quinta-feira, 30 de setembro de 2021

Catequeses sobre os Salmos (36): Vésperas da quarta-feira da I semana

Dando continuidade à nossa série com as Catequeses do Papa João Paulo II sobre os salmos e cânticos da Liturgia das Horas, propomos hoje as reflexões do Papa polonês sobre as Vésperas da quarta-feira da I semana do Saltério, nos dias 21 de abril (Sl 26,1-6), 28 de abril (Sl 26,7-14) e 05 de maio de 2004 (Cl 1,12-20).

103. Confiança em Deus no perigo I: Sl 26(27),1-6
21 de abril de 2004

1. Retomamos hoje o nosso itinerário no âmbito das Vésperas com o Salmo 26, que a Liturgia distribui em dois trechos diferentes. Seguiremos agora a primeira parte deste díptico poético e espiritual (vv. 1-6) que tem como pano de fundo o templo de Sião, sede do culto de Israel. Com efeito, o salmista fala explicitamente de “santuário do Senhor”, do “seu templo” (v. 4), “seu teto, sua tenda, templo do Senhor” (vv. 5-6). Aliás, no original hebraico estas palavras indicam mais precisamente o “tabernáculo” e a “tenda”, ou seja, o próprio coração do templo, onde o Senhor se revela com a sua presença e com a sua palavra. Recorda-se também a “rocha” de Sião (v. 5), lugar de segurança e de refúgio, e é feita alusão à celebração dos sacrifícios de ação de graças (v. 6).
Por conseguinte, se a Liturgia é a atmosfera em que o Salmo está mergulhado, o fio condutor da oração é a confiança em Deus, tanto no dia da alegria como no tempo do receio.

2. A primeira parte do Salmo, que agora meditamos, está marcada por uma grande serenidade, fundada na confiança em Deus no dia tenebroso do assalto dos malvados. As imagens usadas para descrever estes adversários, que são o sinal do mal que corrompe a história, são de dois tipos. Por um lado, parece que há uma imagem de caça feroz: os malvados são como feras que avançam para se apoderar da sua vítima e para devorar a sua carne, mas resvalam e caem (v. 2). Por outro lado, há o símbolo militar de um assalto realizado por um exército inteiro: trata-se de uma batalha que se alastra impetuosa, semeando terror e morte (v. 3).
A vida do crente muitas vezes é submetida a tensões e contestações, por vezes também a uma recusa e até à perseguição. O comportamento do homem justo incomoda, porque ressoa como uma admoestação em relação aos prepotentes e perversos. Reconhecem isto sem meios termos os ímpios descritos no Livro da Sabedoria: o justo “tornou-se para nós uma condenação dos nossos sentimentos”; o justo “tornou-se uma viva censura para os nossos pensamentos; só o ato de o vermos nos incomoda, pois a sua vida não é semelhante à dos outros e os seus caminhos são muito diferentes” (Sb 2,14-15).

3. O fiel tem consciência de que a coerência cria isolamento e provoca inclusive desprezo e hostilidade numa sociedade que muitas vezes escolhe como estandarte a vantagem pessoal, o sucesso exterior, a riqueza, o prazer desenfreado. Contudo, ele não está só e o seu coração conserva uma paz interior surpreendente, porque como diz a maravilhosa “antífona” de abertura do Salmo: “O Senhor é minha luz e salvação” (v. 1). Repete continuamente: “de quem eu terei medo?... perante quem eu tremerei?... não temerá meu coração... mesmo assim confiarei” (vv. 1-3).
Parece que quase ouvimos a voz de São Paulo que proclama: “Se Deus está por nós, quem será contra nós?” (Rm 8,31). Mas a tranquilidade interior, a fortaleza de ânimo e a paz são um dom que se obtém refugiando-se no templo, isto é, recorrendo à oração pessoal e comunitária.

"O Senhor é minha luz e salvação" (Sl 26,1)
(Vitral inspirado na obra "Cristo, Luz do mundo" de William Hunt)

4. O orante, com efeito, entrega-se nos braços de Deus e o seu sonho é expresso também por outro Salmo: “habitar na casa do Senhor todos os dias da minha vida” (Sl 22,6). Lá ele poderá “saborear a suavidade do Senhor” (Sl 26,4), contemplar e admirar o mistério divino, participar na Liturgia sacrifical e elevar os seus louvores ao Deus libertador (v. 6). O Senhor cria à volta do seu fiel um horizonte de paz, que deixa de fora o tumulto do mal. A comunhão com Deus é fonte de serenidade, de alegria, de tranquilidade; é como entrar num oásis de luz e de amor.

