Em 2020 publicamos em nosso blog um texto sobre a história da Festa dos Arcanjos Miguel, Gabriel e Rafael, celebrada no Rito Romano no dia
29 de setembro.
Na ocasião destacamos como essa festa possui três hinos
próprios para a Liturgia das Horas, oração oficial da Igreja para a
santificação das horas do dia. São estes:
Ofício das Leituras: Festíva
vos, archángeli (Arcanjos, para vós);
Laudes: Tibi, Christe, splendor Patris (Ó Cristo, Luz de Deus Pai);
Vésperas: Angelum pacis Míchael (Lá do alto enviai-nos, ó Cristo).
A Liturgia das Horas, com efeito,
possui quase 300 hinos, composições poéticas elaboradas ao longo da história da
Igreja que introduzem no sentido da hora, do tempo ou da festa litúrgica [1].
Os três Arcanjos: Miguel, Rafael (com Tobias) e Gabriel (Francesco Botticini - séc. XV) |
Assim, como já fizemos aqui em nosso blog com os hinos de outras celebrações do Próprio dos Santos [2], nos próximos dias apresentaremos os três hinos da Festa dos Arcanjos no original em latim e em sua tradução oficial para o português do Brasil, além de alguns comentários sobre a sua teologia.
Começamos pelo hino do Ofício das Leituras, Festíva vos, archángeli (Arcanjos, para
vós um canto de vitória), de nova composição (isto é, elaborado no contexto da
reforma litúrgica do Concílio Vaticano II).
Ofício das Leituras: Festíva vos, archángeli
Festíva vos, archángeli,
haec nostra tollunt cántica,
quos in supérna cúria
insígnit ingens glória.
Tu nos, cohórtis caelicae
invícte princeps, Míchael,
dextra corúsca róbora
Deíque serva grátiae.
Qui núntius deléctus es
mysteriórum máximus,
nos lucis usque, Gábriel,
fac diligámus sémitas.
Nobis adésto, Ráphael,
ac pátriam peténtibus
morbos repélle córporum,
affer salútem méntium.
Vosque angelórum cándida
nos adiuvétis ágmina,
possímus ut consórtio
vestro beáti pérfrui.
Summo Parénti et Fílio
honor sit ac Paráclito,
quos vester uno praedicat
concéntus hymno pérpetim. Amen [3].
Arcanjos, para vós
um canto de vitória,
porque no céu reinais,
imensa é a vossa glória.
Miguel, invicto príncipe
da corte celestial,
firmai-nos, com mão fúlgida,
na graça divinal.
Do máximo mistério
arauto, ó Gabriel,
guiai-nos nos caminhos
da luz que vem do céu.
Conosco, ó Rafael,
à pátria caminhai.
Aos corpos dai saúde,
as mentes libertai.
Vós, anjos, ajudai-nos
nas sendas que trilhamos.
De vosso eterno gozo
consortes nós sejamos.
Ao Pai Supremo, ao Filho,
e ao Consolador
a honra eternamente
num hino de louvor [4].
Comentário:
O hino para o Ofício das Leituras do dia 29 de setembro, de
nova composição, possui seis estrofes de quatro versos cada:
1ª estrofe: introdução,
na forma de um “oferecimento” do louvor aos arcanjos;
2ª à 5ª estrofes: corpo
do hino, com súplicas a cada um dos três Arcanjos (estrofes 2-4) e uma súplica
mais geral, dirigida aos anjos como um todo (estrofe 5);
6ª estrofe:
conclusão, como de costume na Liturgia das Horas, na forma de uma doxologia
(breve fórmula de louvor) dirigida à Trindade.
Cristo entre os Arcanjos Miguel e Gabriel Mosaico do séc. VI, originalmente na igreja de San Michele in Africisco, Ravenna (Atualmente no Bode-Museum, em Berlim) |
a) 1ª estrofe: “Oferecimento”
Como afirmamos, a composição começa com um “oferecimento” do
próprio hino aos Arcanjos: “Festíva vos,
archángeli, haec nostra tollunt cántica” - “Estes nossos cânticos festivos
vos celebram, ó Arcanjos”. A tradução oficial brasileira usa “canto de
vitória”, rimando com “glória” do quarto verso.
Os dois versos seguintes, por sua vez, introduzem já aquilo
que é característico do “corpo” dos hinos: os motivos do louvor. Celebramos
festivamente os Arcanjos “quos in supérna
cúria insígnit ingens glória”, isto é, “os quais se distinguem por uma
glória insigne na cúria celeste”.
O termo “cúria”, usado aqui, originalmente significava um
grupo de famílias. Posteriormente passou a designar o edifício onde se reunia o
Senado romano. Atualmente, a “Cúria Romana” é o conjunto dos colaboradores do
Papa, o Bispo de Roma, enquanto a “Cúria diocesana” ajuda os Bispos no governo
de cada Diocese.
