quinta-feira, 2 de setembro de 2021

Congresso Eucarístico: Em ti está a fonte da vida

Após traçarmos um breve histórico dos Congressos Eucarísticos Internacionais em nossa postagem anterior, passamos a apresentar aqui o texto base do 52º Congresso Eucarístico Internacional que acontece em Budapeste (Hungria) entre os dias 05 e 12 de setembro de 2021.

Inicialmente este Congresso teria lugar entre os 13 e 20 de setembro de 2020, sendo adiado devido à pandemia de Covid-19.

O texto-base, divulgado no site do Pontifício Comitê para os Congressos Eucarísticos Internacionais, apresenta reflexões teológicas e pastorais à luz do tema do Congresso: “‘Todas as minhas fontes estão em ti’ (Sl 86[87],7): A Eucaristia: fonte da vida e da missão cristã”.

Logotipo do 52º Congresso Eucarístico Internacional 2020-2021

Após um breve 1º capítulo dedicado a apresentar o Congresso e a realidade da Hungria, o 2º capítulo, que apresentamos a seguir, reflete sobre os fundamentos bíblicos da temática da fonte: “Em ti está a fonte da vida” (cf. Sl 35[36],10).

“Em ti está a fonte da vida”

Deus, fonte da vida

É convicção fundamental da Bíblia que a fonte de toda a vida é Deus, porque d’Ele vem tudo aquilo de que o homem tem necessidade tanto para a sua vida natural como para a vida sobrenatural [1]. Até os alimentos, essenciais para a vida terrena, são dom seu. Já no relato simbólico da criação (Gn 2,4b-25) se sublinha o fato de que Deus não apenas criou o homem, mas o colocou no jardim do paraíso, cheio de toda a espécie de árvores de fruto e irrigado por quatro rios. O homem deve a Deus, portanto, não só a sua própria vida, mas também todos os bens necessários para a sua manutenção.
O amor e o cuidado de Deus estão, também, no centro do relato da travessia do deserto por Israel. É o próprio Senhor que assegura, por intermédio de Moisés, o alimento necessário sob a forma de maná, de codornizes (Ex 16,1-15) e de água saída do rochedo (Ex 17,1-17; Nm 20,1-13). Doravante, a tradição bíblica mais tardia fala desta realidade como de dons recebidos diretamente de Deus. Esta visão manifesta-se antes de mais nos salmos: “Fendeu as rochas no deserto e dessedentou-os com águas abundantes. Fez brotar rios das pedras, fez correr água em torrentes... Para alimento fez chover o maná, deu-lhes o pão do céu. O homem comeu o pão dos fortes. Mandou-lhes comida com abundância” (Sl 77[78],15-16.24-25). «A seu pedido mandou-lhes codornizes, e saciou-os com o pão do céu. Fendeu o rochedo e brotou água, como um rio a correr pelo deserto» (Sl 104[105],40-41).
No que se refere à tradição da água, embora esta brote da rocha, a sua fonte original é o próprio Deus. Portanto, a água não se apresenta apenas como bebida, mas também como símbolo dos bens espirituais provenientes de Deus. Por isso, em algumas passagens do Antigo Testamento prevalece o sentido figurado. «Em Ti está a fonte da vida e é na tua luz que vemos a luz», confessa o salmista (Sl 35 [36], 10). O profeta Jeremias ao contrário, censura a infidelidade de Israel: «O meu povo cometeu dois crimes: abandonou-me a Mim, fonte de água viva, e escavou cisternas para si, cisternas rotas, que não podem reter as águas» (Jr 2,13). Particularmente digna de atenção é a promessa que se lê em um texto hínico do profeta Isaías: «Este é o Deus da minha salvação; estou confiante e nada temo, porque a minha força e o meu canto de vitória é o Senhor; Ele foi a minha salvação. Tirareis água com alegria das fontes da salvação» (Is 12,2-3) [2].
Todos estes textos escriturísticos afirmam, portanto, que Deus é a fonte de onde vêm todos os dons dos quais os homens têm necessidade na perspectiva da salvação.

Por intermédio de Moisés, Deus faz brotar água do rochedo
(Pintura atribuída a Jacob de Backer)

“Quem tem sede, venha a mim e beba”

