Após traçarmos um breve histórico dos Congressos Eucarísticos Internacionais, passamos a apresentar
aqui o texto-base do 52º Congresso Eucarístico Internacional que acontece em
Budapeste (Hungria) de 05 a 12 de setembro de 2021.
Inicialmente este Congresso teria lugar entre os 13 e 20 de
setembro de 2020, sendo adiado devido à pandemia de Covid-19.
O texto-base, divulgado pelo Pontifício Comitê para os
Congressos Eucarísticos Internacionais, apresenta reflexões teológicas e
pastorais à luz do tema do Congresso: “‘Todas as minhas fontes estão em ti’ (Sl 86/87,7): A Eucaristia: fonte da
vida e da missão cristã”.
Logotipo do 52º Congresso Eucarístico Internacional |
Após um breve 1º capítulo dedicado a apresentar o Congresso
e a realidade da Hungria, o 2º capítulo, que apresentamos a seguir, reflete
sobre os fundamentos bíblicos da temática da fonte: “Em ti está a fonte da
vida” (cf. Sl 35/36,10).
“Em ti está a fonte da vida”
Deus, fonte da vida
É convicção fundamental da Bíblia que a fonte de toda a vida
é Deus, porque d’Ele vem tudo aquilo de que o homem tem necessidade tanto para
a sua vida natural como para a vida sobrenatural [1]. Até os alimentos,
essenciais para a vida terrena, são dom seu. Já no relato simbólico da criação
(Gn 2,4b-25) se sublinha o fato de
que Deus não apenas criou o homem, mas o colocou no jardim do paraíso, cheio de
toda a espécie de árvores de fruto e irrigado por quatro rios. O homem deve a
Deus, portanto, não só a sua própria vida, mas também todos os bens necessários
para a sua manutenção.
O amor e o cuidado de Deus estão, também, no centro do
relato da travessia do deserto por Israel. É o próprio Senhor que assegura, por
intermédio de Moisés, o alimento necessário sob a forma de maná, de codornizes
(Ex 16,1-15) e de água saída do
rochedo (Ex 17,1-17; Nm 20,1-13). Doravante, a tradição
bíblica mais tardia fala desta realidade como de dons recebidos diretamente de
Deus. Esta visão manifesta-se antes de mais nos salmos: “Fendeu as rochas no
deserto e dessedentou-os com águas abundantes. Fez brotar rios das pedras, fez
correr água em torrentes... Para alimento fez chover o maná, deu-lhes o pão do
céu. O homem comeu o pão dos fortes. Mandou-lhes comida com abundância” (Sl 77[78],15-16.24-25). «A seu pedido
mandou-lhes codornizes, e saciou-os com o pão do céu. Fendeu o rochedo e brotou
água, como um rio a correr pelo deserto» (Sl
104[105],40-41).
No que se refere à tradição da água, embora esta brote da
rocha, a sua fonte original é o próprio Deus. Portanto, a água não se apresenta
apenas como bebida, mas também como símbolo dos bens espirituais provenientes
de Deus. Por isso, em algumas passagens do Antigo Testamento prevalece o
sentido figurado. «Em Ti está a fonte da vida e é na tua luz que vemos a luz»,
confessa o salmista (Sl 35 [36], 10).
O profeta Jeremias ao contrário, censura a infidelidade de Israel: «O meu povo
cometeu dois crimes: abandonou-me a Mim, fonte de água viva, e escavou
cisternas para si, cisternas rotas, que não podem reter as águas» (Jr 2,13). Particularmente digna de
atenção é a promessa que se lê em um texto hínico do profeta Isaías: «Este é o
Deus da minha salvação; estou confiante e nada temo, porque a minha força e o
meu canto de vitória é o Senhor; Ele foi a minha salvação. Tirareis água com
alegria das fontes da salvação» (Is
12,2-3) [2].
Todos estes textos escriturísticos afirmam, portanto, que
Deus é a fonte de onde vêm todos os dons dos quais os homens têm necessidade na
perspectiva da salvação.
“Quem tem sede, venha
a mim e beba”
No Novo Testamento, a água como um símbolo dos bens
espirituais aparece principalmente no Evangelho
de João. Jesus no Templo de Jerusalém, no último dia da festa dos tabernáculos
revela aos ouvintes: “Se alguém tem sede, venha a mim; e beba quem crê em mim.
Como diz a Escritura: Do seu seio jorrarão rios de água viva” (Jo 7,37-38). Na Festa dos Tabernáculos,
que durava sete dias, os piedosos israelitas recordavam o caminho no deserto, e
na celebração prestavam atenção particular à água como dom recebido de Deus,
fonte da vida. Durante os sete dias da festa, de fato, de manhã cedo, a
multidão seguia os sacerdotes e os levitas que iam para a piscina de Siloé,
para tirar água em ânforas de ouro, enquanto recitavam “Tirareis água com alegria
das fontes da salvação”. E quando voltavam ao templo, a água era derramada
sobre o altar. É à luz desta solenidade que Jesus se define como a fonte à qual
se refere o dito profético [3].