A “supérna cúria”
do nosso hino, traduzida em algumas línguas como “corte celeste”, seria,
portanto, o conjunto dos anjos como servidores de Deus.
b) 2ª estrofe: São
Miguel
Da 2ª à 4ª estrofe são dirigidas súplicas a cada um dos três
anjos nomeados nas Escrituras, celebrados nessa Festa do dia 29 de setembro:
Miguel, Gabriel e Rafael.
A 2ª estrofe é dedicada a Miguel que, como vimos em nossa postagem sobre a história da festa, sempre foi o mais venerado dos três no Rito
Romano.
Aqui Miguel é referido como “cohórtis caelicae invícte princeps”, “invicto príncipe da coorte
celeste”. A coorte (cohors) era uma
das divisões do exército romano. A função de Miguel como “protetor” do povo de
Deus é atestada em Dn 12,1 e Ap 12,7-9.
A súplica a esse Arcanjo, expressa nos últimos dois versos
da estrofe, é “dextra corúsca róbora,
Deíque serva grátiae”, isto é, “fortalece-nos com [tua] destra brilhante,
conserva-nos na graça de Deus”.
c) 3ª estrofe: São
Gabriel
A 3ª estrofe invoca o Arcanjo Gabriel, “núntius deléctus es mysteriórum máximus”, “escolhido como
mensageiro (ou arauto) do máximo mistério”. A referência aqui é, naturalmente,
à sua missão na Anunciação do Senhor (Lc
1,26-38).
A súplica a esse anjo segue, portanto, na mesma linha: que
ele nos ensine a “sempre escolher os caminhos da luz” (nos lucis usque, fac diligámus sémitas). A tradução brasileira
especifica: “a luz que vem do céu”, que forma uma rima imperfeita com
“Gabriel”.
d) 4ª estrofe: São
Rafael
O último dos Arcanjos, ao qual se dedica esta 4ª estrofe, é
Rafael. A ele são dirigidas duas súplicas:
- “Nobis adésto ac
pátriam peténtibus”: “Assiste-nos no caminho da pátria”, recordando aqui
sua assistência a Tobias. A “pátria” deve ser entendida como a pátria celeste:
a intercessão do anjo, portanto, é invocada ao longo do caminho de toda a vida;
- “Morbos repélle
córporum, affer salútem méntium”: “Afasta a doença dos corpos, traz saúde
às almas”. Além de peregrino com o jovem Tobias, Rafael é, como seu nome
indica, a “medicina de Deus”. A cura, porém, é invocada não apenas para o
corpo, mas também para a alma (mente). Vale lembrar que a palavra “salus” pode ser traduzida tanto como
“saúde” quanto como “salvação”.
e) 5ª estrofe: Súplica
A 5ª estrofe, como afirmamos anteriormente, conclui o “corpo
do hino” com uma súplica dirigida aos três Arcanjos mencionados anteriormente
e, em sentido mais amplo, a todos os anjos: “Vosque angelórum cándida nos adiuvétis ágmina” - “E vós, cândida
multidão dos anjos, ajudai-nos”.
O conteúdo da súplica “ajudai-nos” é: “para que, em vossa
companhia, possamos gozar plenamente a bem-aventurança” (possímus ut consórtio vestro beáti pérfrui).
f) 6ª estrofe:
Doxologia
O hino se conclui, por fim, com uma doxologia (breve fórmula
de louvor) dirigida à Santíssima Trindade: “Summo
Parénti et Fílio honor sit ac Paráclito” Seja [dada] a honra ao Pai Supremo
e ao Filho e ao Paráclito” (isto é, o Espírito Santo como Consolador ou
Defensor).
Este louvor da Trindade que cantamos, por sua vez, une-se ao
louvor eterno dos anjos: “a quem vós [os anjos] celebrais em harmonia com um
hino eterno” (quos vester uno praedicat
concéntus hymno pérpetim). Amém.
"Janela dos anjos" da Catedral de Worcester (Inglaterra): Os Arcanjos Miguel e Gabriel, tendo ao centro um grupo de anjos |
Confira também:
Homilia do Papa Bento XVI para a Festa dos Arcanjos (29 de setembro de 2007)
Ícone da Sabedoria do Senhor: Modelo de Kiev (Neste ícone são retratados os "sete Arcanjos" da tradição bizantina)
Notas:
[1] cf. Instrução Geral
sobre a Liturgia das Horas, nn. 173-178; in: ALDAZÁBAL, José. Instrução
Geral sobre a Liturgia das Horas - Texto e Comentário. São Paulo: Paulinas,
2010, pp. 92-94.
[2] Já apresentamos aqui em nosso blog os hinos da Liturgia das Horas para as seguintes celebrações:
- Memória do Martírio de São João Batista (29 de agosto): Vésperas.
[3] CATTOLICI ROMANI: Thesaurus Liturgiae: Inni della
«Liturgia Horarum» - 2. Proprium de Sanctis & Communia.
[4] OFÍCIO DIVINO. Liturgia
das Horas segundo o Rito Romano. Tradução para o Brasil da segunda edição
típica. São Paulo: Paulus, 1999, v. IV, pp. 1312-1313.
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