Com esta postagem concluímos nossa apresentação do
texto-base do 52º Congresso Eucarístico Internacional, celebrado em
Budapeste (Hungria) de 05 a 12 de setembro de 2021 - transferido de 2020 devido
à pandemia de Covid-19.
O documento, divulgado pelo Pontifício Comitê para os
Congressos Eucarísticos Internacionais, traz reflexões teológicas e pastorais
ao redor do tema do Congresso: “‘Todas as minhas fontes estão em ti’ (Sl 86/87,7): A Eucaristia: fonte da
vida e da missão cristã”.
Confira a seguir o capítulo 8: “A Eucaristia, fonte da missão
e do serviço”.
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A Eucaristia, fonte da missão e do serviço
1. Sacramento da
missão cumprida
“Evangelizar... é a graça e a vocação própria da Igreja,
a sua identidade mais profunda” - advertia o Papa São João Paulo II em 2003 [1].
A Eucaristia é a fonte da evangelização e, simultaneamente, o objetivo final a
ser alcançado; o “sacramento da missão cumprida, no qual há um desejo comum da
humanidade: a comunhão com Deus será tudo em todos e de comunhão fraterna” [2].
Porque todos têm o direito de receber o Evangelho, os cristãos proclamam sem
excluir ninguém, como quem compartilha uma alegria, sinaliza um horizonte
maravilhoso e oferece “um banquete apetecível” [3].
“Depois da bênção, o diácono ou o sacerdote despede o povo
com as palavras: Ite, missa est.
Nesta saudação podemos identificar a relação entre a Missa celebrada e a missão
cristã no mundo” [4].
A Eucaristia é a fonte de onde flui o potencial
evangelizador da Igreja, porque “a Eucaristia oferece não apenas a força interior,
mas também em determinado sentido o projeto. Na realidade, a Eucaristia é um
modo de ser que passa de Jesus para o cristão e, através do seu testemunho,
tende a irradiar-se na sociedade e na cultura. Para que isto aconteça, é
necessário que cada fiel assimile, na meditação pessoal e comunitária, os
valores que a Eucaristia exprime, as atitudes que ela inspira, os propósitos de
vida que suscita” [5].
Quem bebeu da fonte de água viva (cf. Jo 4,14) deve dar de beber também aos outros. “A samaritana,
logo que terminou o seu diálogo com Jesus, tornou-se missionária, e muitos
samaritanos acreditaram em Jesus ‘devido às palavras da mulher’ (Jo 4,39)... Por que esperamos nós?” [6].
É hora de passar do projeto litúrgico para a sua implementação na vida das
nossas comunidades.
2. De Emaús a
Jerusalém
O ícone evangélico dos discípulos de Emaús (Lc 24,13-35) representa bem a fisionomia
missionária da Igreja e de cada batizado, porque o encontro com o Ressuscitado,
que se realiza através da escuta da Palavra e na partilha do pão, empurra os
dois discípulos/peregrinos para se tornarem anunciadores entusiasmados do
Senhor.
A história de Emaús começa na estrada percorrida por dois
discípulos profundamente desiludidos, que viveram a Páscoa, não como um evento
de salvação, mas como um fracasso da missão de Jesus e das suas expectativas. A
eles junta-se um peregrino sem nome.
O ponto de origem da evangelização é o amor de Deus que nos
precede: Deus ama-te! Ele aproxima-se de ti incondicionalmente. Eis que, “o
próprio Je-sus, aproximando-se, pôs-se a caminhar com eles” (Lc 24,15). O primeiro passo da
evangelização consiste em fazermo-nos companheiros de viagem dos nossos irmãos
para lhes testemunhar o amor de Deus que nos precede. Nós o experimentamos no
início da Missa, quando Deus vem ao nosso encontro e nós nos inserimos na vida
e no amor do Deus uno e trino, fazendo o sinal da cruz.
Mas os discípulos de Emaús não reconheceram Jesus até que Ele
lhes abriu a mente à inteligência das Escrituras (Lc 24,17). Também nós, celebrando a Eucaristia com ritmo semanal,
experimentamos em primeiro lugar, que a evangelização não se ocupa tanto de
explicar uma doutrina, mas de interpretar cada coisa, a vida e a Liturgia, à
luz dos eventos salvíficos da Páscoa do Senhor. Esta é a missão da proclamação
das Escrituras.
