“Bendizei ao Senhor
Deus, seus anjos todos, valorosos que cumpris as suas ordens, sempre prontos
para ouvir a sua voz!” (Sl 102,20).
A Festa dos Arcanjos Miguel, Gabriel e Rafael, os únicos
três anjos nomeados na Sagrada Escritura [1], é celebrada no dia 29 de
setembro. Seu culto foi defendido pelo Papa São Zacarias I (741-752) durante o Sínodo
de Roma de 745, o qual proibiu invocar nomes de anjos mencionados apenas nos
apócrifos.
Arcanjos Miguel, Rafael e Gabriel sustentam o ícone de Cristo |
A origem da festa de 29 de setembro remonta ao século VI,
embora no início fosse uma celebração específica do Arcanjo Miguel, que dos
três foi sempre o mais venerado no Rito Romano [2].
A devoção a São
Miguel
Embora Miguel seja identificado na Escritura como protetor,
a devoção mais antiga atribui-lhe o caráter de taumaturgo, isto é, aquele que
faz milagres, que cura as enfermidades. Na Frígia (parte da atual Turquia)
haviam fontes atribuídas ao seu patrocínio, cujas águas eram consideradas
curativas.
Em Constantinopla teria sido construída a primeira igreja em
sua honra, o Michaelion, no tempo do
Imperador Constantino (séc. IV). Para comemorar sua vitória sobre Licínio na
Batalha de Adrianópolis (324), o Imperador teria encomendado para a igreja um
ícone de Miguel em armadura subjugando Satanás representado como uma serpente,
elementos que se tornaram característicos de sua iconografia.
Logo a devoção a este Arcanjo se tornou muito popular: apenas em Constantinopla teriam sido construídas quinze igrejas em sua honra.
Também no Egito Miguel era particularmente venerado, sendo-lhe confiada a proteção
do rio Nilo.
No Ocidente seu culto difundiu-se a partir do século V,
especialmente na Itália. Neste período teria sido construída a Basílica de São
Miguel na via Salária, ao norte de Roma, cuja dedicação no dia 29 de setembro marca a origem da atual
festa dos Arcanjos.
O Sacramentário Veronense (séc. VI) traz cinco formulários
de Missa para o dia 30 de setembro, descrito como Natale basilicae Sancti Angeli in Salaria. Os Sacramentários
Gelasiano e Gregoriano (séc. VII-VIII), por sua vez, trazem a indicação Dedicatio basilicae Sancti Michaelis
para o dia 29 de setembro, data que prevaleceu, mesmo após a destruição da
igreja (cujas fundações foram redescobertas apenas em 1996).
No final do século V a tradição narra uma
aparição do Arcanjo Miguel em uma caverna do monte Gargano, no sul da Itália,
no dia 08 de maio. Ali foi edificado um santuário em sua honra que logo se
tornou muito popular, de modo que foi acrescida ao calendário a celebração da Apparitio Sancti Michaelis (Aparição de
São Miguel) no dia 08 de maio.
Esta celebração foi suprimida na edição do Missal de 1962,
considerada como duplicação da festa de 29 de setembro (de fato, eram
utilizadas as mesmas orações e leituras para as duas festas).
Santuário de São Miguel em Gargano (Itália) |
A Liturgia romana atribuía a Miguel várias funções:
primeiramente como condutor das almas para o céu, à luz da parábola do rico e
Lázaro, onde este é levado pelos anjos ao seio de Abraão (Lc 16,22). Desta
tradição derivam as invocações ao Arcanjo nas orações da encomendação dos
agonizantes e nas Missas dos defuntos. Esta tradição influenciou também a
iconografia do arcanjo: foi-lhe acrescentada uma balança, com a qual se
pesariam as obras da alma por ele conduzida.
Além de condutor das almas, Miguel era naturalmente invocado
como o protetor do povo de Deus, como é apresentado nos textos bíblicos. O
versículo da aclamação ao Evangelho da Missa do dia 29 de setembro tornou-se
bastante popular: “Sancte Michael Archangele, defende
nos in proelio” (“São Miguel Arcanjo,
defendei-nos no combate”).
