A Memória de São Joaquim e Santa Ana - venerados como pais
da Virgem Maria e, portanto, avós de Jesus - é celebrada pela Igreja de Rito
Romano no dia 26 de julho.
Em nossa postagem anterior já traçamos brevemente a história da sua celebração no Oriente e no Ocidente. Cabe-nos agora apresentar os dois
hinos que são entoados na Liturgia das Horas da sua Memória:
Laudes: Nocti succédit lúcifer (A estrela d'alva
já brilha);
Vésperas e Ofício das
Leituras: Dum tuas festo, pater (Enquanto
uma coroa em tua honra).
Ambos são composições anônimas, o primeiro do século XV e o
segundo provavelmente do século XVII. Cada um dos hinos destaca um dos
personagens da celebração: o hino das Laudes (oração da manhã) é dedicado a Santa
Ana, enquanto o hino das Vésperas (oração da tarde) é dedicado a São Joaquim.
Santa Ana (Igreja da Natividade de Maria - Madley, Inglaterra) |
Nesta postagem apresentaremos o hino das Laudes, com seu
texto em latim e em sua tradução oficial para o português do Brasil, além de
alguns comentários sobre sua teologia:
Laudes: Nocti succédit lúcifer
Nocti succédit lúcifer,
quem mox auróra séquitur,
solis ortum praenúntians
mundum lustrántis lúmine.
Christus sol est iustítiae,
auróra Mater grátiae,
quam, Anna, praeis rútilans
legis propéllens ténebras.
Anna, radix ubérrima,
arbor tu salutífera,
virgam prodúcens flóridam
quae Christum nobis áttulit.
O matris Christi génetrix
tuque parens sanctíssime,
natae favénte mérito,
nobis rogáte véniam.
Iesu, tibi sit glória,
qui natus es de Vírgine,
cum Patre et almo Spíritu,
in sempitérna saecula. Amen [1].
O anjo anuncia a Santa Ana o nascimento de Maria (Giotto - Cappella degli Scrovegni, Pádua) |
Laudes: A estrela d'alva já brilha
A estrela d'alva já brilha,
já nova aurora reluz,
o sol nascente vem vindo
e banha o mundo de luz.
Cristo é o sol da justiça.
Maria, aurora radiante.
Da lei a treva expulsando,
ó Ana, vais adiante.
Ana, fecunda raiz,
que de Jessé germinou,
produz o ramo florido
do qual o Cristo brotou.
Mãe da Mãe santa de Cristo,
e tu, Joaquim, santo pai,
pelas grandezas da Filha,
nosso pedido escutai.
Louvor a vós, Jesus Cristo,
que de uma Virgem nascestes.
Louvor ao Pai e ao Espírito,
lá nas alturas celestes [2].
Comentário:
Como podemos ver a partir das suas primeiras duas estrofes,
o texto não é apenas uma composição em honra de Santa Ana, mas também um
autêntico hino das Laudes, isto é, da oração da manhã, dada as referências à
aurora e ao sol.
A terceira estrofe, por sua vez, traz a temática vegetal da “raiz
de Jessé”. O hino nos remete, portanto, à dupla
autoafirmação proferida por Cristo no Apocalipse: “Eu sou o rebento da estirpe de Davi, a brilhante
estrela da manhã” (Ap 22,16).
Completam a composição uma súplica pedindo a intercessão de
Ana e Joaquim (4ª estrofe) e, como de costume nos hinos da Liturgia das Horas,
uma doxologia (fórmula de louvor) dirigida à Santíssima Trindade (5ª estrofe).
a) 1ª e 2ª estrofes:
Começamos nosso percurso através do hino Nocti succédit lúcifer pelas suas primeiras duas estrofes que, como
vimos acima, refletem sobre a simbologia da luz.