Ícone do relato de Emaús: no centro, a fração do pão (Eucaristia) Embaixo, o caminho com Jesus (Palavra) e o retorno a Jerusalém (missão) |
A escuta do Antigo e do Novo Testamento “queima os nossos corações”, enquanto o próprio Cristo nos revela não só o enredo da história da salvação, mas também o sentido de tudo o que vive. “Palavra e Eucaristia correspondem-se tão intimamente que não podem ser compreendidas uma sem a outra: a Palavra de Deus faz-se carne, sacramentalmente, no evento eucarístico. A Eucaristia abre-nos à inteligência da Sagrada Escritura, como esta, por sua vez, ilumina e explica o mistério eucarístico” [7]. Por esta razão a Igreja, desde sempre, quando celebra a Eucaristia, nunca deixa de proclamar “em todas as Escrituras o que a Ele dizia respeito” (Lc 24,27).
Uma vez em Emaús, satisfazendo o pedido dos dois discípulos, o Ressuscitado entra em casa com eles, senta-se à mesa toma o pão, abençoa-o, parte-o e oferece-o a eles. São os mesmos gestos repropostos na Liturgia Eucarística. Só então O reconhecem. Espantados e cheios de alegria, uma vez reconhecido o Senhor no partir do pão, os discípulos de Emaús “voltaram para Jerusalém” (Lc 24,33), à comunidade dos Onze, para anunciar que tinham visto o Senhor.
Tudo continua a realizar-se quando, no Dia do Senhor (Ap 1,10), homens e mulheres de todas as
raças, línguas, povos e nações (Ap
7,9) se põem a caminho até uma série de catedrais, basílicas, igrejas
paroquiais.... É um imenso rio que junta os cristãos provenientes de toda
parte: dos países da Escandinávia aos países do Mediterrâneo, das Américas, da
Ásia, da África, da Austrália... Cristãos que vão a pé, de bicicleta, de metrô,
de ônibus, de automóvel; centenas de milhares de batizados que avançam, se unem
em assembleia à volta do altar do Senhor, para se tornarem juntos o Corpo de
Cristo no coração da cidade moderna. Desde há vinte séculos o povo de Deus
realiza este movimento eucarístico que vai encontrar o seu objetivo final
quando a humanidade comer, novamente, o pão no Reino de Deus.
Então, uma vez que a Missa foi celebrada, mais uma vez,
mesmo que em sentido inverso, as mesmas procissões de fieis se colocarão
alegremente em seu caminho. E fundindo-se lentamente dispersam-se como uma
semente nos sulcos da terra, retornando às suas tarefas habituais. Iluminados
pela Palavra da Vida, alimentados pela Eucaristia, eles traçam no coração da
cidade terrena novos percursos que formam a trama secreta do viver humano. Como
rios de água viva jorrando do lado direito do templo (cf. Ez 47,2) eles irrigam as praças, as estradas, os bairros, até a
última habitação da periferia mais distante.
É assim que a celebração da Eucaristia se transforma em um
motor de mudança do coração e da sociedade e cria uma cultura de fraternidade: “O
encontro eucarístico... desperta no discípulo a vontade decidida de anunciar
aos outros, com coragem, o que ouviu e experimentou, para trazê-los para o
mesmo encontro com Cristo. Desta forma, o discípulo, enviado pela Igreja,
torna-se aberto a uma missão sem fronteiras” [8].
3. Eucaristia e
serviço fraterno: a diaconia
A celebração da Eucaristia não termina com a bênção e a
saudação final, uma vez que a Missa é fonte e motor da vida da Igreja,
especialmente no campo da diaconia, que é uma das suas atividades fundamentais.
De acordo com a Constituição litúrgica Sacrosanctum
Concilium “a Liturgia impele os fiéis, saciados pelos ‘mistérios pascais’,
a viverem ‘unidos no amor’; ela ora para ‘que sejam fiéis na vida ao que
receberam pela fé’; e pela renovação da aliança do Senhor com os homens na
Eucaristia, estimula e fortalece os fiéis na caridade urgente de Cristo” [9].
