terça-feira, 22 de junho de 2021

Hinos da Natividade de São João Batista: Antra desérti

Como indicamos em nossa postagem anterior, na Solenidade da Natividade de São João Batista, no dia 24 de junho, a Igreja de Rito Romano entoa o célebre hino Ut queant laxis.

Esta composição do século VIII, atribuída ao beneditino Paulo, o Diácono, da Abadia de Montecassino (Itália), é dividida na Liturgia das Horas em três partes:
I e II Vésperas: Estrofes 1-4.12 (Ut queant laxis...);
Ofício das Leituras: Estrofes 5-8.12 (Antra desérti...);
Laudes: Estrofes 9-12 (O nimis felix...).

Após apresentarmos na postagem anterior a primeira parte, com seu texto original (em latim) e sua tradução oficial para o Brasil, além de alguns comentários, segue abaixo a segunda parte, a partir do verso Antra desérti téneris (Dos tumultos humanos fugiste):

Ofício das Leituras: Antra desérti

Antra desérti téneris sub annis,
cívium turmas fúgiens, petísti,
ne levi saltem maculáre vitam
fámine posses.

Praebuit hirtum tégimen camélus
ártubus sacris, stróphium bidéntes,
cui latex haustum, sociáta pastum
mella locústis.

Céteri tantum cecinére vatum
corde praeságo iubar affutúrum;
tu quidem mundi scelus auferéntem
índice prodis.

Non fuit vasti spátium per orbis
sánctior quisquam génitus Ioánne,
qui nefas saecli méruit lavántem
tíngere lymphis.

Láudibus cives célebrant supérni
te, Deus simplex paritérque trine;
súpplices ac nos véniam precámur:
parce redémptis. Amen [1].

São João Batista
(Alvise Vivarini - Museo Thyssen-Bornemisza, Madrid)

Ofício das Leituras: Dos tumultos humanos fugiste

Dos tumultos humanos fugiste,
no deserto te foste esconder,
para a vida guardar reservada
da ganância da pose e do ter.

O camelo te deu roupa austera,
das ovelhas com lã te cingiste;
e com leite, bebida modesta,
gafanhotos e mel te nutriste.

Os profetas cantaram apenas
o profeta futuro, o Esperado;
tu, porém, vais à frente, mostrando
quem do mundo apaga o pecado.

Entre os homens nascidos na terra,
não se encontra um mais santo que João.
O que lava o pecado do mundo
ele, em água, o lavou no Jordão.

O louvor da cidade celeste
a vós, Deus Uno e Trino convém,
e nós, servos humildes, pedimos
piedade aos remidos. Amém [2].

Comentário:

Para o Ofício das Leituras, que costuma ser recitado de madrugada (mas que também pode ser rezado em outro momento do dia), a Igreja nos propõe as estrofes 5-8 do nosso hino, além da 12ª estrofe como conclusão.

Se na primeira parte, após o convite ao louvor, o hino cantou os eventos ligados propriamente ao nascimento de João, aqui prossegue recordando outros “maravilhosos feitos” (mira gestórum) da sua vida.

a) Primeira estrofe:

A segunda parte do nosso hino começa sintetizando as informações dos Evangelhos a respeito da “vida oculta” de João no deserto (cf. Lc 1,80). A tradição, com efeito, atesta que após a morte de seus pais, João retira-se para o deserto, a fim de preparar-se para sua missão.

Vale lembrar que o hino teria sido composto por um monge beneditino, o que corrobora o elogio feito à “fuga mundi” do Batista, considerado como um “precursor” da vida monástica.

A estrofe atesta que João fugiu das “multidões da cidade” (cívium turmas fúgiens) a fim de não manchar a vida com a “ânsia de ter” (fámine posses). O texto reflete tanto o voto monástico de pobreza quanto o próprio episódio de Jesus no deserto, quanto este rejeita as tentações do prazer, do ter e do poder (cf. Mt 4,1-11; Lc 4,1-13).