5. Ouçamos agora, como conclusão da nossa reflexão, as palavras do monge Isaías, de origem síria, que viveu no deserto egípcio e faleceu por volta de 491. No seu Asceticon ele aplica o nosso Salmo à oração na tentação: “Se vemos os inimigos que nos circundam com a sua astúcia, isto é, com a acídia, quer porque enfraquecem a nossa alma no prazer, quer porque não contemos a nossa cólera contra o próximo quando ele age contra o seu dever, ou se oprimem os nossos olhos para conduzi-los à concupiscência, ou se nos querem induzir a saborear os prazeres da gula, se fazem com que, para nós, a palavra do próximo seja como que um veneno, se nos fazem subestimar a palavra de outrem, se nos levam a fazer diferenças entre os fiéis dizendo: ‘Este é bondoso, aquele é maldoso’: portanto, se todas estas coisas nos circundam, não desanimemos, mas ao contrário, como Davi, brademos com o coração firme, dizendo:  ‘O Senhor é a proteção da minha vida!’ (Sl 26,1)” (Recueil ascétique, Bellefontaine, 1976, p. 211).

104. Confiança em Deus no perigo II: Sl 26(27),7-14
28 de abril de 2004

1. A Liturgia das Vésperas subdividiu em duas partes o Salmo 26, seguindo a própria estrutura do texto que é semelhante a um díptico. Proclamamos agora a segunda parte deste cântico de confiança que se eleva ao Senhor no dia tenebroso do ataque do mal. São os versículos 7-14 do Salmo: eles começam com um grito dirigido ao Senhor: “Ouvi a voz do meu apelo, atendei por compaixão!” (v. 7), porque expressam uma busca intensa do Senhor, com o doloroso receio de ser abandonado por Ele (vv. 8-9) e, por fim, apresentam aos nossos olhos um horizonte dramático onde os próprios afetos familiares vêm a faltar (v. 10) enquanto neles se movem “inimigos” (v. 11) e “falsas testemunhas” (v. 12).
Mas também agora, como na primeira parte do Salmo, o elemento decisivo é a confiança que o orante tem no Senhor, que salva na prova e sustenta durante a tempestade. Belíssimo, a respeito, é o apelo que no final o salmista dirige a si mesmo: “Espera no Senhor e tem coragem, espera no Senhor!” (v. 14; cf. Sl 41,6-12; 42,5).
Também em outros Salmos se fazia sentir a certeza de que do Senhor se obtém fortaleza e esperança: “O Senhor protege os seus fiéis, mas castiga com rigor os orgulhosos. Tende coragem e fortalecei o vosso coração todos vós, que esperais no Senhor” (Sl 30,24-25). E o profeta Oseias exorta Israel da seguinte forma: “Guarda a misericórdia e a justiça, e espera sempre no teu Deus” (Os 12,7).

2. Contentamo-nos agora com realçar três elementos simbólicos de grande intensidade espiritual. O primeiro deles é o negativo do pesadelo dos inimigos (v. 12). Eles são caracterizados como uma fera que “deseja” a sua presa e depois, de maneira mais direta, como “falsas testemunhas” que parecem soprar pelo nariz a violência, precisamente como as feras diante das suas vítimas.
Por conseguinte, no mundo existe um mal agressivo, que encontra em Satanás o guia e o inspirador, como recorda São Pedro: “O vosso adversário, o diabo, rodeia como um leão a rugir, procurando a quem devorar” (1Pd 5,8).