Todo o mistério da caridade de Deus revelado e realizado na
Páscoa do Unigênito e no dom do Espírito está contido no mistério da
Eucaristia. Ela garante que a caridade é a atitude de quem fez comunhão com o
Senhor. Antes de ser um trabalho ou uma iniciativa, a caridade é um conjunto de
atitudes realizadas no dom de Cristo.
No memorial pascal a Igreja nasce como comunidade de
serviço. A Eucaristia faz ressoar para sempre na comunidade o convite a fazer
tudo o que Jesus viveu em primeira pessoa, ou seja, a oferta total de si mesmo
para a salvação de todos. A comunidade eucarística, comungando do destino do
Servo, torna-se, ela mesma, serva: comendo “o Corpo entregue” torna-se “corpo
eclesial entregue, corpo para os outros, corpo oferecido pelas multidões”. E os
fiéis, enquanto anunciam “a Morte do Senhor e proclamam a sua Ressurreição até
que Ele venha” fazem da sua existência um dom total.
Mesmo no contexto da nova evangelização, a lei fundamental é
a da cruz de Cristo que caiu na terra como um grão de trigo para dar muito
fruto (Jo 12,24). A história continua
a provar que não se pode dar vida a não ser oferecendo-se a si mesmo. A força
evangelizadora que nasce da Eucaristia impele assim os fiéis a atualizar no seu
contexto histórico o gesto daquele que “tendo amado os seus que estavam no
mundo, amou-os até à consumação. Durante a ceia... começou a lavar os pés dos
discípulos e a secá-los com a toalha que tinha atado à cintura... ‘Ora, se Eu,
o Senhor e o Mestre, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns dos
outros’” (Jo 13,1-5.14).
Todas as vezes que celebramos a Eucaristia, tomamos
consciência de que o sacrifício de Cristo é para todos e que a Eucaristia “impele
todo o que acredita n’Ele a fazer-se ‘pão repartido’ para os outros e,
consequentemente, a empenhar-se por um mundo mais justo e fraterno... a vocação
de cada um de nós consiste em ser, unido a Jesus, pão repartido para a vida do
mundo” [10].
No serviço da caridade para com os pobres, os pequeninos, os
marginalizados, nós celebramos a nossa verdadeira Páscoa, a nossa passagem da
morte para a vida. Saindo da igreja após a despedida final da Missa, “sem
ilusões, sem utopias ideológicas, nós caminhamos pelas estradas do mundo,
levando dentro de nós o Corpo do Senhor... Com a humildade de nos sabermos
simples grãos, guardamos a firme certeza que o amor de Deus encarnado em Cristo
é mais forte do que o mal, a violência e a morte...” [11]. Realmente, não se
pode estar na história com amor sem a Eucaristia, nem se pode celebrar a
Eucaristia sem servir, com efeito, o mundo com o Evangelho da caridade.
4. Eucaristia e
unidade dos batizados: a comunhão
“Ubi Eucharistia, ibi Ecclesia”
- “Onde quer que se celebre a Eucaristia, aí está a Igreja”. Este é o princípio
da eclesiologia eucarística que não só encontramos nos teólogos ortodoxos, mas
de maneira diferente, nas etapas próprias do Concílio Vaticano II e nos
teólogos católicos.
A Eucaristia como atuação do banquete do tempo messiânica
oferece-se como comunhão na única mesa e convocação universal não só dos fiéis,
mas de toda a humanidade [12]. De fato, a Eucaristia não representa apenas um
sinal da fé pessoal; não é celebrada para fortalecer parcialidades e fechamentos,
mas para saltar os muros e abrir à universalidade da convocação salvífica.
Infelizmente, na situação atual não é possível que todos os batizados de
qualquer confissão cristã se reúnam à volta da única mesa do Senhor e
participem na única festa do Ressuscitado. E isto por causa da divisão histórica
das Igrejas, pecado que contradiz abertamente o sentido da cruz e do mistério
eucarístico.
Os documentos acerca da Eucaristia que têm surgido nas
últimas décadas têm atenuado as oposições, que eram tão fortes, entre os
cristãos das diferentes confissões. Sinais positivos de reaproximação ocorreram
onde antes havia apenas divisões e conflitos. Ao mencioná-los aqui, esperamos
que, graças ao Congresso Eucarístico Internacional, possam receber um reconhecimento
teológico mais amplo e encontrar lugar na consciência comum dos fiéis.
