Como indicamos em nossa postagem anterior, para a Liturgia
das Horas (LH) - oração oficial da Igreja para a santificação das horas do dia
- da Solenidade de São José, no dia 19 de março, são propostos três hinos, que
nos introduzem no mistério celebrado.
Como vimos, foram aprovados pelo Papa Clemente X em 1671 e
sua autoria é debatida. Não obstante, são um verdadeiro tesouro da Igreja, que
celebram de maneira poética o Esposo da Bem-aventurada Virgem Maria e Guardião
do Redentor.
Após apresentarmos, em seu texto original (em latim) e em
sua atual tradução oficial para o Brasil, com alguns comentários, o célebre
hino das Vésperas, Te, Ioseph, célebrent,
nesta postagem conheceremos o hino do Ofício das Leituras: Iste, quem laeti cólimus (Hoje
um grande triunfo cantamos).
Ofício das Leituras: Iste, quem laeti cólimus
Iste, quem laeti cólimus, fidéles,
cuius excélsos cánimus triúmphos,
hac die Ioseph méruit perénnis
gáudia vitae.
O nimis felix, nimis o beátus,
cuius extrémam vígiles ad horam
Christus et Virgo simul astitérunt
ore seréno.
Iustus insígnis, láqueo solútus
carnis, ad sedes plácido sopóre
migrat aetérnas, rutilísque cingit
témpora sertis.
Ergo regnántem flagitémus omnes,
adsit ut nobis, veniámque nostris
óbtinens culpis, tríbuat supérnae
múnera pacis.
Sint tibi plausus, tibi sint honóres,
trine qui regnas Deus, et corónas
áureas servo tríbuis fidéli
omne per aevum. Amen [1].
Ofício das Leituras: Hoje
um grande triunfo cantamos
Hoje um grande triunfo cantamos,
celebrando fiéis este dia.
São José mereceu hoje a vida,
e entrou na eterna alegria.
É feliz por demais este homem
que, na hora da extrema agonia,
recebeu o supremo conforto
pela voz de Jesus e Maria.
Homem justo, na paz adormece,
libertado dos laços mortais,
e recebe brilhante coroa
no esplendor das mansões eternais.
Ao que reina, fiéis imploremos,
fique perto de nós, os mortais;
nos liberte da culpa e nos dê
o presente supremo da paz.
A vós glória, poder, majestade,
Trino Deus, que no alto reinais,
com a áurea coroa para sempre,
vosso servo fiel premiais [2].
Comentário:
O Ofício das Leituras, anteriormente conhecido como Matinas,
costumava ser recitado de madrugada, sobretudo nos mosteiros. Atualmente,
porém, pode ser rezado em qualquer momento do dia, inclusive junto com outra
hora do Ofício (por exemplo, junto com a oração da manhã, Laudes).
O hino que abre essa hora, Iste, quem laeti cólimus, segue, em suas cinco estrofes,
basicamente a estrutura comum aos hinos em geral, que delineamos na postagem
anterior: uma introdução com o convite ao louvor; o corpo do hino, geralmente
com os motivos do louvor; e uma conclusão, na forma de uma doxologia (que nos
hinos da LH é sempre dirigida à Trindade).
a) Primeira estrofe:
Os primeiros dois versos compõem a
introdução, convidando os fiéis ao louvor de São José: “Iste, quem laeti cólimus, fidéles, cuius excélsos cánimus triúmphos...” - “Este a quem, fiéis, alegremente celebramos, cujos excelsos triunfos cantamos...”.
Os dois seguintes versos, por sua vez, já entram no motivo
do louvor: “Hac die Ioseph méruit
perénnis gáudia vitae” - “Neste dia José mereceu [entrar na] perene
alegria da vida”. Com efeito, o grande tema do hino, que prossegue na segunda e
terceira estrofes, é a morte de São José.
"É feliz por demais este homem que, na hora da extrema agonia, recebeu o supremo conforto pela voz de Jesus e Maria" (El tránsito de San José - Raúl Berzosa Fernández) |
Vale lembrar que as celebrações dos santos geralmente
coincidem com a data de sua morte, o “dies
natalis”, isto é, o dia em que este santo “nasceu para a eternidade”. A
própria escolha de 19 de março para essa Solenidade, como vimos em nossa postagem sobre a história do culto de São José, deve-se à confusão com a celebração de um mártir
de mesmo nome, morto nesse, e depois confundido com José, o Esposo
de Maria.
No Egito, por sua vez, os cristãos coptas conservam a
celebração mais antiga do “transitus”,
isto é, da morte de José, no dia 26 de Epip (02 de agosto no calendário
gregoriano), data indicada no apócrifo História
de José, o Carpinteiro.
Destaque aqui para a expressão “hac die”, neste dia, ou “hoje”, na tradução brasileira: “São José
mereceu hoje a vida, e entrou na
eterna alegria” (alegria rimando aqui com “dia”, da segunda estrofe. A tradução
brasileira apresenta rimas alternadas nos versos pares, ausentes no original).
A celebração litúrgica, com efeito, não é mera recordação de
um evento passado, mas “atualização”, no sentido de “presentificação”, isto é,
de “tornar presente” este acontecimento. Também não se trata de repetição: o
mistério - no caso, a morte de São José -, aconteceu uma vez por todas; mas
todas as vezes que a celebramos, ela se torna presente.
b) Segunda estrofe:
A segunda estrofe destaca o “privilégio” de José em morrer
tendo junto de si Jesus e a Virgem Maria, como atesta a tradição: “cuius extrémam vígiles ad horam Christus
et Virgo simul astitérunt ore sereno” - “cuja última hora assistiram,
vigilantes, ao mesmo tempo Cristo e a Virgem, com rosto sereno”.
