quinta-feira, 2 de setembro de 2021

Catequeses sobre os Salmos (32): I Vésperas do domingo da I semana

Em sua série de Catequeses sobre os salmos e cânticos da Liturgia das Horas, o Papa João Paulo II refletiu sobre os textos das I Vésperas do domingo da I semana do Saltério nos dias 05 de novembro (Sl 140), 12 de novembro (Sl 141) e 19 de novembro de 2003 (Fl 2,6-11).

90. Oração nas dificuldades da vida: Sl 140(141),1-9
05 de novembro de 2003

1. Nas Catequeses anteriores lançamos um olhar de conjunto à estrutura e ao valor da Liturgia das Vésperas, a grande oração eclesial da tarde. Hoje pretendemos analisar o seu interior. Será como realizar uma peregrinação naquela espécie de “terra santa” constituída por salmos e cânticos.
Iremos nos deter perante cada uma dessas orações poéticas, que Deus selou com a sua inspiração. São as invocações que o próprio Senhor deseja que lhe sejam dirigidas. Por isso, ele gosta de ouvi-las, sentindo vibrar nelas o coração dos seus amados filhos.
Iniciaremos com o Salmo 140, que abre as I Vésperas do domingo da primeira das quatro semanas em que, depois do Concílio, foi articulada a oração vespertina da Igreja.

2. “Minha oração suba a vós como incenso, e minhas mãos como a oferta da tarde”. O v. 2 deste Salmo pode ser considerado o sinal distintivo de todo o cântico e a justificação evidente do fato de ele ter sido colocado dentro da Liturgia das Vésperas. A ideia expressa reflete o espírito da teologia profética que une intimamente o culto à vida, a oração à existência.
A mesma oração feita com um coração puro e sincero torna-se um sacrifício oferecido a Deus. Todo o ser da pessoa que reza se torna um ato sacrifical, aludindo assim a quanto sugere São Paulo quando convida os cristãos a oferecer os seus corpos como sacrifício vivo, santo, agradável a Deus: é este o sacrifício espiritual que Ele aceita (cfRm 12,1).
As mãos elevadas na oração são uma ponte de comunicação com Deus, assim como a fumaça que sobe como perfume suave da vítima durante o rito sacrifical vespertino.

"Minha oração suba a vós como incenso" (Sl 140,2)
(Papa João Paulo II com o turíbulo do incenso em uma celebração)

3. O Salmo continua assumindo a tonalidade de uma súplica, que nos foi transmitida por um texto que no original hebraico apresenta não poucas dificuldades e obscuridades interpretativas, sobretudo nos vv. 4-7.
Contudo, o sentido geral pode ser identificado e transformado em meditação e oração. Antes de tudo, o orante suplica ao Senhor para que impeça que os seus lábios (v. 3) e os sentimentos do seu coração sejam atraídos e seduzidos pelo mal e o induzam a realizar “obras más” (v. 4). De fato, palavras e obras são a expressão da opção moral da pessoa. É fácil que o mal exerça tanta atração a ponto de estimular o fiel a saborear as “delícias” que os pecadores podem oferecer, sentando-se à sua mesa, ou seja, participando das suas ações pervertidas.
O Salmo adquire quase o sabor de um exame de consciência, ao qual segue o compromisso de escolher sempre os caminhos de Deus.

4. Neste ponto, porém, o orante tem um sobressalto que o impulsiona a uma declaração apaixonada de recusa de qualquer cumplicidade com o ímpio: ele não deseja em absoluto ser hóspede do ímpio, nem permitir que o óleo perfumado, reservado aos convidados de honra (cfSl 22,5), confirme a sua conivência com quem pratica o mal (v. 5). A fim de exprimir com maior veemência o seu afastamento radical do malvado, o salmista proclama em relação a ele uma condenação indignada, expressa com o recurso colorido a imagens de juízo veemente.
Trata-se de uma das típicas imprecações do Saltério (cfSl 57 e 108), que têm por finalidade afirmar de maneira plástica e até pitoresca a hostilidade ao mal, a opção pelo bem e a certeza de que Deus intervém na história com o seu juízo de condenação severa da injustiça (vv. 6-7).

