A Igreja de Rito Romano celebra no dia 24 de junho a
Natividade de São João Batista. Na Liturgia das Horas dessa Solenidade entoamos
o célebre hino Ut queant laxis,
composição poética do século VIII, cuja autoria é atribuída ao beneditino Paulo,
o Diácono, da Abadia de Montecassino (Itália).
Como vimos em nossas postagens anteriores, esse hino é
dividido na Liturgia das Horas em três partes:
I e II Vésperas: Estrofes
1-4.12 (Ut queant laxis...);
Ofício das Leituras: Estrofes 5-8.12 (Antra desérti...);
Laudes: Estrofes 9-12 (O
nimis felix...).
Após apresentarmos as primeiras duas partes, segue abaixo o
texto original (em latim) e sua tradução oficial para o Brasil, além de alguns
comentários, da terceira parte, a partir do verso O nimis felix (Logo ao nasceres não trazes mancha), indicado tanto
para as Laudes do dia 24 de junho quanto do dia 29 de agosto, Memória do
Martírio de São Joao Batista:
Laudes: O nimis felix
O nimis felix meritíque celsi,
nésciens labem nívei pudóris,
praepotens martyr eremíque cultor,
máxime vatum.
Nunc potens nostri méritis opímis
péctoris duros lápides repélle,
ásperum planans iter, et refléxos
dírige calles.
Ut pius mundi sator et redémptor,
méntibus pulsa mácula polítis,
rite dignétur véniens sacrátos
pónere gressus.
Láudibus cives célebrant supérni
te, Deus simplex paritérque trine;
súpplices ac nos véniam precámur:
parce redémptis. Amen [1].
São João Batista (Gaspar de Crayer - Museu do Prado, Madrid) |
Laudes: Logo ao nasceres não trazes mancha
Logo ao nasceres não trazes mancha,
João Batista, severo asceta,
Mártir potente, do ermo amigo,
grande profeta.
De trinta frutos uns se coroam;
a fronte de outros o dobro cinge.
Tua coroa, dando três voltas,
os cem atinge.
Assim cingido de tanto mérito,
retira as pedras do nosso peito,
torto caminho, chão de alto e baixo,
torna direito.
Faze que um dia, purificados,
vindo a visita do Redentor,
possa em noss’alma, que preparaste,
seus passos pôr.
A vós, Deus Único, o céu celebra,
Trino em pessoas canta também.
Mas nós na terra, impuros, pedimos
perdão. Amém [2].
Comentário:
Como vimos, para as Laudes (oração da manhã) tanto da
Solenidade da Natividade quanto da Memória do Martírio de São João Batista, a
Igreja nos propõe as estrofes 9-12 do hino.
O texto original dessa parte, portanto, possui quatro
estrofes. Não obstante, a tradução oficial para o Brasil acrescentou mais uma
estrofe entre a primeira e a terceira, completando assim as cinco estrofes que
possuem a grande maioria dos hinos da Liturgia das Horas [3].
Nas duas partes anteriores, o hino Ut queant laxis celebrou vários momentos da vida de João Batista.
Nas estrofes dessa terceira parte, por sua vez, após proclamar os méritos de
João, o hino dirige-lhe algumas súplicas, como veremos a seguir.
a) Primeira estrofe:
O hino das Laudes começa com uma espécie de “ladainha” dos
méritos de João Batista, sintetizando os “maravilhosos feitos” (mira gestórum) da sua vida narrados
anteriormente:
- “O nimis felix
meritíque celsi” - “ó mais feliz, excelso em méritos” (expressões ausentes
na tradução brasileira);
- “nésciens labem
nívei pudóris” - “que não conheces mancha em sua nívea pureza” (nívei pudóris, pureza branca como a
neve). A tradução brasileira começa diretamente nessa frase, à qual acrescenta
o título de “severo asceta”, ausente em latim;
- “praepotens martyr
eremíque cultor, máxime vatum” - “poderoso mártir, cultivador dos ermos (ou
cultivador da solidão), maior dos profetas”.
b) Segunda estrofe:
Como afirmamos acima, essa segunda estrofe é ausente no
original em latim, sendo própria da tradução brasileira.