Não se esqueça, no entanto, que o evangelista refere as
palavras de Jesus ao Espírito Santo recebido por quantos creem em Cristo
através da sua glorificação na cruz, em sua Páscoa de Morte e Ressurreição. Na
expectativa do Pentecostes, Cristo transmite já o seu Espírito na cruz, quando “entregou
o espírito” (Jo 19,30) [4]. E do lado
de Jesus trespassado pela lança de um soldado, jorrou sangue e água (Jo 19,34) que na tradição eclesial se
referem aos sacramentos do Batismo (a água) e da Eucaristia (o sangue).
Como se diz no Prefácio da Solenidade do Sagrado Coração de
Jesus: “Elevado sobre a cruz, com admirável amor deu a sua vida por nós e do
seu lado trespassado fez brotar sangue e água, donde nasceram os sacramentos da
Igreja, para que todos os homens, atraídos ao Coração aberto do Salvador,
pudessem beber com alergia nas fontes da salvação” [5].
A interpretação eucarística do sangue de Cristo também é
sustentada pela parte final do discurso sobre o “pão da vida”, relatado pelo
capítulo sexto do Evangelho de João,
no qual Jesus fala do próprio corpo como alimento e do próprio sangue como
bebida (Jo 6,53-58). Sangue e água
aparecem também na Primeira Carta de João,
juntamente com o Espírito Santo: “Pois são três que dão testemunho: o Espírito,
a água e o sangue, e os três coincidem no mesmo testemunho” (1Jo 5,7-8). Batismo e Eucaristia
tornam-se fonte da salvação através do Espírito Santo.
Mesmo São Paulo, na Primeira
Carta aos Coríntios, referindo-se ao êxodo dos pais no deserto recorda: “Todos
comeram do mesmo alimento espiritual e todos beberam da mesma bebida espiritual,
pois bebiam de um rochedo espiritual que os seguia, e esse rochedo era Cristo”
(1Cor 10,3-4).
Do lado aberto de Cristo brotam sangue e água (Mosaico do Santuário Nacional da Imaculada Conceição - Washington, EUA) |
“Todas as minhas
fontes estão em ti”
A Eucaristia é fonte de vida não só para cada cristão, mas
também para toda a Igreja, comunidade dos crentes. Na verdade, para que Cristo
celebrado na Eucaristia se torne fonte perene, é indispensável a obra mediadora
da Igreja.
Para compreendê-lo, voltamos mais uma vez ao Antigo
Testamento, e precisamente ao texto do qual foi extraído o lema deste Congresso
Eucarístico Internacional. Trata-se do Salmo 86 (87), cujo texto citamos na
íntegra [*]:
O Senhor ama a cidade
que fundou no Monte santo;
ama as portas de Sião
mais que as casas de Jacó.
Dizem coisas gloriosas
da Cidade do Senhor:
“Lembro o Egito e Babilônia
entre os meus veneradores.
Na Filisteia ou em Tiro
ou no país da Etiópia,
este ou aquele ali nasceu”.
De Sião, porém, se diz:
“Nasceu nela todo homem;
Deus é sua segurança”.
Deus anota no seu livro,
onde inscreve os povos todos:
“Foi ali que estes nasceram”.
E por isso todos juntos
a cantar se alegrarão;
e, dançando, exclamarão:
“Estão em ti as nossas fontes!”
“Estão em ti as nossas fontes” IPia batismal do Santuário Nacional de AparecidaI |
O Salmo pertence aos chamados “cânticos de Sião”, cujo
centro é a eleição e localização privilegiada de Jerusalém [6]. O Senhor, como
diz o início do Salmo, prefere “as portas de Sião”, isto é, a cidade santa,
onde existe um templo e a morada da dinastia davídica, mais do que todos os
outros locais em Israel [7]. E o próprio YHWH dá a cidadania de Jerusalém às
nações pagãs que o “conhecem”.
A promessa contida no Salmo é digna de atenção por dois
motivos. Por um lado, a lista começa com o Egito e Babilônia, dois inimigos
mortais que, tendo aceitado com fé o Deus de Israel, se tornaram de pleno
direito cidadãos da cidade santa. O elenco prossegue depois com os pontos
cardeais: Egito/Ocidente - Babilônia/Oriente - Filisteia e Tiro/Norte -
Etiópia/Sul. Assim, as cinco nações elencadas representam o mundo inteiro que
converge para Jerusalém, a cidade santa, onde, graças ao conhecimento de Deus,
as nações antes antagônicas se reúnem em unidade e paz. No final do Salmo são todas
estas nações que reunidas no contexto de uma celebração litúrgica anunciam: “Todas
as minhas fontes estão em ti”.
