: ao nosso lado está o Deus-Emanuel, que para o cristão tem o rosto amoroso de Jesus Cristo, Deus que se fez homem, que se fez um de nós.

163. Oração pela vitória e pela paz II: Sl 143(144),9-15
25 de janeiro de 2006

1. Conclui-se hoje a Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos, durante a qual refletimos sobre a necessidade de invocar constantemente do Senhor o grande dom da plena unidade entre todos os discípulos de Cristo. De fato, a oração contribui de maneira substancial para tornar mais sincero e rico de frutos o comum compromisso ecumênico das Igrejas e comunidades eclesiais.
Neste nosso encontro desejamos retomar a meditação sobre o Salmo 143, que a Liturgia das Vésperas nos propõe em dois tempos distintos (vv. 1-8 e vv. 9-15). A tonalidade é sempre a hínica e no cenário, também neste segundo movimento do Salmo, encontra-se a figura do “Ungido”, isto é, o “Consagrado” por excelência, Jesus, que atrai todos a si para fazer de todos “uma só coisa” (cf. Jo 17,11.21). Não é por acaso que o cenário que dominará o cântico se distingue pelo bem-estar, pela prosperidade e pela paz, os típicos símbolos da era messiânica.

2. Por isso o cântico é definido “novo”, palavra que na linguagem bíblica não evoca tanto a novidade exterior das palavras, mas a plenitude última que sela a esperança (v. 9). Canta-se, pois, a meta da história, na qual finalmente será silenciada a voz do mal, que é descrita pelo salmista na “falsidade” e no “juramento falso”, expressões destinadas a indicar a idolatria (v. 11).
Mas este aspecto negativo é substituído, com um espaço muito maior, pela dimensão positiva, a do novo mundo jubiloso que está para se afirmar. Este é o verdadeiro shalom, ou seja, a “paz” messiânica, um horizonte luminoso que se desenvolve em uma sucessão de aspectos de vida social: eles podem tornar-se também para nós um voto pelo nascimento de uma sociedade mais justa.

3. Eis, antes de tudo, a família (v. 12), que se baseia na vitalidade da geração. Os filhos, esperança do futuro, são comparados a árvores vigorosas; as filhas são representadas como colunas sólidas que sustêm o edifício da casa, semelhantes às de um templo. Da família passa-se para a vida econômica, para o campo com os seus frutos conservados nos depósitos agrários, com os rebanhos espalhados que pastam, com os animais de trabalho que avançam nos campos férteis (vv. 13-14a).
O olhar dirige-se depois para a cidade, isto é, para toda a comunidade civil que finalmente goza do dom precioso da paz e da tranquilidade pública. De fato, cessam para sempre as “brechas” que os invasores abrem nos muros urbanos durante os assaltos; terminam as “incursões”, que trazem devastações e deportações (“desterro”) e, por fim, não se ouve mais o “gemido” dos desesperados, dos feridos, das vítimas, dos órfãos, triste herança das guerras (v. 14b).

4. Este retrato de um mundo diverso, mas possível, é confiado à obra do Messias e também à do seu povo. Todos juntos, sob a guia do Messias Cristo, devemos trabalhar por este projeto de harmonia e de paz, cessando a ação destruidora do ódio, da violência, da guerra. É preciso, pois, fazer uma escolha, declarando-se da parte do Deus do amor e da justiça.
Por isso, o Salmo conclui-se com as palavras: “Feliz o povo que tem o Senhor Deus por seu Deus!”. Deus é o bem dos bens, a condição de todos os outros bens. Só um povo que conhece a Deus e defende os valores espirituais e morais pode realmente encaminhar-se rumo a uma paz profunda e tornar-se também uma força da paz para o mundo, para os outros povos. Por conseguinte, pode entoar com o salmista um “canto novo”, cheio de confiança e de esperança. A referência espontânea é à nova aliança, à própria novidade que é Cristo e o seu Evangelho.
É quanto nos recorda Santo Agostinho. Lendo este Salmo, ele interpreta também a palavra: “Vou cantar-vos nas dez cordas da harpa” (v. 9). A harpa de dez cordas é para ele a lei compendiada nos Dez Mandamentos. Mas destas dez cordas, destes dez mandamentos, devemos encontrar a chave correta. Estas dez cordas dos dez mandamentos só tocam bem, diz Santo Agostinho, se se fizerem vibrar pela caridade do coração. A caridade é a plenitude da lei. Quem vive os mandamentos como dimensão da única caridade, canta realmente um “canto novo”. A caridade que nos une aos sentimentos de Cristo é o verdadeiro “canto novo” do “homem novo”, capaz de criar também um “mundo novo”. Este Salmo convida-nos a cantar “com a harpa de dez cordas”, com um coração novo, a cantar com os sentimentos de Cristo, a viver os Dez Mandamentos na dimensão do amor, a contribuir assim para a paz e a harmonia do mundo (cf. Exposições sobre os Salmos, 143, 16: Nova Biblioteca Agostiniana, XXVIII, Roma, 1977).

"Nossos filhos cresçam sadios e fortes floresçam" (cf. Sl 143,12)
(Jesus, nascendo em uma família humana, abençoa as famílias)

Ap 11,17-18; 12,10-12: cf. Catequeses nn. 108 e 130.

Fonte: Santa Sé (11 de janeiro e 25 de janeiro de 2006).

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