São João Batista no deserto com suas tradicionais vestes
(Ticiano - Gallerie dell'Accademia, Veneza)

b) Segunda estrofe:

Prosseguindo com o tema da austeridade de João, a segunda estrofe dessa parte do hino recolhe as descrições dos Evangelhos de Marcos e Mateus sobre suas vestes e alimentos (Mc 1,6; Mt 3,4):

- “Praebuit hirtum tégimen camélus ártubus sacris” - “o camelo ofereceu áspera veste para teus ombros sacros”;

- “[Praebuit] stróphium bidéntes” - “ovelhas [te ofereceram] um cinto” (“bidens” refere-se a qualquer animal utilizado nos sacrifícios rituais, particularmente as ovelhas. O termo remete à idade com a qual esses animais eram sacrificados: com dois anos);

- “cui latex haustum, sociáta pastum mella locústis” - “cujo leite [das ovelhas] bebes, unido ao mel e aos gafanhotos como alimento”.

c) Terceira estrofe:

Na terceira estrofe dessa segunda parte, o hino celebra a missão de João Batista como último e maior dos profetas.

Os primeiros dois versos recordam a atuação dos outros profetas, que “cantaram, com coração profético (corde praeságo), o esplendor que estava por vir”.

O original latino refere-se a este “esplendor” (que é o próprio Cristo) com o termo “iubar”, que indica a luz de uma estrela, mas que em um sentido mais amplo também pode significar “glória” ou “majestade”. Vale recordar que no cântico de Zacarias, o Benedictus, Cristo é referido como “o sol nascente”, “Oriens ex alto” (Lc 1,78). Na tradução brasileira, por sua vez, “Aquele que há de vir” é indicado como “o Profeta futuro” e “o Esperado”.

Os últimos dos versos da estrofe, por sua vez, estabelecem o lugar único que João ocupa no coro dos profetas: “tu, porém, indicas com o dedo (índice prodis), Aquele que tira o pecado do mundo”. Os versos fazem referência ao texto de Jo 1,29, que recordamos a cada Celebração Eucarística.

João Batista indica o Cristo: "Eis o Cordeiro de Deus..."
(Mosaico do Batistério de Florença)

d) Quarta estrofe:

Por fim, a quarta estrofe dessa parte é a última a cantar-nos os “maravilhosos feitos” (mira gestórum) da vida de João Batista.

Os primeiros dois versos remetem à “bula de canonização” de João, proferida pelo próprio Jesus (cf. Mt 11,11), enquanto os dois últimos recordam sua presença no batismo do Senhor no Jordão: méruit tíngere lymphis - mereceu mergulhar em água, batizar - qui nefas saecli lavántem - Aquele que lava o pecado do mundo. O Prefácio próprio de São João Batista exprime a mesma ideia: “Batizou o próprio autor do Batismo, nas águas assim santificadas”.

e) Quinta estrofe:

Como afirmamos anteriormente, nas três partes nas quais o hino está dividido na Liturgia das Horas, toma-se sua 12ª e última estrofe como conclusão: Láudibus cives célebrant supérni te...

A tradução oficial para o Brasil oferece duas traduções diferentes dessa estrofe, uma para o Ofício das Leituras e outra para as Laudes (a qual veremos na próxima postagem).

Em ambas as versões, como de costume na Liturgia das Horas, esta estrofe conclusiva é uma doxologia, isto é, uma fórmula de louvor, dirigida à Santíssima Trindade.

Nesse louvor estão implicados “a cidade celeste”, ou melhor, os “cidadãos do alto” (cives supérni) e nós, “servos humildes”, “suplicantes” (súpplices) ou, segundo a tradução para o espanhol, “peregrinos”.

Enquanto os cidadãos do céu, os santos, celebram o louvor puro de Deus, “simples e ao mesmo tempo trino” (simplex paritérque trine), nós não somos capazes de oferecer-Lhe o “perfeito louvor”.

Portanto, unimos ao nosso louvor a súplica: “ac nos véniam precámur: parce redémptis”, “suplicamos para nós misericórdia: perdoa os remidos”. O termo “remidos” remete-nos ao hino de Zacarias (Lc 1,68): “Benedíctus Dóminus Deus Israel, quia visitávit et fecit redemptiónem pebi suae” (Bendito seja o Senhor, Deus de Israel, que visitou e redimiu o seu povo).

Ícone com vários episódios da vida de João


Para acessar a primeira parte dessa pesquisa, com o hino das Vésperas (Ut queant laxis), clique aqui.

Para acessar a terceira parte dessa pesquisa, com o hino das Laudes (O nimis felix), clique aqui.

Notas:


[2] OFÍCIO DIVINO. Liturgia das Horas segundo o Rito Romano. Tradução para o Brasil da segunda edição típica. São Paulo: Paulus, 1999, v. III, pp. 1371-1372.

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