Ícone de Santa Ana com a Virgem Maria ao colo |
O primeiro verso pode gerar certa estranheza devido ao uso
do termo “lúcifer”, que na cultura
popular costuma ser associado ao Diabo ou Satanás (termos que significam,
respectivamente, “o divisor” e “o tentador” ou “o acusador”).
Na verdade o termo “lúcifer”
significa em latim “portador da luz”, “aquele que traz a luz” (lux + fero), traduzindo o grego ἑωσφόρος, e se refere ao planeta Vênus,
conhecido tanto como “a estrela vespertina” (por ser um dos primeiros astros a
aparecer após o pôr-do-sol) como “a estrela da manhã” ou “estrela d’alva”
(por ser um dos últimos corpos celestes a desaparecer do céu antes do nascer do
sol).
Na Escritura, este termo nunca é associado ao Diabo. Trata-se
de um erro de tradução feito por Orígenes (séc. III), que interpretou o texto
de Is 14,12, um oráculo sobre a queda
do rei da Babilônia (chamado de “estrela d’alva” e “filho da aurora”), em
paralelo com Lc 10,18, sobre a queda
de Satanás.
Note-se que o nosso hino usa o termo “lúcifer” em letra minúscula: ou seja, trata-se de um substantivo
comum, não de um nome próprio. O título de “estrela da manhã”, por sua vez, é
usado com vários sentidos na Escritura, sendo atribuído ao próprio Cristo em Ap 22,16, como vimos acima.
Em nosso hino, porém, o símbolo da “estrela da manhã” é
aplicado a Santa Ana, que, como canta a 2ª estrofe, “brilhando expulsa as
trevas da lei” (rútilans legis propéllens
ténebras).
A Virgem Maria em glória com seus pais Joaquim e Ana (Lodovico Cardi, conhecido como Cigoli) |
As “trevas da lei” não devem ser entendidas aqui como um juízo negativo em relação à Lei do Antigo Testamento, mas sim como uma afirmação de seu alcance limitado, que é levado ao cumprimento por Cristo (cf. Mt 5,17). Mesmo a “nova lei” do Evangelho carrega sua dose de “penumbra” (cf. 1Cor 13,12; 1Jo 3,2).
Além disso, usa-se aqui o verbo “propellere”, que pode ser traduzido tanto como “expulsar, afastar” quanto “impelir, fazer avançar”.
A filha de Ana, isto é, a Virgem Maria, é invocada como “auróra Mater grátiae”, “a Mãe que é
aurora da graça”. A associação simbólica de Maria com a aurora, a claridade que
precede o nascer do sol, é recorrente, por exemplo, na festa da sua Natividade, no dia 08 de setembro.
Cristo, por fim, é referido como “sol de justiça” (Christus sol est iustítiae). O símbolo
do sol associado a Cristo, muito comum nos hinos das Laudes - além de ser uma
das sete Antífonas do Ó -, remete-nos ao cântico de Zacarias, o Benedictus: “visitabit nos Oriens ex alto”, “o sol nascente nos veio visitar” (Lc 1,78). Este texto, por sua vez, pode
ser associado às profecias de Is 9,1
e Ml 3,20.
Vale destacar que, associados a Cristo e Maria, estão o
binômio graça (misericórdia) e justiça (fidelidade, verdade), que em Deus nunca
se opõem, mas sim se complementam, como atesta a autorrevelação de Deus no
Sinai (Ex 34,6-7; cf. Sl
84,11-12).
b) 3ª estrofe:
Do simbolismo “cósmico” da aurora, passamos ao simbolismo
“vegetal”: a raiz que germina, completando assim a dupla referência de Ap 22,16.
Primeiramente Santa Ana é referida como “radix ubérrima” e “arbor salutífera”, isto é, “raiz fecundíssima” e “árvore salutar”
(tanto no sentido de saudável, “que possui saúde”, como salvífica, “que traz a
salvação”).
