quinta-feira, 23 de setembro de 2021

Catequeses sobre os Salmos (35): Vésperas da terça-feira da I semana

Prosseguindo com suas Catequeses sobre os salmos e cânticos das Vésperas, o Papa João Paulo II refletiu sobre os textos da terça-feira da I semana do Saltério nos dias 10 de março (Sl 19), 17 de março (Sl 20) e 31 de março de 2004 (Ap 4,11; 5,9-10.12).

100. Oração pela vitória do rei: Sl 19(20),2-10
10 de março de 2004

1. A invocação final, “Ó Senhor, dai vitória e salvai o nosso rei, e escutai-nos no dia em que nós vos invocarmos” (v. 10), revela-nos a origem do Salmo 19, que agora meditaremos. Estamos, pois, na presença de um salmo real do antigo Israel, proclamado no templo de Sião durante um rito solene. Com ele é invocada a bênção divina sobre o soberano, sobretudo “no dia da aflição” (v. 2), isto é, no tempo em que toda a nação se sente atormentada por uma angústia profunda devido à ameaça de uma guerra. De fato, são recordados os carros e os cavalos (v. 8) que parecem avançar no horizonte; a eles, o rei e o povo contrapõem a sua confiança no Senhor, que se declara da parte dos fracos, dos oprimidos, das vítimas da arrogância dos conquistadores.
É fácil compreender como a tradição cristã tenha transformado este Salmo num hino a Cristo-Rei, o “consagrado” por excelência, o “Ungido”, isto é, o “Messias” (v. 7). Ele entra no mundo sem exércitos, mas com o poder do Espírito, e desencadeia o ataque definitivo contra o mal e a prevaricação, contra a prepotência e o orgulho, contra a mentira e o egoísmo. Ressoam também aos nossos ouvidos levemente as palavras que Cristo pronuncia, respondendo a Pilatos, emblema do poder imperial terrestre: “Eu sou rei. Para isto nasci, para isto vim ao mundo: para dar testemunho da Verdade. Todo aquele que é da Verdade escuta a minha voz” (Jo 18,37).

2. Examinando o desenvolvimento deste Salmo, percebemos que ele revela minuciosamente uma Liturgia celebrada no Templo hierosolimitano. Fazem parte do cenário os filhos de Israel, que rezam pelo rei, chefe da nação. Aliás, na abertura se entrevê um rito sacrifical, em sintonia com os vários sacrifícios e holocaustos oferecidos pelo soberano ao “Deus de Jacó” (v. 2), que não abandona “o seu Ungido” (v. 7), mas protege-o e defende-o.
A oração está marcada em grande medida pela convicção de que o Senhor é a fonte da segurança: Ele vai ao encontro do desejo confiante do rei e de toda a comunidade à qual está ligado pelo vínculo da aliança. O clima é, sem dúvida, o de um acontecimento bélico, com todos os receios e riscos que suscita. A Palavra de Deus não é uma mensagem abstrata, mas uma voz que se adapta às pequenas e grandes misérias da humanidade. Por isso o Salmo reflete a linguagem militar e a atmosfera que domina Israel em tempo de guerra (v. 6), adaptando-se assim aos sentimentos do homem em dificuldade.

"O Senhor há de dar a vitória ao seu Ungido" (Sl 19,7)
(A unção de Davi como rei - Félix-Joseph Barrias)

3. No texto do Salmo, o v. 7 marca uma mudança. Enquanto os versículos anteriores exprimem implicitamente pedidos dirigidos a Deus (vv. 2-5), o v. 7 afirma a certeza de que o pedido foi atendido: “E agora estou certo de que Deus dará a vitória, que o Senhor há de dar a vitória a seu Ungido; que haverá de atendê-lo do excelso santuário”.
O Salmo não esclarece qual sinal deu essa certeza. Contudo, expressa claramente um contraste entre a posição dos inimigos, que contam com a força material dos seus carros e cavalos, e a posição dos israelitas, que têm confiança em Deus e, por conseguinte, são vitoriosos. O pensamento corre para o célebre episódio de Davi e Golias: o jovem hebreu contrasta as armas e a prepotência do guerreiro filisteu com a invocação do nome do Senhor, que protege os fracos e inermes. De fato, Davi diz a Golias: “Tu vens a mim de espada, lança e escudo; eu, porém, vou a ti em nome do Senhor do universo... não é com a espada nem com a lança que o Senhor triunfa, porque Ele é o árbitro da guerra” (1Sm 17,45.47).