5. O Salmo termina com uma última invocação confiante (vv. 8-9): trata-se de um cântico de fé, de gratidão e de alegria, na certeza de que o fiel não será envolvido no ódio que os pervertidos lhe reservam e não cairá na cilada que lhe preparam, depois de contatar a sua decidida opção pelo bem. Desta forma, o justo poderá superar incólume qualquer engano, como está escrito noutro Salmo: “A nossa vida escapou como um pássaro do laço do caçador; ao romper-se o laço nós pudemos escapar” (Sl 123,7).
Concluímos a nossa leitura do Salmo 140 voltando à imagem inicial, a da oração vespertina como sacrifício agradável a Deus. Um grande mestre espiritual que viveu entre os séculos IV e V, João Cassiano, que, provindo do Oriente, transcorreu na Gália meridional a última parte da sua vida, relia aquelas palavras em chave cristológica:  “Nelas, de fato, podemos compreender de modo mais espiritual uma alusão ao sacrifício da tarde, realizado pelo Senhor e Salvador durante a sua Última Ceia e entregue aos Apóstolos, quando Ele sancionava o início dos santos mistérios da Igreja, ou (podemos entrever uma menção) ao próprio sacrifício que Ele, no dia seguinte, ofereceu à tarde, em si mesmo, com a elevação das próprias mãos, sacrifício que se prolongará até ao fim dos séculos para a salvação do mundo inteiro” (As instituições cenobíticas, Abadia de Praglia, Pádua, 1989, p. 92).

91. Vós sois o meu refúgio, Senhor: Sl 141(142),2-8
12 de novembro de 2003

1. Na tarde do dia 03 de outubro de 1226, São Francisco de Assis estava prestes a falecer: a sua última oração foi precisamente a recitação do Salmo 141, que acabamos de ouvir. São Boaventura recorda que Francisco “irrompeu com a exclamação do Salmo: ‘Em voz alta ao Senhor eu imploro, em voz alta suplico ao Senhor!’ (v. 2), e recitou-o até o versículo final: ‘Muitos justos virão rodear-me pelo bem que fizestes por mim’ (v. 8)” (Leggenda Maggiore, XIV, 5, in: Fontes Franciscanas, Pádua-Assis, 1980, p. 958).
O Salmo é uma súplica intensa, marcada por uma série de verbos de clamor dirigidos ao Senhor: “imploro”, “suplico ao Senhor”, “derramo na sua presença o lamento”, “diante d’Ele coloco minha dor” (vv. 2-3). A parte central do Salmo está dominada pela confiança em Deus, que não é indiferente ao sofrimento do fiel (vv. 4-8). Com esta atitude São Francisco encaminhou-se rumo à morte.

2. Deus é interpelado com o “Vós”, como uma pessoa que dá segurança: “Sois vós meu abrigo” (v. 6). “Conheceis, ó Senhor, meus caminhos” (v. 4), isto é, o itinerário da minha vida, um percurso marcado pela opção pela justiça. Mas naquele percurso, os ímpios armaram uma cilada (ibid.): é a imagem típica que se deduz dos cenários de caça e que é frequente nas súplicas dos Salmos para indicar os perigos e as insídias às quais o justo é submetido.
Perante este pesadelo, o salmista lança quase um sinal de alerta para que Deus veja a sua situação e intervenha: “Se me volto à direita e procuro, não encontro quem cuide de mim” (v. 5). Na tradição oriental, à direita de uma pessoa colocava-se o defensor ou a testemunha favorável em sede processual, ou então, no caso de guerra, o guarda-costas. Por conseguinte, o fiel está só e abandonado, “mais ninguém o reconhece”. Por isso ele exprime uma constatação angustiante: “não tenho aonde fugir; não importa a ninguém minha vida” (ibid.).