3. A segunda imagem ilustra de modo claro a confiança serena e fiel, apesar do abandono até por parte dos pais: “Se meu pai e minha mãe me abandonarem, o Senhor me acolherá!” (v. 10).
Mesmo na solidão e na perda dos afetos mais queridos, o orante nunca está totalmente sozinho, porque Deus misericordioso se inclina sobre ele. O pensamento corre para um célebre trecho do profeta Isaías, que confere a Deus sentimentos de compaixão e de ternura mais do que maternas: “Acaso pode uma mulher esquecer-se do seu bebê, não ter carinho pelo fruto das suas entranhas? Ainda que ela se esquecesse dele, Eu nunca te esqueceria” (Is 49,15).
Recordemos a todas as pessoas idosas, doentes, esquecidas por todos, às quais ninguém jamais fará uma carícia, estas palavras do salmista e do profeta, para que sintam a mão paterna e materna do Senhor acariciar silenciosamente e com amor os seus rostos sofredores e talvez assinalados pelas lágrimas.

4. Assim, chegamos ao terceiro e último símbolo, reiterado várias vezes pelo Salmo: “os meus olhos vos procuram. Senhor, é vossa face que eu procuro; não me escondais a vossa face!” (vv. 8-9). É o rosto de Deus a meta da busca espiritual do orante. Por fim, emerge uma certeza indiscutível, a de poder contemplar “a bondade do Senhor” (v. 13).
Na linguagem dos Salmos, “procurar a face do Senhor” muitas vezes é sinônimo da entrada no templo para celebrar e experimentar a comunhão com o Deus de Sião. Mas a expressão inclui também a experiência mística da intimidade divina mediante a oração. Por conseguinte, na Liturgia e na oração pessoal nos é concedida a graça de intuir aquele rosto que nunca poderemos ver diretamente durante a nossa existência terrena (cf. Ex 33,20). Mas Cristo revelou-nos, de uma maneira acessível, o rosto divino e prometeu que no encontro definitivo da eternidade, como nos recorda São João, “o veremos tal como Ele é” (1Jo 3,2). E São Paulo acrescenta: “veremos face a face” (1Cor 13,12).

5. Ao comentar este Salmo, o grande escritor cristão do terceiro século, Orígenes, assim anota: “Se um homem procurar o rosto do Senhor, verá a glória do Senhor de maneira velada e, tendo-se tornado igual aos anjos, verá sempre o rosto do Pai que está no céu” (PG 12, 1281). E Santo Agostinho, no seu Comentário aos Salmos, assim continua a oração do salmista: “Não procurei em Ti prêmio algum que não esteja em Ti, mas o teu rosto. ‘É o Teu rosto, Senhor, que procuro’. Insistirei com perseverança nesta busca; de fato, não procurarei algo de pouco valor, mas o Teu rosto, ó Senhor, para te amar gratuitamente, visto que nada encontro de mais precioso... ‘Não te afastes encolerizado do Teu servo’, para que ao procurar-te, não me depare com outras coisas. Que pena pode ser mais grave do que esta para quem ama e procura a verdade do Teu rosto?” (Exposições sobre os Salmos, 26, 1, 8-9, Roma, 1967, pp. 355. 357).

105. Cristo, o Primogênito de toda a criatura e o Primogênito dentre os mortos: Cl 1,12-20
05 de maio de 2004

1. Ouvimos o admirável hino cristológico da Carta aos Colossenses. A Liturgia das Vésperas o propõe ao longo das quatro semanas nas quais ela se desenvolve e oferece-o aos fiéis como cântico, representando-o na veste que talvez o texto tivesse nas suas origens. De fato, muitos estudiosos consideram que o hino poderia ser a citação de um cântico das igrejas da Ásia Menor, colocado por Paulo na Carta dirigida à comunidade cristã de Colossos, uma cidade que na época era florescente e muito povoada.
Mas o Apóstolo nunca foi a este centro da Frígia, uma região da atual Turquia. A igreja local tinha sido fundada por um discípulo, Epafras, originário daquelas terras. Este é mencionado no final da Carta juntamente com o evangelista Lucas, “o querido médico”, como lhe chamava São Paulo (Cl 4,14), e com outro personagem, Marcos, “primo de Barnabé” (Cl 4,10), talvez o homônimo companheiro de Barnabé e de Paulo (cf. At 12,25; 13,5.13), que depois se tornou evangelista.