Particularmente significativo foi o documento de
convergência sobre “Batismo, Eucaristia e
Ministério” (BEM), publicado pela Comissão Fé e Constituição do Conselho
Ecumênico das Igrejas em 1982 (também conhecido como Documento de Lima). Efeito de mais de 50 anos de estudo, o
documento é reconhecido como um dos os resultados mais influentes do diálogo
multilateral. Isto representa o mais alto grau de convergência ecumênica e, em
alguns aspectos, de consenso sobre os três temas fundamentais que têm dividido
e dividem os cristãos desde o século XVI. Sobre a Eucaristia, a resposta
oficial da Igreja Católica reconhece que “a estrutura e a sequência da
exposição dos aspectos básicos do documento... estão em conformidade com o
ensinamento católico” [13].
As posições dos irmãos separados sobre o tema que os dividia
acerca do “sacrifício” eucarístico aproximaram-se com a ajuda do conceito
bíblico de “memorial”: “A Eucaristia é o memorial de Cristo Crucificado e Ressuscitado,
ou seja, o sinal vivo e eficaz do seu sacrifício, realizado uma vez por todas
na cruz e ainda operante em favor de toda a humanidade. A ideia bíblica do
memorial aplicada à Eucaristia reenvia a esta eficácia atual da obra de Deus
quando é celebrada pelo seu povo numa Liturgia. O próprio Cristo, com tudo o que
ele fez por nós... está presente nesta anamnese
(ou memorial), concedendo-nos a comunhão consigo” [14].
A propósito da “presença real” e seu cumprimento na
celebração, o Documento de Lima
reconhece que “As palavras e gestos de Cristo ao instituir a Eucaristia estão
no centro da celebração: o banquete eucarístico é o sacramento do Corpo e do
Sangue de Cristo, o sacramento da sua presença real. Cristo realiza de muitas
maneiras a sua promessa de estar sempre com os seus, até o fim do mundo. Mas o
modo da presença de Cristo na Eucaristia é único... A Igreja confessa a
presença real, viva e atuante de Cristo na Eucaristia” [15].
De importância significativa ainda é a questão da
intercomunhão, com a tensão entre a Eucaristia como sinal e a Eucaristia como causa
de unidade [16]. Quando se olha para a importância do sinal, a hospitalidade eucarística parece difícil, porque a
Eucaristia deve expressar e celebrar uma unidade já alcançada e realizada. De
acordo com o ensinamento católico e ortodoxo, a Eucaristia não é apenas um
instrumento de nossa união individual com Cristo, mas também o sacramento da
nossa plena adesão à Igreja, à sua fé, à sua estrutura sacramental, às suas
exigências morais. Quando, ao contrário, se olha para o significado de causa, a intercomunhão é possível em
determinados casos.
Enquanto isso, o caminho da unidade cresce e se desenvolve,
reforçando o “ecumenismo da vida”, que, colocado sob o sinal da cruz,
compromete cada um a viver a compaixão e a misericórdia de Deus. Isso se traduz
fundamentalmente no testemunho de fé vivido diariamente através da meditação
das Sagradas Escrituras, do trabalho comum com os batizados de outras Igrejas, do
compromisso em grupos ecumênicos, da colaboração para iniciativas de catequese
e de formação nas comunidades locais de diversas confissões.
No campo cultual podem-se aproveitar as celebrações ecumênicas
da Palavra de Deus; a Liturgia das Horas; as peregrinações ecumênicas e muito
mais. No campo da caridade, os cristãos comprometem-se já em muitas iniciativas
conjuntas, também porque os recursos financeiros reduzidos forçam
progressivamente a unir as forças: centros sociais, cuidados aos idosos,
visitas às famílias carentes, pastoral da saúde, meios de comunicação... são
apenas algumas das áreas em que o Evangelho da comunhão conjugado na celebração
encontra o modo de agir e se difundir.
Finalmente não se esqueça o “ecumenismo espiritual”, alma do
caminho rumo à unidade. Nas situações mais variadas, há homens e mulheres
inspirados pelo Espírito Santo que atualizam a “boa notícia”, fazendo sentir o
impulso do Evangelho onde a Igreja está cansada; que praticam comunitariamente
as formas de vida evangélicas e ecumênicas, criando assim um movimento
espiritual em que se reza sem cessar pelo advento da unidade [17].