3. Imediatamente a seguir um grito revela a esperança que habita no coração do orante.  Agora a única proteção e proximidade eficaz é a de Deus: “Sois vós meu abrigo, minha herança na terra dos vivos” (v. 6). A “herança” ou “porção”, na linguagem bíblica é o dom da terra prometida, sinal do amor divino em relação ao seu povo. Agora o Senhor permanece o último e o único fundamento sobre o qual basear-se, a única possibilidade de vida, a esperança suprema.
O salmista invoca-o com insistência, porque está “por demais humilhado” (v. 7). Suplica que intervenha para romper as cadeias da sua prisão de solidão e de hostilidade (v. 8) e arrancá-lo do abismo da provação.

4. Como em outros Salmos de súplica, a perspectiva final é a de uma ação de graças, que será oferecida a Deus depois de ser escutado: “Arrancai-me, Senhor, da prisão, e em louvor bendirei vosso nome!” (ibid.). Quando tiver sido salvo, o fiel irá agradecer ao Senhor no meio da assembleia litúrgica (ibid.). Os justos irão circundá-lo, que sentirão a salvação do irmão como um dom feito também a eles.
Esta atmosfera também deveria reinar nas celebrações cristãs. O sofrimento do indivíduo deve encontrar eco no coração de todos; do mesmo modo, a alegria de cada um deve ser vivida por toda a comunidade orante. De fato, “como é bom, como é agradável viverem os irmãos em unidade” (Sl 132,1) e o Senhor Jesus disse: “Pois onde estiverem reunidos em meu nome dois ou três, Eu estou no meio deles” (Mt 18,20).
5. A tradição cristã aplicou o Salmo 141 a Cristo perseguido e sofredor. Nesta perspectiva, a meta luminosa da súplica sálmica transfigura-se num sinal pascal, com base no êxito glorioso da vida de Cristo e do nosso destino de ressurreição com ele. Afirma isto Santo Hilário de Poitiers, famoso Doutor da Igreja do século IV, no seu Tratado sobre os Salmos.
Ele comenta a tradução latina do último versículo do Salmo, que fala de recompensa para o orante e de expectativa dos justos: “Me expectant iusti, donec retribuas mihi”. Santo Hilário explica: “O Apóstolo ensina-nos qual a recompensa que o Pai deu a Cristo: ‘Deus exaltou-o e deu-lhe o nome que está acima de qualquer nome; para que, ao nome de Jesus, todos os joelhos se dobrem nos céus, na terra e sob a terra; e todos os lábios proclamem que Jesus Cristo é o Senhor, para glória de Deus Pai’ (Fl 2,9-11). A recompensa é esta: ao corpo que assumiu, é oferecida a eternidade da glória do Pai.
O significado da expectativa dos justos nos é ensinado pelo próprio Apóstolo, quando diz: ‘Nós, porém, somos cidadãos do céu e de lá esperamos o Salvador, o Senhor Jesus Cristo. Ele transformará o nosso corpo mortal, tornando-o conforme ao Seu corpo glorioso’ (Fl 3,20-21). Com efeito, os justos esperam-no para que os recompense, isto é, para que os conforme com a glória do seu corpo, que é abençoado por toda a eternidade. Amém!” (PL 9, 833-837).

92. Cristo, o Servo de Deus: Fl 2,6-11
19 de novembro de 2003

1. A Liturgia das Vésperas inclui, além dos Salmos, também alguns cânticos bíblicos. O que acabamos de proclamar é certamente um dos mais significativos e de grande densidade teológica.
Trata-se de um hino inserido no segundo capítulo da Carta de São Paulo aos cristãos de Filipos, a cidade grega que foi a primeira etapa do anúncio missionário do Apóstolo na Europa. O cântico é considerado expressão da Liturgia cristã das origens e é uma alegria para a nossa geração poder associar-se, à distância de dois milênios, à oração da Igreja apostólica.
O cântico revela uma dúplice trajetória vertical, um movimento descendente e depois ascendente. Por um lado é, de fato, a descida humilhante do Filho de Deus quando, na Encarnação, se faz homem por amor dos homens. Ele entra na kenosis, ou seja, no “esvaziamento” da sua glória divina, levado até à morte na cruz, o suplício dos escravos que fez d’Ele o último dos homens, tornando-o verdadeiro irmão da humanidade que sofre, pecadora e rejeitada.