4. O Salmo, em sua concretude histórica tão ligada à lógica da guerra, pode tornar-se um convite a nunca se deixar capturar pela atração da violência. Também Isaías exclamava: “Ai dos que põem a sua confiança na cavalaria! Confiam nos carros porque são muitos, e nos cavaleiros porque são fortes. Não olham para o Santo de Israel, nem consultam o Senhor” (Is 31,1).
A qualquer forma de maldade o justo contrapõe a fé, a benevolência, o perdão, a oferenda de paz. O apóstolo Paulo admoesta os cristãos: “Não pagueis a ninguém o mal com o mal; interessai-vos pelo que é bom diante de todos os homens” (Rm 12,17). E o historiador da Igreja dos primeiros séculos, Eusébio de Cesareia (séculos III-IV), ao comentar o nosso Salmo, alargará o olhar também sobre o mal da morte, que o cristão sabe que pode vencer por obra de Cristo: “Todas as potências adversárias e os inimigos de Deus escondidos e invisíveis, postos em fuga pelo próprio Salvador, cairão. Mas todos aqueles que receberem a salvação, ressurgirão da sua antiga ruína. Por isso Simeão dizia: ‘Ele veio para queda e ressurreição de muitos’, ou seja, para a ruína dos seus adversários e inimigos e para a ressurreição daqueles que outrora caíram, mas agora foram por ele ressuscitados” (PG 23, 197).

101. Ação de graças pela vitória do Rei: Sl 20(21),2-8.14
17 de março de 2004

1. No âmbito do Salmo 20, a Liturgia das Vésperas destacou a parte que agora escutamos, omitindo outra de caráter imprecatório (vv. 9-13). A parte conservada fala no passado e no presente dos favores concedidos por Deus ao rei, enquanto a parte omitida fala no futuro da vitória do rei sobre os seus inimigos.
O texto que constitui o objeto da nossa meditação (vv. 2-8.14) pertence ao gênero dos salmos reais. Por conseguinte, no centro encontra-se a obra de Deus a favor do soberano hebraico, representado talvez no dia solene da sua entronização. No início (v. 2) e no fim (v. 14) parece ressoar uma aclamação de toda a assembleia, enquanto o centro do hino tem tonalidades de um cântico de gratidão, que o salmista dirige a Deus pelos favores concedidos ao rei: “bênção generosa” (v. 4), “vida longa” (v. 5), “glória” (v. 6) e “alegria” (v. 7).
É fácil intuir que a este cântico, como aconteceu com os outros salmos reais do Saltério, foi designada uma nova interpretação quando, em Israel, desapareceu a monarquia. Já com o Judaísmo ele se tinha tornado um hino em honra do rei-Messias: desta forma, aplainava-se o caminho da interpretação cristológica, que é precisamente adotada pela Liturgia.

2. Mas lancemos primeiro um olhar ao texto no seu sentido originário. Respira-se uma atmosfera jubilosa, ressonante de cânticos, considerada a solenidade do acontecimento: “Ó Senhor, em vossa força o rei se alegra; quanto exulta de alegria em vosso auxílio! (...) Cantaremos celebrando a vossa força!” (vv. 2.14). Depois são referidos os dons de Deus ao soberano: Deus atendeu suas preces (v. 3), coloca-lhe sobre a cabeça uma coroa de ouro (v. 4). O esplendor do rei está relacionado com a luz divina, que o envolve como um manto protetor: “de esplendor e majestade o revestistes” (v. 6).
No antigo Médio Oriente considerava-se que o rei estivesse circundado por uma auréola luminosa, que confirmava a sua participação na própria essência da divindade. Naturalmente para a Bíblia o soberano é, sem dúvida, “filho” de Deus (cf. Sl 2,7), mas apenas em sentido metafórico e adotivo. Ele, então, deve ser o lugar-tenente do Senhor em tutelar a justiça. Precisamente por esta missão Deus o circunda com a luz benéfica e com a sua bênção.