5. A Eucaristia para
a reconciliação
O salmista canta: “Todas as minhas fontes estão em ti” (Sl 86[87],7). Todos os que alcançam a
fonte da Eucaristia, habitantes da Palestina, Tiro e Etiópia (cf. v. 4) e filhos de qualquer povo,
tornam-se membros do mesmo Corpo de Cristo, cidadãos da Jerusalém celestial, da
cidade de Deus (cf. Fl 3,20).
Na Eucaristia torna-se presente o mistério trinitário de
Deus Pai, Filho e Espírito Santo, que arrasta na mesma comunhão a grande
família humana. “Com uma feliz intuição, o célebre ícone da Trindade de Rublëv
coloca significativamente a Eucaristia no centro da vida trinitária” [18].
Cristo é Aquele que na sua Páscoa redentora abateu o muro de separação que
dividia os povos, anulando a sua inimizade (cf.
Ef 2,14), e fez membros do seu Corpo aqueles que se nutrem d’Ele. De fato,
“nós somos um só corpo” garante São Paulo (1Cor
10,17) e “não há mais judeu ou grego, escravo ou livre, homem ou mulher, porque
todos vós sois um só em Cristo Jesus” (Gl
3,28). O dom de Cristo e do seu Espírito que recebemos na Comunhão eucarística
“realiza plena e superabundantemente os anseios de unidade fraterna que vivem
no coração humano e ao mesmo tempo eleva esta experiência de fraternidade, que
é a participação comum na mesma mesa eucarística, a níveis que estão muito
acima da mera experiência de um banquete humano” [19].
Uma verdadeira unidade entre os homens e entre as nações não
se pode atingir plenamente se não encontra em Deus a sua raiz e só n’Ele: “Não
tenhais medo! Abri, ou melhor, escancarai as portas a Cristo! À sua majestade
salvadora abri os confins dos Estados, os sistemas econômicos e políticos, os
vastos campos de cultura, de civilização e de desenvolvimento. Não tenhais
medo!” [20].
Esta unidade não anula as diferenças das nações. O Criador
quis que o homem fosse um ser social e histórico e que se realizasse em
diferentes civilizações, através de diferentes línguas maternas [21]. Porque a
unidade dada por Deus não é caos nem falsa fraternidade que manda para a
guilhotina aqueles que pensam de maneira diferente. Ela surge a partir do dom
do Espírito Santo que, no Pentecostes, sana a confusão das línguas e permite a
todos que se entendam por meio do mesmo Espírito.
Nos séculos passados, os povos da Europa Central, envolvidos
nas tempestades da história, foram frequentemente confrontados nos campos de batalha.
Mas, apesar de tudo, eles não esqueceram o vínculo profundo que continua a
uni-los, isto é, a sua fé cristã. E assim, mais uma vez, Cristo é a única
esperança desta região do mundo, da Europa e de toda a humanidade; e a celebração
da Eucaristia é sinal e instrumento da pertença comum destes povos a Cristo.
Conscientes disto, nos últimos anos, as Conferências
Episcopais dos vários países da Europa Central celebraram juntos a Eucaristia e
assinaram declarações conjuntas no sinal da reconciliação [22]. De fato, “é graças
à Celebração Eucarística que povos em conflito podem reunir-se em torno da
Palavra de Deus, escutar o seu anúncio profético, acolher gratuitamente o
perdão e receber a graça da conversão que permite a comunhão no mesmo pão e no
mesmo cálice. Jesus Cristo, que se oferece na Eucaristia fortalece a comunhão
fraterna e insta aqueles que estão em conflito a apressar a sua reconciliação
através do diálogo e da justiça” [23].
Neste sentido, o Congresso Eucarístico Internacional será
uma excelente oportunidade para continuar o processo de cura da memória [24],
perdoar as ofensas do passado e redescobrir em Cristo a plena reconciliação,
capaz de superar as dificuldades e tentações deste tempo [25]. Neste
compromisso de reconciliação, a Eucaristia torna-se na vida o que ela significa
na celebração.