2. Visto que teremos a oportunidade de voltar várias vezes a falar sobre este cântico, contentemo-nos agora com oferecer dele um olhar de conjunto e de recordar um comentário espiritual, elaborado por um famoso Padre da Igreja, São João Crisóstomo (séc. IV), célebre orador e Bispo de Constantinopla.
No hino sobressai a grandiosa figura de Cristo, Senhor da criação. Como a divina Sabedoria criadora exaltada pelo Antigo Testamento (cf., por exemplo, Pr 8,22-31), “Antes de toda criatura Ele existe, e é por Ele que subsiste o universo” (v. 17); aliás, “n’Ele é que tudo foi criado (...) por Ele e para Ele foram feitos” (v. 16-17).
Por conseguinte, desenrola-se no universo um desígnio transcendente que Deus realiza através da obra do Filho. Proclama isto também o Prólogo do Evangelho de João, quando afirma que “por Ele é que tudo começou a existir; e sem Ele nada veio à existência” (Jo 1,3). Também a matéria com a sua energia, a vida e a luz têm a marca do Verbo de Deus, “seu Filho bem-amado” (v. 13). A revelação do Novo Testamento lança uma nova luz sobre as palavras do sábio do Antigo Testamento, o qual declarava que “na grandeza e na beleza das criaturas se contempla, por analogia, o seu Criador” (Sb 13,5).

3. O cântico da Carta aos Colossenses apresenta outra função de Cristo: Ele é também o Senhor da história da salvação, que se manifesta na Igreja (v. 18) e se cumpre no “sangue de sua cruz” (v. 20), fonte de paz e de harmonia para toda a vicissitude humana.
Por conseguinte, não é apenas o horizonte externo que está marcado pela presença eficaz de Cristo, mas também a realidade mais específica da criatura humana, ou seja, a história. Ela não está à mercê de forças cegas e irracionais, mas, mesmo no pecado e no mal, está amparada e orientada por obra de Cristo para a plenitude. É assim que por meio da Cruz de Cristo toda a realidade se “reconcilia” com o Pai (v. 20).
Desta forma, o hino apresenta um maravilhoso afresco do universo e da história, convidando-nos à confiança. Não somos um grão de pó inútil, disperso em um espaço e tempo sem sentido, mas fazemos parte de um sábio projeto que surgiu do amor do Pai.

4. Como anunciamos, passamos agora às palavras de São João Crisóstomo, para que seja ele a coroar esta reflexão. No seu Comentário à Carta aos Colossenses ele detém-se amplamente sobre este cântico. No início, realça a gratuidade do dom de Deus “que nos chama a partilhar, na sua luz, da herança a seus santos reservada” (v. 12). “Por que lhe chama ‘herança’?”, interroga-se o Crisóstomo, e responde: “Para mostrar que ninguém pode obter o Reino com as próprias obras. Também aqui, como na maioria das vezes, a ‘herança’ tem o sentido de ‘fortuna’. Ninguém mostra tal comportamento a ponto de merecer o Reino, mas tudo é dom do Senhor. Por isso Ele diz: ‘Quando tiverdes cumprido todas as coisas, dizei:  Somos servos inúteis. Fizemos tudo quanto devíamos’” (PG 62, 312).
Esta gratuidade benevolente e poderosa emerge de novo mais adiante, quando lemos que por meio de Cristo todas as coisas foram criadas (v. 16). “Depende d’Ele a substância de todas as coisas”, explica o Bispo. “Não só as fez passar do não ser para o ser, mas é Ele quem as ampara, de forma que, se fossem subtraídas à sua providência, pereceriam e se dissolveriam... Dependem d’Ele: com efeito, o próprio fato de se inclinarem para Ele é suficiente para as sustentar e fortalecer” (PG 62, 319).
E com maior razão é sinal de amor gratuito tudo o que Cristo realiza para a Igreja, da qual é a Cabeça (v. 18). Neste ponto, explica o Crisóstomo, “depois de ter falado da dignidade de Cristo, o Apóstolo fala também do seu amor pelos homens: ‘Ele é a Cabeça do seu Corpo, que é a Igreja’, querendo mostrar a sua comunhão íntima conosco. De fato, Aquele que está tão alto e é superior a todos, uniu-se àqueles que estão em baixo” (PG 62, 320).

"Senhor, é vossa face que eu procuro; não me escondais a vossa face" (Sl 26,8)
(Verônica com a face de Cristo - El Greco)

Fonte: Santa Sé (21 de abril, 28 de abril e 05 de maio de 2004).

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