2. Por outro lado, eis a subida triunfal que se realiza na Páscoa, quando Cristo é restabelecido pelo Pai no esplendor da divindade e é celebrado Senhor por toda a criação e por todos os homens agora redimidos. Encontramo-nos diante de uma grandiosa releitura do mistério de Cristo, sobretudo o Mistério Pascal. São Paulo, além de proclamar a Ressurreição (cf1Cor 15,3-5), recorre também à definição da Páscoa de Cristo como “exaltação”, “elevação”, e “glorificação”.
Por conseguinte, do horizonte luminoso da transcendência divina, o Filho de Deus ultrapassou a distância infinita existente entre o Criador e a criatura. Ele não se apegou ciosamente ao seu “ser igual a Deus”, que lhe compete por natureza e não por usurpação: não quis conservar ciosamente esta prerrogativa como um tesouro, nem usá-la em seu benefício. Aliás, Cristo “esvaziou-se”, “humilhou-se” a si mesmo e mostrou-se pobre, débil, destinado à morte infame da crucificação. Precisamente desta humilhação extrema parte o grande movimento ascendente descrito na segunda parte do hino paulino (vv. 9-11).

3. Agora Deus “exalta” o seu Filho conferindo-lhe um “nome” glorioso, que, na linguagem bíblica, indica a própria pessoa e a sua dignidade. Pois bem, este “nome” é Kyrios, “Senhor”, o nome sagrado do Deus bíblico, agora aplicado a Cristo Ressuscitado. Ele coloca o universo, descrito segundo a tripartição de céu, terra e inferno, em atitude de adoração.
Desta forma, Cristo glorioso aparece no fim do hino, como o Pantocrator, ou seja, o Senhor onipotente que domina triunfal nas absides das basílicas paleo-cristãs e bizantinas. Ele tem ainda os sinais da Paixão, ou seja, da sua verdadeira humanidade, mas revela-se agora no esplendor da divindade. Próximo de nós no sofrimento e na morte, Cristo atrai-nos agora para si na glória, abençoando-nos e tornando-nos participantes da sua eternidade.

4. Concluímos a nossa reflexão sobre o hino paulino confiando-nos às palavras de Santo Ambrósio, que retoma com frequência a imagem de Cristo que “se despojou de si mesmo”, humilhando-se e quase que se anulando (exinanivit semetipsum) na Encarnação e na oferenda de si mesmo na cruz.
Em particular no Comentário ao Salmo CXVIII o Bispo de Milão se expressa da seguinte forma: “Cristo, pendente no madeiro da Cruz... foi trespassado pela lança e (do seu lado) saíram sangue e água mais doces do que qualquer unguento, vítima agradável a Deus, espalhando em todo o mundo o perfume da santificação... Então Jesus, transpassado, espalhou o perfume do perdão dos pecados e da redenção. Com efeito, sendo Ele o Verbo, ao tornar-se homem limitou-se bastante e, sendo rico, fez-se pobre para nos enriquecer com a sua miséria (cf2Cor 8,9); era poderoso, e mostrou-se como um miserável, tanto que Herodes o desprezava e escarnecia d’Ele; sabia abalar a terra, mas permanecia pregado naquele madeiro; encerrava o céu num aperto de trevas, punha o mundo na cruz, e contudo fora crucificado; reclinava a cabeça, e saía o Verbo; tinha sido aniquilado, mas enchia todas as coisas. Desceu Deus, subiu o homem; o Verbo fez-se homem para que o homem pudesse reivindicar para si o trono do Verbo à direita de Deus; estava cheio de chagas, mas emanava perfume, mostrava-se ignóbil, mas era reconhecido como Deus” (III, 8, Saemo IX, Milão-Roma, 1987, pp. 131.133).

Cristo Pantocrator ladeado pelos símbolos dos evangelistas
Note-se como o Cristo conserva as cinco chagas da Paixão
(Catedral de Westminster - Londres)

Fonte: Santa Sé (05 de novembro, 12 de novembro e 19 de novembro de 2003).

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