Cada país da Europa, ao longo da história, expressou sua fé
na Eucaristia com acentos e tradições próprios. As procissões de Corpus Christi, os tapetes florais, as
solenes adorações eucarísticas, as Liturgias dos dons pré-santificados e as
festas da primeira Comunhão ligaram os povos da Europa Central (poloneses, tchecos,
eslovacos, eslovenos, croatas, sérvios, húngaros, austríacos, ucranianos,
romenos, etc.). A nossa civilização construiu a unidade espiritual da Europa
nutrindo-se da mesma fonte. Hoje em dia, no momento histórico em que vivemos,
as Igrejas particulares não são capazes de responder sozinhas aos desafios que nos
interpelam.
Sem negar as diferenças derivadas de eventos históricos, é
cada vez mais madura a consciência da unidade que, aprofundando as suas raízes
na inspiração cristã comum, forma as diferentes tradições culturais e
impulsiona, tanto a nível social como a nível eclesial, para um caminho de conhecimento
recíproco na partilha dos valores de cada um [26].
Tudo isto também se aplica aos nossos irmãos ciganos (rom) que têm no Beato Zeferino, homem de
profunda fé eucarística, o seu patrono. Esta fé encontrou a sua prova, quando
em 1965, numa sua peregrinação doou ao Papa São Paulo VI uma custódia com arame
farpado, em memória de ciganos mortos em campos de concentração nazistas.
Quase um século atrás, Martin Buber disse que uma
civilização permanece viva enquanto ela permanece em contato com o mistério
vivo a partir do qual ela nasceu [27]. As civilizações da Europa nasceram a
partir do mistério de Cristo. A esta fonte de vida devemos voltar, acolhendo o
apelo de São João Paulo II: “(Tu, Europa), no decurso dos séculos, recebeste o
tesouro da fé cristã. Este funda a tua vida social sobre os princípios
extraídos do Evangelho e divisam-se os seus traços nas artes, na literatura, no
pensamento e na cultura das tuas nações. Mas esta herança não pertence só ao
passado; é um projeto para o futuro que deve ser transmitido às novas gerações,
porque constitui a matriz da vida das pessoas e dos povos que, juntos, forjaram
o continente europeu” [28].
O ícone da Trindade de Andrej Rublev, citado anteriormente (Para conhecer o simbolismo desse ícone, clique aqui) |
* * *
O documento-base do 52º Congresso Eucarístico Internacional
conclui-se com um breve texto recorrendo à intercessão da Virgem Maria, a
“mulher eucarística”. O título da conclusão faz referência a um célebre canto
eucarístico: “Ave verum corpus, natum de
Maria Virgine” - “Ave, verdadeiro corpo, nascido da Virgem Maria”.
Notas:
[1] JOÃO PAULO II, Exortação Apostólica Pós-Sinodal Ecclesia in Europa, 2003, n. 45.
[2] PONTIFÍCIO COMITÊ PARA OS CONGRESSOS EUCARÍSTICOS
INTERNACIONAIS, Cristo entre vós, a esperança
da glória. A Eucaristia: Fonte e ápice da missão da Igreja. Ponteranica,
2015, p. 85.
[3] PAPA FRANCISCO, Exortação Apostólica Pós-Sinodal Evangelii Gaudium, 2013, n. 14.
[4] BENTO XVI, Exortação Apostólica Pós-Sinodal Sacramentum Caritatis, 2007, n. 51.
[5] JOÃO PAULO II, Carta Apostólica Mane nobiscum Domine, 2004, n. 25; cf. também Sacramentum
Caritatis, n. 84: “Não podemos abeirar-nos da mesa eucarística sem nos
deixarmos arrastar pelo movimento da missão que, partindo do próprio coração de
Deus, visa atingir todos os homens; assim, a tensão missionária é parte
constitutiva da forma eucarística da existência cristã”.
[6] Evangelii Gaudium,
n. 120.
[7] BENTO XVI, Exortação Apostólica Pós-Sinodal Verbum Domini, 2010, n. 55.
[8] XI ASSEMBLEIA GERAL ORDINÁRIA DO SÍNODO DOS BISPOS, Elenco final das Proposições, 22 de outubro
de 2005, n. 42.