Na Idade Média o Arcanjo era recorrente como patrono de
cidades, províncias e reinos católicos. Sua imagem era pintada nos estandartes
que iam à frente das batalhas. Em Roma, sua estátua encima o famoso Castel Sant’Ângelo, celebrando sua
proteção durante uma peste em 590.
Arcanjo Miguel (Igreja Ortodoxa Sérvia em Trieste - Itália) |
Também neste período popularizou-se a crença de que o anjo
com o turíbulo de ouro no Livro do Apocalipse, o qual apresenta a Deus a
oração dos santos (Ap 8,3-5), era o próprio Miguel. Assim, ele era invocado na oração de
bênção do incenso durante o momento do ofertório (embora o Cardeal Ildefonso
Schuster em seu Liber Sacramentorum defenda que originalmente era invocado aqui o Arcanjo Gabriel).
A mesma interpretação era feita sobre o anjo mencionado no
Cânon Romano (Oração Eucarística I), que, por alguma razão, foisimplesmente eliminado
da tradução brasileira. Segue abaixo a versão brasileira e a versão de
Portugal:
“Nós vos suplicamos que ela [a oferenda] seja levada à vossa presença,
para que, ao participarmos deste altar, recebendo o Corpo e o Sangue de vosso
Filho, sejamos repletos de todas as graças e bênçãos do céu” (Missal Romano, pp. 474-475).
“Humildemente Vos suplicamos, Deus todo-poderoso, que esta
nossa oferenda seja apresentada pelo
vosso santo Anjo no altar celeste, diante da vossa divina majestade, para
que todos nós, participando deste altar pela comunhão do santíssimo Corpo e
Sangue do vosso Filho alcancemos a plenitude das bênçãos e graças do Céu” (Ordinário da Missa, Secretariado
Nacional de Liturgia de Portugal).
A partir do século X, por fim, difundiu-se a tradição de celebrar Missas votivas em honra de Miguel e
dos santos anjos na segunda-feira, o dia seguinte ao domingo, provavelmente em alusão ao anjo que anunciou a Ressurreição às santas mulheres.
A devoção a São
Gabriel e São Rafael
A devoção aos outros dois arcanjos nomeados pela Escritura é
muito mais recente. Suas festas foram inscritas no Calendário Romano apenas em
1921, pelo Papa Bento XV.
O Arcanjo Gabriel foi associado, naturalmente, à Solenidade
da Anunciação do Senhor, tendo sua festa inscrita no dia anterior, 24 de março.
Cumpre notar que a mesma lógica é utilizada no Rito Bizantino, que celebra o
grande mensageiro no dia seguinte à Anunciação, 26 de março.
Com efeito, no Oriente este anjo recebe a mesma veneração
atribuída a Miguel, tanto que os dois costumam ser retratados nas portas
laterais da iconostase e em algumas versões da deesis. A grande festa dos anjos no Rito Bizantino, no dia 08 de
novembro, traz o nome dos dois: “Santos Arquiestrategos Miguel e Gabriel,
arcanjos, e todos os incorpóreos celestes” [3].
Rafael, por sua vez, não recebe particular veneração no
Oriente. No Rito Romano sua festa foi fixada por Bento XV em 24 de outubro.
Além das referências à história de Tobias nas orações e leituras, é digno de
nota o Evangelho desta Missa (Jo 5,1-4), fazendo eco a uma antiga tradição que
identificava Rafael com o anjo que agitava a água da piscina de Betesda,
tornando-a curativa (v. 4).
Segundo Schuster, sendo a “medicina de Deus”, Rafael era
identificado também em algumas tradições com o anjo que confortou Jesus na
agonia do Getsêmani (Lc 22,43).
A reforma do Concílio
Vaticano II
Com a reforma litúrgica do Concílio Vaticano II, as três
celebrações foram unificadas na data mais antiga de 29 de setembro, que se
tornou a Festa de São Miguel, São Gabriel e São Rafael, Arcanjos (Missal Romano, pp. 666-667).
Algumas das orações da antiga Liturgia deste dia foram
conservadas, uma vez que não faziam referência apenas a Miguel, mas a todos os
anjos. A mais célebre é a coleta, atribuída ao Papa São Gregório Magno
(séc. VI-VII):
“Deus, qui miro órdine
Angelórum ministéria hominúmque dispénsas, concéde propítius, ut, a quibus tibi
ministrántibus in caelo semper assístitur, ab his in terra vita nostra
muniátur. Per Dóminum...”