A ideia de que nos tempos escatológicos Jerusalém e o seu
templo se tornarão fonte de água viva está presente também nos escritos
proféticos. “Naquele dia, haverá uma fonte aberta para a casa de Davi e para os
habitantes de Jerusalém, para a purificação do pecado e da impureza”, lemos no Livro de Zacarias (Zc 13,1). No Livro de Ezequiel
lê-se a profecia da fonte que corre do lado oriental do templo e se torna um
rio grande e navegável (Ez 47,1-12).
Estes textos proféticos, como o Salmo 86(87), anunciam o regresso da condição
paradisíaca caracterizada pela abundância, pela fertilidade e pela paz: “De
Sião se desenvolve uma nova criação, fértil e verdejante, jubilosa e abençoada”
[8].
A tradição cristã lê o Salmo 86(87) em referência à Igreja,
na convicção de que a verdadeira Sião, a “Jerusalém celeste”, se identifica com
a Igreja: “Sião era uma cidade terrena que reproduzia na sombra a imagem
daquela Sião de que se trata, ou seja daquela Jerusalém celeste da qual o Apóstolo
fala ‘que é a mãe de todos nós’ (Gl
4,26; cf. Hb 12,22-24)” [9]. A Igreja é a comunidade dos que foram salvos, e
que, provenientes de “todas as tribos, línguas, povos e nações” (Ap 5,9), adoram a Deus “em espírito e
verdade” (Jo 4,24) e recuperam a
unidade construindo um só corpo.
Como recorda o Apóstolo Paulo: “O cálice da bênção que
abençoamos, não é comunhão com o sangue de Cristo? E o pão que partimos, não é
comunhão com o corpo de Cristo? Uma vez que há um só pão, nós, embora muitos,
somos um só corpo, porque todos participamos desse único pão” (1Cor 10,16-17). A participação no Corpo
e no Sangue de Cristo na Celebração Eucarística cria uma comunhão real com
Cristo e constrói o seu corpo que é a Igreja. Todos aqueles que participam no
sacramento do Corpo e do Sangue de Cristo, tornam-se um só corpo, uma única
comunidade. A fonte de que os fiéis bebem é garantia verdadeira de unidade
entre eles.
Confira também:
Notas:
[1] Os fiéis da Igreja bizantina evocam todas as manhãs na
Liturgia das Horas: “Em Ti está a fonte da vida e na tua luz veremos a luz”.
[2] Vai também mencionado o convite que se lê no Dêutero-Isaías: “Todos vós que tendes
sede, vinde beber desta água. Mesmo os que não tendes dinheiro, vinde, comprai
trigo para comer sem pagar nada. Levai vinho e leite, que é de graça” (Is 55,1).
[3] A partir de Orígenes tornou-se a interpretação
maioritária, segundo a qual os rios de água viva jorravam daqueles que creem em
Cristo. Hoje, no entanto, a maioria dos biblistas, por causa do fundo
veterotestamentário e do caráter da festa dos tabernáculos, afirma que os rios
de água viva jorram de Cristo. cf. R.
SCHNACKENBURG, Das Johannesevangelium II,
Freiburg, 1980, 214.; J. RATZINGER / BENEDIKT XVI, Jesus von Nazareth I, Cidade do Vaticano, 2007, 289.
[4] cf. I. DE LA
POTTERIE, Studi di cristologia giovannea,
Genova, 1986, 285.
[5] Este prefácio do Missal Romano, faz-se eco da interpretação
de Agostinho no Tractatus in Iohannis
Evangelium, CXX, 2; in: Nuova Biblioteca Agostiniana (NBA), vol.
XXIV/2, p. 1912.
[6] O grupo dos cânticos de Sião inclui os Salmos 45(46), 47(48),
75(76), 83(84), 86(87), 121(122).
[7] G. RAVASI, I Salmi
II, Bologna, 1986, p. 800.
[8] ibid., p. 802.
[9] “Erat enim
quaedam Sion civitas terrena quae per umbram gestavit imaginem cuiusdam Sion de
qua modo dicitur, coelestis illius Jerusalem de qua dicit Apostolus: Quae est
mater omnium nostrum” cf. AGOSTINHO,
Enarrationes in Psalmos, 86,2; in: NBA, vol. XXVII/I.
[*] O texto divulgado pelo Pontifício Comitê para os Congressos Eucarísticos Internacionais refere-se aos salmos segundo a numeração da Bíblia Hebraica. Utilizamos aqui a dupla numeração, hebraica e grega. Além disso, publicamos a tradução oficial do Salmo 86(87) presente na Liturgia das Horas para o Brasil.
Nos próximos dias publicaremos os demais temas do Texto-base:
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