No Novo Testamento, a água como um símbolo dos bens espirituais aparece principalmente no Evangelho de João. Jesus no Templo de Jerusalém, no último dia da festa dos tabernáculos revela aos ouvintes: “Se alguém tem sede, venha a mim; e beba quem crê em mim. Como diz a Escritura: Do seu seio jorrarão rios de água viva” (Jo 7,37-38). Na Festa dos Tabernáculos, que durava sete dias, os piedosos israelitas recordavam o caminho no deserto, e na celebração prestavam atenção particular à água como dom recebido de Deus, fonte da vida. Durante os sete dias da festa, de fato, de manhã cedo, a multidão seguia os sacerdotes e os levitas que iam para a piscina de Siloé, para tirar água em ânforas de ouro, enquanto recitavam “Tirareis água com alegria das fontes da salvação”. E quando voltavam ao templo, a água era derramada sobre o altar. É à luz desta solenidade que Jesus se define como a fonte à qual se refere o dito profético [3].
Não se esqueça, no entanto, que o evangelista refere as palavras de Jesus ao Espírito Santo recebido por quantos creem em Cristo através da sua glorificação na cruz, em sua Páscoa de Morte e Ressurreição. Na expectativa do Pentecostes, Cristo transmite já o seu Espírito na cruz, quando “entregou o espírito” (Jo 19,30) [4]. E do lado de Jesus trespassado pela lança de um soldado, jorrou sangue e água (Jo 19,34) que na tradição eclesial se referem aos sacramentos do Batismo (a água) e da Eucaristia (o sangue).
Como se diz no Prefácio da Solenidade do Sagrado Coração de Jesus: “Elevado sobre a cruz, com admirável amor deu a sua vida por nós e do seu lado trespassado fez brotar sangue e água, donde nasceram os sacramentos da Igreja, para que todos os homens, atraídos ao Coração aberto do Salvador, pudessem beber com alergia nas fontes da salvação” [5].
A interpretação eucarística do sangue de Cristo também é sustentada pela parte final do discurso sobre o “pão da vida”, relatado pelo capítulo sexto do Evangelho de João, no qual Jesus fala do próprio corpo como alimento e do próprio sangue como bebida (Jo 6,53-58). Sangue e água aparecem também na Primeira Carta de João, juntamente com o Espírito Santo: “Pois são três que dão testemunho: o Espírito, a água e o sangue, e os três coincidem no mesmo testemunho” (1Jo 5,7-8). Batismo e Eucaristia tornam-se fonte da salvação através do Espírito Santo.
Mesmo São Paulo, na Primeira Carta aos Coríntios, referindo-se ao êxodo dos pais no deserto recorda: “Todos comeram do mesmo alimento espiritual e todos beberam da mesma bebida espiritual, pois bebiam de um rochedo espiritual que os seguia, e esse rochedo era Cristo” (1Cor 10,3-4).

Do lado aberto de Cristo brotam sangue e água
(Mosaico do Santuário Nacional da Imaculada Conceição - Washington, EUA)

“Todas as minhas fontes estão em ti”

A Eucaristia é fonte de vida não só para cada cristão, mas também para toda a Igreja, comunidade dos crentes. Na verdade, para que Cristo celebrado na Eucaristia se torne fonte perene, é indispensável a obra mediadora da Igreja.
Para compreendê-lo, voltamos mais uma vez ao Antigo Testamento, e precisamente ao texto do qual foi extraído o lema deste Congresso Eucarístico Internacional. Trata-se do Salmo 86 (87), cujo texto citamos na íntegra [*]:

O Senhor ama a cidade
que fundou no Monte santo;
ama as portas de Sião
mais que as casas de Jacó.

Dizem coisas gloriosas
da Cidade do Senhor:
“Lembro o Egito e Babilônia
entre os meus veneradores.

Na Filisteia ou em Tiro
ou no país da Etiópia,
este ou aquele ali nasceu”.

De Sião, porém, se diz:
“Nasceu nela todo homem;
Deus é sua segurança”.

Deus anota no seu livro,
onde inscreve os povos todos:
“Foi ali que estes nasceram”.

E por isso todos juntos
a cantar se alegrarão;
e, dançando, exclamarão:
“Estão em ti as nossas fontes!”

"Estão em ti as nossas fontes"
(Pia batismal do Santuário Nacional de Aparecida)