A Concepção de Maria, com a imagem da árvore florida (Atribuído a Ambrosius Benson e seu ateliê) |
A tradução brasileira é ainda mais específica, referindo-se
à “fecunda raiz que de Jessé germinou”. Jessé era o pai do rei Davi, de cuja
descendência viria o Messias (cf. Is
11,1). Embora o Evangelho atribua explicitamente a descendência de Davi apenas
a José (Mt 1,1-17; Lc 1,27; 3,23-38), é razoável supor que
Maria era da mesma descendência, uma vez que na época era costume que a mulher
se casasse com um homem da mesma tribo do seu pai (cf. Nm 36).
O Protoevangelho de
Tiago, escrito apócrifo do início do século II e principal fonte para a
história de Joaquim e Ana, elenca Maria entre as “donzelas sem mancha da tribo
de Davi” [3].
Na sequência, a Virgem Maria é referida como o “ramo
florido” (virgam flóridam) que trouxe
o Cristo para nós (quae Christum nobis
áttulit). Note-se a semelhança entre virga
(ramo) e virgo (virgem).
O título de “raiz de Jessé” aplicado a Cristo é também uma
das Antífonas do Ó. Vale recordar, nesse sentido, o célebre canto “Da cepa
rotou a rama”, adaptado do texto de Is
11, e indicado na Liturgia das Horas para o Brasil como hino alternativo para o
Tempo do Natal, embora seja entoado também durante o Advento [4].
c) 4ª estrofe:
Concluída a exposição das duas imagens, cósmica e vegetal,
nas primeiras três estrofes, segue-se na 4ª estrofe uma súplica a Santa Ana, na qual se
inclui também seu esposo Joaquim.
Ana é invocada como “matris
Christi génetrix”, isto é, mãe da Mãe de Cristo (mãe da "genitora" de Cristo), enquanto Joaquim é
referido no original em latim apenas como “pai santíssimo” (parens sanctíssime), sem a menção do seu
nome, que é citado abertamente na tradução brasileira.
São Joaquim e Santa Ana com a Virgem Maria (Igreja da Imaculada Conceição - Saint Mary-of-the-Woods, EUA) |
Pedindo a intercessão desses dois santos - nobis rogáte véniam (rogai para nós o
perdão) -, o hino invoca os méritos da Virgem Maria: natae favénte mérito (com o favor do mérito da filha); ou, como diz
mais simplesmente a tradução oficial: “pelas grandezas da Filha”. Esta tradução,
porém, não especifica o pedido da estrofe: o perdão.
d) 5ª estrofe:
Por fim, como afirmamos anteriormente, a última estrofe é
uma doxologia (fórmula de louvor) à Trindade. Essa começa dirigindo-se a Cristo
nos primeiros dois versos: Iesu, tibi sit
glória, qui natus es de Vírgine... - “Jesus, a ti seja a glória, a tu que
nasceste da Virgem...”.
Os dois versos seguintes, por sua vez, incluem no louvor as
outras duas Pessoas da Santíssima Trindade: cum
Patre et almo Spíritu, in sempitérna saecula - “com o Pai e o santo
Espírito, pelos séculos eternos”.
O título atribuído aqui ao Espírito, almo, pode ser traduzido como “santo”, “benéfico, favorável”, ou
mesmo “aquele que alimenta”, em alusão ao Símbolo da fé: “Creio no Espírito
Santo, Senhor que dá a vida...”.
Notas:
[2] OFÍCIO DIVINO. Liturgia
das Horas segundo o Rito Romano. Tradução para o Brasil da segunda edição
típica. São Paulo: Paulus, 1999, v. III, p. 1451.
[3] Proto-Evangelho de
Tiago, 10,1. in: PROENÇA, Eduardo
de (Org.) Apócrifos e pseudo-epígrafos da
Bíblia, v. I. São Paulo: Fonte Editorial, 2005, p. 523.
[4] OFÍCIO DIVINO, op.
cit., v. I, pp. 1466-1467.
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