Dando
continuidade à nossa série com as Catequeses do Papa João Paulo II sobre os salmos e cânticos da Liturgia das Horas, propomos hoje as reflexões do Papa polonês sobre as Vésperas da quarta-feira da I semana do Saltério, nos dias 21 de abril
(Sl 26,1-6), 28 de abril (Sl 26,7-14) e 05 de maio de 2004 (Cl 1,12-20).
103. Confiança em Deus no
perigo I: Sl 26(27),1-6
21 de abril de 2004
1. Retomamos hoje o nosso
itinerário no âmbito das Vésperas com o Salmo 26, que a Liturgia
distribui em dois trechos diferentes. Seguiremos agora a primeira parte deste
díptico poético e espiritual (vv. 1-6) que tem como pano de fundo o templo de
Sião, sede do culto de Israel. Com efeito, o salmista fala explicitamente de “santuário
do Senhor”, do “seu templo” (v. 4), “seu teto, sua tenda, templo do Senhor”
(vv. 5-6). Aliás, no original hebraico estas palavras indicam mais precisamente
o “tabernáculo” e a “tenda”, ou seja, o próprio coração do templo, onde o Senhor
se revela com a sua presença e com a sua palavra. Recorda-se também a “rocha”
de Sião (v. 5), lugar de segurança e de refúgio, e é feita alusão à celebração
dos sacrifícios de ação de graças (v. 6).
Por conseguinte, se a
Liturgia é a atmosfera em que o Salmo está mergulhado, o fio condutor da oração
é a confiança em Deus, tanto no dia da alegria como no tempo do receio.
2. A primeira parte do Salmo,
que agora meditamos, está marcada por uma grande serenidade, fundada na
confiança em Deus no dia tenebroso do assalto dos malvados. As imagens usadas
para descrever estes adversários, que são o sinal do mal que corrompe a
história, são de dois tipos. Por um lado, parece que há uma imagem de caça
feroz: os malvados são como feras que avançam para se apoderar da sua vítima e
para devorar a sua carne, mas resvalam e caem (v. 2). Por outro lado, há o
símbolo militar de um assalto realizado por um exército inteiro: trata-se de
uma batalha que se alastra impetuosa, semeando terror e morte (v. 3).
A vida do crente muitas
vezes é submetida a tensões e contestações, por vezes também a uma recusa e até
à perseguição. O comportamento do homem justo incomoda, porque ressoa como uma
admoestação em relação aos prepotentes e perversos. Reconhecem isto sem meios
termos os ímpios descritos no Livro
da Sabedoria: o justo “tornou-se para nós uma
condenação dos nossos sentimentos”; o justo “tornou-se uma viva censura para os
nossos pensamentos; só o ato de o vermos nos incomoda, pois a sua vida não é
semelhante à dos outros e os seus caminhos são muito diferentes” (Sb 2,14-15).
3. O fiel tem consciência de
que a coerência cria isolamento e provoca inclusive desprezo e hostilidade numa
sociedade que muitas vezes escolhe como estandarte a vantagem pessoal, o
sucesso exterior, a riqueza, o prazer desenfreado. Contudo, ele não está só e o
seu coração conserva uma paz interior surpreendente, porque como diz a
maravilhosa “antífona” de abertura do Salmo: “O Senhor é minha luz e salvação” (v.
1). Repete continuamente: “de quem eu terei medo?... perante quem eu tremerei?...
não temerá meu coração... mesmo assim confiarei” (vv. 1-3).
Parece que quase ouvimos a
voz de São Paulo que proclama: “Se Deus está por nós, quem será contra
nós?” (Rm 8,31).
Mas a tranquilidade interior, a fortaleza de ânimo e a paz são um dom que se
obtém refugiando-se no templo, isto é, recorrendo à oração pessoal e
comunitária.
"O Senhor é minha luz e salvação" (Sl 26,1) (Vitral inspirado na obra "Cristo, Luz do mundo" de William Hunt) |
4. O orante, com efeito, entrega-se
nos braços de Deus e o seu sonho é expresso também por outro Salmo: “habitar na
casa do Senhor todos os dias da minha vida” (Sl 22,6). Lá ele poderá “saborear a suavidade do Senhor” (Sl 26,4), contemplar e admirar
o mistério divino, participar na Liturgia sacrifical e elevar os seus louvores
ao Deus libertador (v. 6). O Senhor cria à volta do seu fiel um horizonte de
paz, que deixa de fora o tumulto do mal. A comunhão com Deus é fonte de
serenidade, de alegria, de tranquilidade; é como entrar num oásis de luz e de
amor.