[9] CONCÍLIO VATICANO II, Constituição Sacrosanctum Concilium sobre a Sagrada Liturgia, 1963, n. 10.
[10] Sacramentum
Caritatis, n. 88.
[11] BENTO XVI, Homilia
na Festa de Corpus Christi, 23 de junho de 2011; in: AAS 103 (2011), p. 464.
[12] Já a Didaqué
(9.4) aborda esta questão, ao explicar o simbolismo do pão e do vinho e do
banquete de salvação: “Assim como este pão estava disperso pelos montes, e,
depois de colhido se tornou um só, assim se reúna a tua Igreja dos confins da
terra no teu reino”.
[13] MAX THURIAN (ed.), As
Igrejas respondem ao BEM, 6 vol., Genebra, 1986-1988. O volume 6 contém a “Resposta”
oficial da Igreja Católica.
[14] COMISSÃO FÉ E CONSTITUIÇÃO, Batismo, Eucaristia e Ministério. Documento de Lima, 1982, in:
Enchiridion Oecumenicum, vol. I, Bologna, 1986, p. 1411.
[15] ibid., p.
1413.
[16] cf. CONCÍLIO
VATICANO II, Decreto Unitatis Redintegratio
sobre o ecumenismo, 1964, n. 08: “Não é lícito considerar a ‘communicatio in sacris’ como um meio a
usar indiscriminadamente na restauração da unidade dos cristãos. Esta ‘communicatio’ depende principalmente de
dois princípios: da necessidade de testemunhar a unidade da Igreja e da
participação nos meios de graça. O testemunho da unidade frequentemente a
proíbe. A busca da graça recomenda-a algumas vezes. A autoridade episcopal do
lugar determine prudentemente o modo de agir tendo em conta as circunstâncias
de tempo, lugar e pessoas, a não ser que outra coisa seja determinada pela
Conferência Episcopal, de acordo com os seus estatutos, ou pela Santa Sé”.
[17] Para todos esses problemas, consulte: L. BIANCHI, Eucaristia ed ecumenismo. Pasqua di tutti i
cristiani, Bologna, 2007; W. KASPER, Sacramento
dell’unità. Eucaristia e Chiesa, Brescia, 2004; M. FLORIO; C. ROCCHETTA, Sacramentaria speciale I, (Corso di Teologia Sistematica 8/a), Bologna, 2004.
[18] cf. Mane nobiscum Domine, n. 11.
[19] JOÃO PAULO II, Carta Encíclica Ecclesia de Eucharistia, 2003, n. 24.
[20] cf. idem, Homilia na Missa de início do ministério petrino, 22 de outubro de
1978; in: AAS 70 (1978), pp. 944ss.
[21] PONTIFÍCIO CONSELHO JUSTIÇA E PAZ, Compêndio da Doutrina Social da Igreja, nn. 384-387.
[22] Este foi o caso, por exemplo, entre as Conferências Episcopais
Húngara e Eslovaca e no Santuário Nacional de Mátraverebély-Szentkút no dia 28
junho de 2008. Um documento semelhante foi assinado em 2003 com o Versöhnte Nachbarschaft im Herzen Europas
(entre as Conferências Episcopais Austríaca e Tcheca) e em 2004 no Encontro
Católico Centro-Europeu de Mariazell.
[23] XI ASSEMBLEIA GERAL ORDINÁRIA DO SÍNODO DOS BISPOS Proposições do Sínodo sobre a Eucaristia,
22 de outubro de 2005, n. 49.
[24] De acordo com a expressão cara a São João Paulo II. O
conceito nasceu durante o Grande Jubileu do ano 2000; cf. Tertio Millennio Ineunte nn. 33-35; Incarnationis Mysterium, 1998, n. 11.
[25] Os fundamentos teológicos do caminho de reconciliação
podem ser encontrados em: COMISSÃO TEOLÓGICA INTERNACIONAL, Memória e Reconciliação: A Igreja e as
culpas do passado, 2002.
[26] Ecclesia in
Europa, n. 04.
[27] M. BUBER, Discurso
inaugural em Frankfurt, 1922.
[28] Ecclesia in
Europa, n. 120.
Papa São João Paulo na Hungria (1991) |
Confira também nossa postagem sobre a Liturgia na Exortação Apostólica Ecclesia in Europa.
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