Foram conservadas também a antífona de entrada (Sl 102,20) e
a oração sobre as oferendas (com pequenas alterações). A oração após a Comunhão
é de nova composição, assim como o “Prefácio dos Anjos” (Missal Romano, p. 447), além das opções de leituras: Dn
7,9-10.13-14 ou Ap 12,7-12a; Sl 137(138),1-5; Jo 1,47-51.
Destaque para a Liturgia das Horas da Festa, com
praticamente todos os textos próprios, incluindo as salmodias, além de hinos,
leituras e antífonas recordando cada um dos três Arcanjos. Por exemplo, nas
três Horas médias: a Terça (9h) recorda São Miguel, a Sexta (12h) recorda São
Gabriel e a Nona (15h) recorda São Rafael [4].
Para acessar nossas postagens sobre os três hinos da Festa, com seu texto em latim e em português e alguns comentários sobre a sua teologia, clique nos links abaixo:
Ofício das Leituras: Festíva vos, archángeli (Arcanjos, para vós);
Laudes: Tibi, Christe, splendor Patris (Ó Cristo, Luz de Deus Pai);
Vésperas: Angelum pacis Míchael (Lá do alto enviai-nos, ó Cristo).
Confira também:
Notas:
[1] Miguel (Quem é
como Deus?) é citado no Livro de Daniel (Dn 10,13.21; 12,1) na Epístola de Judas
(Jd 9) e no Apocalipse de João (Ap 12,7);
Gabriel (Força de Deus) é mencionado no Livro de Daniel (Dn 8,16; 9,21) e no Evangelho de Lucas (Lc 1,19.26);
Rafael (Deus cura), por fim, aparece apenas no Livro de Tobias (cf. sobretudo Tb 5–12).
[2] O Arcanjo Miguel é invocado em todas as
versões da Ladainha de Todos os Santos do Rito Romano (Vigília Pascal, Batismo,
Ordenações, Profissão religiosa, Encomendação dos agonizantes...), logo após a
Virgem Maria e antes da invocação genérica aos “Santos Anjos de Deus”.
Os
outros dois arcanjos, porém, aparecem apenas na versão mais longa da Ladainha presente no Graduale Romanum.
[3] Arquiestratego é o termo grego para “general supremo”.
[4] OFÍCIO DIVINO. Liturgia
das Horas segundo o Rito Romano. Tradução para o Brasil da segunda edição
típica. São Paulo: Paulus, 1999, v. IV, pp. 1312-1328.
Referências:
ADAM, Adolf. O Ano
Litúrgico: Sua história e seu significado segundo a renovação litúrgica.
São Paulo: Loyola, 2019, pp. 184-185.
AUGÉ, Matias. Ano
Litúrgico: É o próprio Cristo presente na sua Igreja. São Paulo: Paulinas,
2019, pp. 321-323.
RIGHETTI, Mario. Historia
de la Liturgia, v. I: Introducción general; El año litúrgico; El Breviario.
Madrid: BAC, 1955, pp. 943-947.
SCHUSTER, Cardeal Alfredo Ildefonso. Liber sacramentorum, v. VII: Le Feste dei Santi dalla Quaresima
all'ottava dei Principi degli Apostoli. Torino-Roma: Marietti, 1930, pp. 71-74
(Gabriel); pp. 161-165 (Aparição de Miguel).
Idem. Liber
sacramentorum, v. VIII: Le Feste dei Santi dall'ottava dei Principi degli
Apostoli alla Dedicazione di S. Michele. Torino-Roma: Marietti, 1932, pp.
287-289 (Miguel).
Idem. Liber sacramentorum,
v. IX: Le Feste dei Santi dalla
Dedicazione di S. Michele all'Avvento. Torino-Roma: Marietti, 1932, pp.
52-55 (Rafael).
Postagem publicada originalmente em 29 de setembro de 2020. Atualizada em 29 de setembro de 2021 com os links para as postagens sobre os três hinos da Festa dos Arcanjos na Liturgia das Horas.
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