5. Ouçamos agora, como
conclusão da nossa reflexão, as palavras do monge Isaías, de origem síria, que
viveu no deserto egípcio e faleceu por volta de 491. No seu Asceticon ele aplica o nosso Salmo à oração na
tentação: “Se vemos os inimigos que nos circundam com a sua astúcia, isto é,
com a acídia, quer porque enfraquecem a nossa alma no prazer, quer porque não
contemos a nossa cólera contra o próximo quando ele age contra o seu dever, ou
se oprimem os nossos olhos para conduzi-los à concupiscência, ou se nos querem
induzir a saborear os prazeres da gula, se fazem com que, para nós, a palavra
do próximo seja como que um veneno, se nos fazem subestimar a palavra de
outrem, se nos levam a fazer diferenças entre os fiéis dizendo: ‘Este é
bondoso, aquele é maldoso’: portanto, se todas estas coisas nos circundam,
não desanimemos, mas ao contrário, como Davi, brademos com o coração firme,
dizendo: ‘O Senhor é a proteção da minha vida!’ (Sl 26,1)” (Recueil
ascétique, Bellefontaine,
1976, p. 211).
104. Confiança em Deus no
perigo II: Sl 26(27),7-14
28 de abril de 2004
1.
A Liturgia das Vésperas subdividiu
em duas partes o Salmo 26, seguindo a própria estrutura do texto que é
semelhante a um díptico. Proclamamos agora a segunda parte deste cântico de
confiança que se eleva ao Senhor no dia tenebroso do ataque do mal. São os
versículos 7-14 do Salmo: eles começam com um grito dirigido ao Senhor: “Ouvi a
voz do meu apelo, atendei por compaixão!” (v. 7), porque expressam uma busca
intensa do Senhor, com o doloroso receio de ser abandonado por Ele (vv. 8-9) e,
por fim, apresentam aos nossos olhos um horizonte dramático onde os próprios
afetos familiares vêm a faltar (v. 10) enquanto neles se movem “inimigos” (v.
11) e “falsas testemunhas” (v. 12).
Mas
também agora, como na primeira parte do Salmo, o elemento decisivo é a
confiança que o orante tem no Senhor, que salva na prova e sustenta durante a
tempestade. Belíssimo, a respeito, é o apelo que no final o salmista dirige a
si mesmo: “Espera no Senhor e tem coragem, espera no Senhor!” (v. 14; cf. Sl 41,6-12; 42,5).
Também
em outros Salmos se fazia sentir a certeza de que do Senhor se obtém fortaleza
e esperança: “O Senhor protege os seus fiéis, mas castiga com rigor os
orgulhosos. Tende coragem e fortalecei o vosso coração todos vós, que esperais
no Senhor” (Sl 30,24-25).
E o profeta Oseias exorta Israel da seguinte forma: “Guarda a misericórdia e a
justiça, e espera sempre no teu Deus” (Os
12,7).
2.
Contentamo-nos agora com realçar três elementos simbólicos de grande
intensidade espiritual. O primeiro deles é o negativo do pesadelo dos inimigos
(v. 12). Eles são caracterizados como uma fera que “deseja” a sua presa e
depois, de maneira mais direta, como “falsas testemunhas” que parecem soprar
pelo nariz a violência, precisamente como as feras diante das suas vítimas.
Por
conseguinte, no mundo existe um mal agressivo, que encontra em Satanás o guia e
o inspirador, como recorda São Pedro: “O vosso adversário, o diabo, rodeia como
um leão a rugir, procurando a quem devorar” (1Pd 5,8).
3.
A segunda imagem ilustra de modo claro a confiança serena e fiel, apesar do
abandono até por parte dos pais: “Se meu pai e minha mãe me abandonarem, o
Senhor me acolherá!” (v. 10).
Mesmo
na solidão e na perda dos afetos mais queridos, o orante nunca está totalmente
sozinho, porque Deus misericordioso se inclina sobre ele. O pensamento corre
para um célebre trecho do profeta Isaías, que confere a Deus sentimentos de
compaixão e de ternura mais do que maternas: “Acaso pode uma mulher esquecer-se
do seu bebê, não ter carinho pelo fruto das suas entranhas? Ainda que ela se
esquecesse dele, Eu nunca te esqueceria” (Is
49,15).