O Salmo pertence aos chamados “cânticos de Sião”, cujo centro é a eleição e localização privilegiada de Jerusalém [6]. O Senhor, como diz o início do Salmo, prefere “as portas de Sião”, isto é, a cidade santa, onde existe um templo e a morada da dinastia davídica, mais do que todos os outros locais em Israel [7]. E o próprio YHWH dá a cidadania de Jerusalém às nações pagãs que o “conhecem”.
A promessa contida no Salmo é digna de atenção por dois motivos. Por um lado, a lista começa com o Egito e Babilônia, dois inimigos mortais que, tendo aceitado com fé o Deus de Israel, se tornaram de pleno direito cidadãos da cidade santa. O elenco prossegue depois com os pontos cardeais: Egito/Ocidente - Babilônia/Oriente - Filisteia e Tiro/Norte - Etiópia/Sul. Assim, as cinco nações elencadas representam o mundo inteiro que converge para Jerusalém, a cidade santa, onde, graças ao conhecimento de Deus, as nações antes antagônicas se reúnem em unidade e paz. No final do Salmo são todas estas nações que reunidas no contexto de uma celebração litúrgica anunciam: “Todas as minhas fontes estão em ti”.
A ideia de que nos tempos escatológicos Jerusalém e o seu templo se tornarão fonte de água viva está presente também nos escritos proféticos. “Naquele dia, haverá uma fonte aberta para a casa de Davi e para os habitantes de Jerusalém, para a purificação do pecado e da impureza”, lemos no Livro de Zacarias (Zc 13,1). No Livro de Ezequiel lê-se a profecia da fonte que corre do lado oriental do templo e se torna um rio grande e navegável (Ez 47,1-12). Estes textos proféticos, como o Salmo 86(87), anunciam o regresso da condição paradisíaca caracterizada pela abundância, pela fertilidade e pela paz: “De Sião se desenvolve uma nova criação, fértil e verdejante, jubilosa e abençoada” [8].
A tradição cristã lê o Salmo 86(87) em referência à Igreja, na convicção de que a verdadeira Sião, a “Jerusalém celeste”, se identifica com a Igreja: “Sião era uma cidade terrena que reproduzia na sombra a imagem daquela Sião de que se trata, ou seja daquela Jerusalém celeste da qual o Apóstolo fala ‘que é a mãe de todos nós’ (Gl 4,26; cf. Hb 12,22-24)” [9]. A Igreja é a comunidade dos que foram salvos, e que, provenientes de “todas as tribos, línguas, povos e nações” (Ap 5,9), adoram a Deus “em espírito e verdade” (Jo 4,24) e recuperam a unidade construindo um só corpo.
Como recorda o Apóstolo Paulo: “O cálice da bênção que abençoamos, não é comunhão com o sangue de Cristo? E o pão que partimos, não é comunhão com o corpo de Cristo? Uma vez que há um só pão, nós, embora muitos, somos um só corpo, porque todos participamos desse único pão” (1Cor 10,16-17). A participação no Corpo e no Sangue de Cristo na Celebração Eucarística cria uma comunhão real com Cristo e constrói o seu corpo que é a Igreja. Todos aqueles que participam no sacramento do Corpo e do Sangue de Cristo, tornam-se um só corpo, uma única comunidade. A fonte de que os fiéis bebem é garantia verdadeira de unidade entre eles.

"Sicut cervus ad fontes" (Sl 41[42],2)
(A fonte septiforme remete aos sete sacramentos da Igreja)

Confira também:

Notas:
[1] Os fiéis da Igreja bizantina evocam todas as manhãs na Liturgia das Horas: “Em Ti está a fonte da vida e na tua luz veremos a luz”.
[2] Vai também mencionado o convite que se lê no Dêutero-Isaías: “Todos vós que tendes sede, vinde beber desta água. Mesmo os que não tendes dinheiro, vinde, comprai trigo para comer sem pagar nada. Levai vinho e leite, que é de graça” (Is 55,1).
[3] A partir de Orígenes tornou-se a interpretação maioritária, segundo a qual os rios de água viva jorravam daqueles que creem em Cristo. Hoje, no entanto, a maioria dos biblistas, por causa do fundo veterotestamentário e do caráter da festa dos tabernáculos, afirma que os rios de água viva jorram de Cristo. cf. R. SCHNACKENBURG, Das Johannesevangelium II, Freiburg, 1980, 214.; J. RATZINGER / BENEDIKT XVI, Jesus von Nazareth I, Cidade do Vaticano, 2007, 289.
[4] cf. I. DE LA POTTERIE, Studi di cristologia giovannea, Genova, 1986, 285.
[5] Este prefácio do Missal Romano, faz-se eco da interpretação de Agostinho no Tractatus in Iohannis Evangelium, CXX, 2; in: Nuova Biblioteca Agostiniana (NBA), vol. XXIV/2, p. 1912.
[6] O grupo dos cânticos de Sião inclui os Salmos 45(46), 47(48), 75(76), 83(84), 86(87), 121(122).
[7] G. RAVASI, I Salmi II, Bologna, 1986, p. 800.
[8] ibid., p. 802.
[9] “Erat enim quaedam Sion civitas terrena quae per umbram gestavit imaginem cuiusdam Sion de qua modo dicitur, coelestis illius Jerusalem de qua dicit Apostolus: Quae est mater omnium nostrumcf. AGOSTINHO, Enarrationes in Psalmos, 86,2; in: NBA, vol. XXVII/I.

[*] O texto divulgado pelo Pontifício Comitê para os Congressos Eucarísticos Internacionais refere-se aos salmos segundo a numeração da Bíblia Hebraica. Utilizamos aqui a dupla numeração, hebraica e grega. Além disso, publicamos a tradução oficial do Salmo 86(87) presente na Liturgia das Horas para o Brasil.

Nos próximos dias publicaremos os demais temas do Documento-base:

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