Este “privilégio”, como canta o primeiro verso dessa estrofe usando dois
superlativos, faz de José “o mais feliz, o mais bem-aventurado” (“O nimis felix, nimis o beátus”) e, ao
mesmo tempo, fundamenta sua intercessão pelos enfermos e agonizantes: assim
como ele teve Jesus e Maria junto a si na hora do sofrimento e da morte, assim
rogamos a ele que interceda por nós junto ao seu Filho segundo a Lei e à sua
Esposa.
Os três nos ensinam também a correta atitude do cristão
diante da morte: estão “vigilantes” e “com rosto sereno”. Evidentemente que esta serenidade não anula nem a tristeza nem o medo diante da morte, atitudes perfeitamente humanas.
c) Terceira estrofe:
A terceira estrofe prossegue e conclui o tema da morte de
São José, inicialmente invocado como “Iustus
insígnis”, “insigne em justiça”. Vale lembrar que este é o título com o
qual o Evangelho qualifica nosso santo (cf.
Mt 1,19).
Versões mais antigas do hino, porém, trazem ao invés a
expressão “Stygis victor”, “vencedor
do Estige”. O Estige, na mitologia grega, era um dos rios que as almas deviam
atravessar ao chegar ao reino dos mortos, o Hades. Assim, a expressão
significaria “vencedor do reino dos mortos” ou “vencedor do inferno”.
Os cinco rios do Hades de certa forma simbolizavam diferentes aspectos da morte. O Estige, sobre o qual eram feitos os juramentos que não podiam ser violados, pode ser associado à irreversibilidade da morte. "Vencer o Estige", portanto, poderia significar aqui que José aceitou a própria mortalidade.
"E recebe brilhante coroa no esplendor das mansões eternais" (Cristo coronando a San José - Francisco de Zurbarán) |
Ainda no primeiro verso dessa estrofe afirma-se que José
foi “libertado do laço [da morte]” (“láqueo
solútus”). Sendo justo, não via a morte como um castigo, mas com
serenidade, como a conclusão natural da vida terrena (ver, neste sentido, Sb 3,1-9).
Prossegue sobre este tema o segundo verso e parte do
terceiro: “carnis, ad sedes plácido
sopóre migrat aetérnas”, isto é, “da carne passa, em plácido sono, às
moradas eternas”. A morte dos justos é tradicionalmente associada ao “sono”.
Basta pensar, por exemplo, na morte de Maria, referida como “dormição” (koimesis, em grego).
A última parte do terceiro verso e o quarto verso dessa
estrofe, por fim, cantam a “coroação” de José: “rutilísque cingit témpora sertis” - “cinge a fronte com brilhante
coroa”. Na arte sacra encontramos várias vezes este tema: José, libertado do
reino dos mortos pelo Cristo Ressuscitado junto com os outros justos do Antigo
Testamento, é acolhido no céu e coroado por seu Filho segundo a Lei. O
termo latino “serta” designa
especificamente uma “coroa de flores”, simbolizando as virtudes de José.
d) Quarta estrofe:
Concluído os motivos do louvor, a quarta estrofe insere uma
súplica, dirigida “àquele que reina” (“regnántem”):
uma vez coroado por Cristo, José reina com Ele. Vale ressaltar ainda, em favor
da “realeza” de José, o fato de que pertence à descendência de Davi, a qual
transmite a Jesus através da sua paternidade segundo a Lei (cf. Mt 1,1-17).
Portanto, à sua intercessão acorrem todos os fiéis: “flagitémus omnes”, “imploremos todos”.
Os versos seguintes indicam o tríplice conteúdo dessa súplica: “adsit ut nobis” (“venha a nós”); “veniámque nostris óbtinens culpis” (“nos obtenha o perdão das culpas”); e “tríbuat supérnae múnera pacis” (“nos conceda o dom supremo da paz”).
e) Quinta estrofe:
Por fim, como em todos os hinos da LH, a última estrofe é
dirigida à Trindade, aqui na forma de uma doxologia, isto é, de uma fórmula de
louvor: “Sint tibi plausus, tibi sint
honóres, trine qui regnas Deus” - “A vós sejam os aplausos, a vós sejam as
honras, Deus que reinais Trino”. Geralmente os “aplausos” (“plausus”) são traduzidos como
“louvores”.
"Ao que reina, fiéis imploremos, fique perto de nós, os mortais" (Piero Dalle Ceste - Santuario di San Giuseppe, Imperia) |
À doxologia acrescenta-se, concluindo nosso hino, mais um
motivo para louvar a Trindade (além de sua divindade e realeza, indicadas
anteriormente): “corónas áureas servo
tríbuis fidéli omne per aevum”, isto é, “recompensais com coroas de ouro
vosso servo por toda a eternidade”.
Esta expressão refere-se tanto a São José, cuja “coroação”
já foi indicada anteriormente, como a todo fiel cristão, exortando-nos a imitar
as virtudes de José, para assim partilhar da glória que ele recebe no céu.
Confira também o nosso hino cantado em latim (para ouvir mais músicas em louvor a São José, clique aqui):
Notas:
[1] cf. Preces latinae.
[2] OFÍCIO DIVINO. Liturgia
das Horas segundo o Rito Romano. Tradução para o Brasil da segunda edição
típica. São Paulo: Paulus, 1999, v. II, pp. 1481-1482.
Imagens: Wikimedia Commons.
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