Recordemos
a todas as pessoas idosas, doentes, esquecidas por todos, às quais ninguém
jamais fará uma carícia, estas palavras do salmista e do profeta, para que
sintam a mão paterna e materna do Senhor acariciar silenciosamente e com amor
os seus rostos sofredores e talvez assinalados pelas lágrimas.
4.
Assim, chegamos ao terceiro e último símbolo, reiterado várias vezes pelo Salmo:
“os meus olhos vos procuram. Senhor, é vossa face que eu procuro; não me
escondais a vossa face!” (vv. 8-9). É o rosto de Deus a meta da busca
espiritual do orante. Por fim, emerge uma certeza indiscutível, a de poder
contemplar “a bondade do Senhor” (v. 13).
Na
linguagem dos Salmos, “procurar a face do Senhor” muitas vezes é sinônimo da
entrada no templo para celebrar e experimentar a comunhão com o Deus de Sião.
Mas a expressão inclui também a experiência mística da intimidade divina
mediante a oração. Por conseguinte, na Liturgia e na oração pessoal nos é concedida
a graça de intuir aquele rosto que nunca poderemos ver diretamente durante a
nossa existência terrena (cf. Ex 33,20). Mas Cristo
revelou-nos, de uma maneira acessível, o rosto divino e prometeu que no
encontro definitivo da eternidade, como nos recorda São João, “o veremos tal
como Ele é” (1Jo 3,2).
E São Paulo acrescenta: “veremos face a face” (1Cor 13,12).
5.
Ao comentar este Salmo, o grande escritor cristão do terceiro século, Orígenes,
assim anota: “Se um homem procurar o rosto do Senhor, verá a glória do Senhor
de maneira velada e, tendo-se tornado igual aos anjos, verá sempre o rosto do
Pai que está no céu” (PG 12,
1281). E Santo Agostinho, no seu Comentário
aos Salmos, assim continua a oração do salmista: “Não procurei em Ti prêmio
algum que não esteja em Ti, mas o teu rosto. ‘É o Teu rosto, Senhor, que
procuro’. Insistirei com perseverança nesta busca; de fato, não procurarei algo
de pouco valor, mas o Teu rosto, ó Senhor, para te amar gratuitamente, visto
que nada encontro de mais precioso... ‘Não te afastes encolerizado do Teu
servo’, para que ao procurar-te, não me depare com outras coisas. Que pena pode
ser mais grave do que esta para quem ama e procura a verdade do Teu
rosto?” (Exposições sobre os
Salmos, 26, 1, 8-9, Roma, 1967, pp. 355. 357).
105. Cristo, o Primogênito de
toda a criatura e o Primogênito dentre os mortos: Cl 1,12-20
05 de maio de 2004
1. Ouvimos o admirável hino
cristológico da Carta aos
Colossenses. A Liturgia das Vésperas o propõe ao longo das quatro semanas
nas quais ela se desenvolve e oferece-o aos fiéis como cântico, representando-o
na veste que talvez o texto tivesse nas suas origens. De fato, muitos
estudiosos consideram que o hino poderia ser a citação de um cântico das igrejas
da Ásia Menor, colocado por Paulo na Carta
dirigida à comunidade cristã de Colossos, uma cidade que na época era
florescente e muito povoada.
Mas o Apóstolo nunca foi a
este centro da Frígia, uma região da atual Turquia. A igreja local tinha sido
fundada por um discípulo, Epafras, originário daquelas terras. Este é mencionado
no final da Carta juntamente com o
evangelista Lucas, “o querido médico”, como lhe chamava São Paulo (Cl 4,14), e com outro personagem,
Marcos, “primo de Barnabé” (Cl 4,10),
talvez o homônimo companheiro de Barnabé e de Paulo (cf. At 12,25; 13,5.13), que depois se
tornou evangelista.
2. Visto que teremos a
oportunidade de voltar várias vezes a falar sobre este cântico, contentemo-nos
agora com oferecer dele um olhar de conjunto e de recordar um comentário
espiritual, elaborado por um famoso Padre da Igreja, São João Crisóstomo (séc.