3. A bênção é um tema relevante neste breve hino: “Com bênção generosa o preparastes... Transformastes o seu nome numa bênção” (vv. 4.7). A bênção é sinal da presença divina que intervém no rei, o qual, desta forma, se torna um reflexo da luz de Deus na humanidade.
Na tradição bíblica, a bênção inclui também o dom da vida, que é precisamente efundido sobre o consagrado: “A vida ele pediu e vós lhe destes longos dias, vida longa pelos séculos” (v. 5). Também o profeta Natã tinha garantido a Davi esta bênção, fonte de estabilidade, subsistência e segurança, e Davi rezou da seguinte forma: “Abençoa, desde agora, a sua casa, para que ela subsista para sempre diante de ti: porque Tu, Senhor Deus, falaste e, graças à tua bênção, a casa do teu servo será abençoada eternamente!” (2Sm 7,29).

4. Recitando este Salmo, vemos delinear-se por detrás do retrato do rei hebraico o rosto de Cristo, rei messiânico. Ele é “irradiação da glória” do Pai (Hb 1,3). Ele é o Filho em sentido pleno e, portanto, é a presença perfeita de Deus no meio da humanidade. Ele é luz e vida, como proclama São João no prólogo do seu Evangelho: “Nele estava a Vida, e a Vida era a Luz dos homens” (Jo 1,4).
Nesta perspectiva, Santo Ireneu, Bispo de Lião, ao comentar o Salmo, aplicará o tema da vida (v. 5) à Ressurreição de Cristo: “Por que motivo o salmista diz: ‘Pediu-te a vida’, visto que Cristo estava para morrer? Por conseguinte, o salmista anuncia a sua Ressurreição dos mortos e que ele, ressuscitado dos mortos, é imortal. Com efeito, assumiu a vida para ressurgir, e longo espaço de tempo na eternidade para ser incorruptível” (Exposição da pregação apostólica, 72, Milão, 1979, p. 519).
Com base nesta certeza também o cristão cultiva em si a esperança no dom da vida eterna.

102. Hino dos remidos: Ap 4,11; 5,9-10.12
31 de março de 2004

1. O cântico que acabamos de ouvir e que agora meditaremos faz parte da Liturgia das Vésperas, cujos Salmos estamos comentando progressivamente nas nossas Catequeses semanais. Como acontece com frequência na práxis litúrgica, algumas composições orantes surgem do paralelismo sintético de fragmentos bíblicos pertencentes a páginas mais amplas.
No nosso caso foram assumidos alguns versículos dos capítulos 4 e 5 do Apocalipse, nos quais se designa um glorioso e grandioso cenário celeste. No centro eleva-se um trono sobre o qual está sentado o próprio Deus, cujo nome não é pronunciado por veneração (cf. Ap 4,2). Em seguida, sobre aquele trono sentou-se o Cordeiro, símbolo de Cristo Ressuscitado: de fato, fala-se de um “Cordeiro que parecia ter sido imolado”, mas “estava de pé”, vivo e glorioso (Ap 5,6).
À volta destas duas figuras divinas situa-se o coro da corte celeste, representada por quatro “seres vivos” (Ap 4,6), que talvez recordem os anjos da presença divina nos pontos cardeais do universo, e por “vinte e quatro anciãos” (Ap 4,4), em grego presbyteroi, isto é, os chefes da comunidade cristã, cujo número evoca tanto as doze tribos de Israel como os doze Apóstolos, ou seja, a síntese da primeira e da nova aliança.