Uma vez que o texto original canta os méritos de João
Batista, a estrofe aplica a ele a conclusão da parábola do semeador: a terra
boa na qual é lançada a semente é “coroada” com a produção trinta, sessenta ou
cem frutos. João possui a “tríplice coroa”: é a terra boa que atinge os cem
frutos.
c) Terceira estrofe:
Invocando os méritos com os quais João é “enriquecido” (opímis), essa estrofe e a seguinte
dirigem-lhe uma série de súplicas, recordando o conteúdo da sua pregação: os
frutos que outrora produziu em sua vida, João produz agora (nunc) com a sua intercessão.
- “péctoris duros
lápides repélle” - “remove as duras pedras do nosso peito” (isto é, do
nosso coração), remetendo à “nova aliança” de Ez 36,26: “Eu vos darei um coração novo... arrancarei do vosso
peito este coração de pedra...”.
- “ásperum planans
iter, et reflexos dírige calles” - “aplaina a estrada pedregosa e endireita
os caminhos tortuosos”, recordando a pregação do Batista (Mc 1,2-3; Mt 3,1-3; Lc 3,3-6), que por sua vez cita um texto
do profeta Isaías (Is 40,3-5).
d) Quarta estrofe:
A quarta estrofe dessa parte do hino prossegue e conclui as
súplicas a João, retomando o tema do caminho do verso anterior.
A estrofe inicia recordando a vinda do “piedoso criador do
mundo e redentor” (pius mundi sator et
redémptor), anunciada pelo Batista. O termo “redentor” remete-nos ao hino
de Zacarias (Lc 1,68): “Benedíctus Dóminus Deus Israel, quia
visitávit et fecit redemptiónem pebi suae” (Bendito seja o Senhor, Deus de
Israel, que visitou e redimiu o seu povo).
A súplica invoca a intercessão de João para que essa
“visita” do Redentor encontre toda mácula removida de nossa alma ou mente (mens), para que nela Ele se digne gravar
seus sagrados passos (sacrátos gressus
póneres).
e) Quinta estrofe:
Como afirmamos anteriormente, nas três partes do hino na
Liturgia das Horas toma-se como conclusão sua 12ª e última estrofe: Láudibus cives célebrant supérni te...
A tradução oficial para o Brasil oferece duas traduções
distintas da estrofe, uma para o Ofício das Leituras, que vimos na postagem anterior, e outra para as Laudes.
Em ambas as versões, como de costume na Liturgia das Horas,
esta estrofe conclusiva é uma doxologia (uma fórmula de louvor) dirigida à
Trindade, na qual estão implicados os “cidadãos do alto” (cives supérni) e nós, “suplicantes” (súpplices), que unimos ao louvor a nossa súplica por perdão.
João Batista exorta à conversão: "O machado já está posto à raiz..." (Lc 3,9) (Menologion de Basílio II - séc. X-XI) |
Para acessar a primeira parte dessa pesquisa, com o hino das Vésperas (Ut queant laxis), clique aqui.
Para acessar a segunda parte dessa pesquisa, com o hino do Ofício das Leituras (Antra desérti), clique aqui.
Notas:
[2] OFÍCIO DIVINO. Liturgia
das Horas segundo o Rito Romano. Tradução para o Brasil da segunda edição
típica. São Paulo: Paulus, 1999, v. III, p. 1376; v. IV, p. 1239.
[3] A Introdução Geral
da Liturgia das Horas em seu n. 178 concede “às Conferências Episcopais a
faculdade de adaptar os hinos latinos ao espírito da própria língua, como
também introduzir novas criações de hinos, contanto que condigam estritamente
com o sentido da hora, do tempo ou da festa” (ALDAZÁBAL, José. Instrução Geral sobre a Liturgia das Horas: Texto
e Comentário. São Paulo: Paulinas, 2010, pp. 93-94).
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