IV), célebre orador e Bispo de Constantinopla.
No hino sobressai a
grandiosa figura de Cristo, Senhor da criação. Como a divina Sabedoria criadora
exaltada pelo Antigo Testamento (cf.,
por exemplo, Pr 8,22-31), “Antes de toda criatura Ele
existe, e é por Ele que subsiste o universo” (v. 17); aliás, “n’Ele é que tudo
foi criado (...) por Ele e para Ele foram feitos” (v.
16-17).
Por conseguinte,
desenrola-se no universo um desígnio transcendente que Deus realiza através da
obra do Filho. Proclama isto também o Prólogo do Evangelho
de João, quando afirma que “por Ele é que tudo começou a existir; e sem Ele
nada veio à existência” (Jo 1,3).
Também a matéria com a sua energia, a vida e a luz têm a marca do Verbo de
Deus, “seu Filho bem-amado” (v. 13). A revelação do Novo
Testamento lança uma nova luz sobre as palavras do sábio do Antigo Testamento,
o qual declarava que “na grandeza e na beleza das criaturas se contempla, por
analogia, o seu Criador” (Sb 13,5).
3. O cântico da Carta aos Colossenses apresenta outra função de Cristo:
Ele é também o Senhor da história da salvação, que se manifesta na Igreja (v. 18) e se cumpre no “sangue de sua
cruz” (v. 20), fonte de paz e de harmonia para toda a vicissitude humana.
Por conseguinte, não é
apenas o horizonte externo que está marcado pela presença eficaz de Cristo, mas
também a realidade mais específica da criatura humana, ou seja, a história. Ela
não está à mercê de forças cegas e irracionais, mas, mesmo no pecado e no
mal, está amparada e orientada por obra de Cristo para a plenitude. É assim que
por meio da Cruz de Cristo toda a realidade se “reconcilia” com o Pai (v. 20).
Desta forma, o hino
apresenta um maravilhoso afresco do universo e da história, convidando-nos à
confiança. Não somos um grão de pó inútil, disperso em um espaço e tempo sem
sentido, mas fazemos parte de um sábio projeto que surgiu do amor do Pai.
4. Como anunciamos, passamos
agora às palavras de São João Crisóstomo, para que seja ele a coroar esta
reflexão. No seu Comentário à
Carta aos Colossenses ele
detém-se amplamente sobre este cântico. No início, realça a gratuidade do dom
de Deus “que nos chama a partilhar, na sua luz, da herança a seus santos
reservada” (v. 12). “Por que lhe chama ‘herança’?”, interroga-se o Crisóstomo,
e responde: “Para mostrar que ninguém pode obter o Reino com as próprias obras.
Também aqui, como na maioria das vezes, a ‘herança’ tem o sentido de ‘fortuna’.
Ninguém mostra tal comportamento a ponto de merecer o Reino, mas tudo é dom do
Senhor. Por isso Ele diz: ‘Quando tiverdes cumprido todas as coisas,
dizei: Somos servos inúteis. Fizemos tudo quanto devíamos’” (PG 62, 312).
Esta gratuidade benevolente
e poderosa emerge de novo mais adiante, quando lemos que por meio de Cristo
todas as coisas foram criadas (v. 16).
“Depende d’Ele a substância de todas as coisas”, explica o Bispo. “Não só as
fez passar do não ser para o ser, mas é Ele quem as ampara, de forma que, se
fossem subtraídas à sua providência, pereceriam e se dissolveriam... Dependem d’Ele:
com efeito, o próprio fato de se inclinarem para Ele é suficiente para as
sustentar e fortalecer” (PG 62, 319).
E com maior razão é sinal de
amor gratuito tudo o que Cristo realiza para a Igreja, da qual é a Cabeça (v.
18). Neste ponto, explica o Crisóstomo, “depois de ter falado da dignidade de
Cristo, o Apóstolo fala também do seu amor pelos homens: ‘Ele é a Cabeça do seu
Corpo, que é a Igreja’, querendo mostrar a sua comunhão íntima conosco. De
fato, Aquele que está tão alto e é superior a todos, uniu-se àqueles que estão
em baixo” (PG 62,
320).
"Senhor, é vossa face que eu procuro; não me escondais a vossa face" (Sl 26,8) (Verônica com a face de Cristo - El Greco) |
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