2. Esta assembleia do Povo de Deus entoa um hino ao Senhor exaltando a sua “honra, glória e poder” (v. 11), que são manifestadas no ato da criação do universo. Neste ponto é introduzido um símbolo de particular relevo, em grego um biblíon, isto é, um “livro”, que é, contudo, completamente inacessível: de fato, são sete os selos que impedem a sua leitura (Ap 5,1).
Assim, pois, se trata de uma profecia escondida. Aquele livro contém toda a série dos decretos divinos que devem ser realizados na história humana para fazer reinar nela a justiça perfeita. Se o livro permanece selado, estes decretos não podem ser nem conhecidos nem realizados, e a maldade continuará a propagar-se e oprimir os crentes. Eis, então, a necessidade de uma intervenção autorizada: seu artífice será precisamente o Cordeiro imolado e ressuscitado. Ele poderá “receber o livro e abrir os selos” (Ap  5,6). Cristo é o grande intérprete e senhor da história, o revelador do fio secreto da ação divina que nela se propaga.

3. O hino continua indicando qual é a base do poder de Cristo na história. Esta base não é mais do que o seu Mistério Pascal (vv. 9-10): Cristo foi “imolado” e com o seu sangue “remiu” toda a humanidade do poder do mal. O verbo “remir” ou “resgatar” remete ao êxodo, à libertação de Israel da escravidão egípcia. Na antiga legislação, o parente mais próximo tinha o dever de resgatar. No caso do povo, era o próprio Deus que chamava Israel, seu “primogênito” (Ex 4,22).
Depois, Cristo realiza esta obra para a humanidade inteira. A redenção realizada por Ele não tem a função de resgatar-nos apenas do nosso passado de mal, de curar as feridas e aliviar as nossas misérias: Cristo dá-nos um novo ser interior, faz de nós sacerdotes e reis, participantes da sua própria dignidade.
Aludindo às palavras que Deus tinha proclamado no monte Sinai (cf. Ex 19,6; Ap 1,6), o hino recorda que o povo de Deus redimido é constituído por reis e sacerdotes que devem guiar e santificar toda a criação. É uma consagração que tem a sua raiz na Páscoa de Cristo e se realiza no Batismo (cf. 1Pd 2,9). Isto origina o apelo feito à Igreja, para que tome consciência da sua dignidade e da sua missão.

4. A tradição cristã aplicou constantemente a Cristo a imagem do Cordeiro pascal. Ouçamos as palavras de um Bispo do segundo século, Melitão de Sardes, uma cidade da Ásia Menor, que se expressa assim na sua Homilia Pascal: “Cristo vem do céu à terra por amor da humanidade que sofre, revestiu-se da nossa humanidade no seio da Virgem e nasceu como homem... Ele, como um Cordeiro, foi levado e, como um cordeiro, foi degolado, e assim nos resgatou da escravidão do mundo... Foi Ele quem nos arrancou da escravidão para a liberdade, das trevas para a luz, da morte para a vida, da opressão para uma realeza eterna; e fez de nós um sacerdócio novo e um povo eleito para sempre... É ele o cordeiro mudo, o cordeiro degolado, o filho de Maria, ovelha sem mancha.  Ele foi tirado da grei, levado à morte, imolado ao entardecer, sepultado à noite” (nn. 66-71: SC 123, pp. 96-100).
No fim, o mesmo Cristo, o Cordeiro imolado, dirige o seu apelo a todos os povos: “Vinde, pois, todas as estirpes de homens que vos deixais seduzir pelos pecados, e recebeis a remissão dos pecados. De fato, sou eu a vossa remissão, a Páscoa de salvação, o cordeiro imolado por vós, o vosso resgate, o vosso caminho, a vossa ressurreição, a vossa luz, a vossa salvação, o vosso rei. Sou eu quem vos guia às alturas dos céus, quem vos mostrará o Pai que é desde a eternidade, quem vos ressuscitará com a minha direita” (n. 103: ibid., p. 122).

"O Cordeiro imolado é digno de receber honra, glória e poder..." (Ap 5,12)
(Retábulo da Catedral de Ghent - Bélgica, Jan van Eyck)

Fonte: Santa Sé (10 de março, 17 de março e 31 de março de 2004).

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